Carmen Barroso: Ontem, poeira de estrelas. Amanhã, abracemos o desconhecido.
A cientista social Carmen Barroso dedicou sua carreira ao estudo de direitos reprodutivos. “A partir da década de 90, a ideia de controle de natalidade foi substituída pela ideia de direitos reprodutivos, que são, basicamente, o direito de decidir se a mulher deseja ter ou não um filho, com quem e quando”, ela disse ao blog. Em 2016, recebeu o prêmio da Nações Unidas, UN Population Award, por seu trabalho na área. Ele é pioneira no estudo de gênero no Brasil e a na ONU e, hoje, é uma das diretoras (“co-chair”) do Independent Accountability Panel, a convite do secretário-geral da ONU. A instituição surgiu para acompanhar a implementação de um programa da ONU chamado “Every Woman, Every Child, Global Strategy for woman, children and adolescente health“.
Carmen discutiu o direito à vida durante toda sua carreira. Hoje, ela parece refletir sobre esse outro lado, também pouco discutido na sociedade, que é a morte. “A morte é parte da vida. É uma parte negligenciada da vida. Quando você fica mais velho, você começa a perceber que ou refletimos sobre isso, ou enfiamos a cabeça na areia”.
A imagem de “enfiar a cabeça na areia” é uma metáfora presente no livro fotográfico, VIVER, de Derli Barroso, seu marido. Derli teve uma coluna semana semanal na Folha, durante 3 anos, sobre fotografia. Moram nos Estados Unidos desde 2003 e vieram ao Brasil para o lançamento desse livro.
Reproduzo aqui, com a permissão de Carmen, a linda introdução desse livro. O título “Viver é perigoso” é uma referência a Guimarães Rosa.
Viver é perigoso
Por Carmen Barroso
Viver enquanto velho é especialmente perigoso. Na velhice as coisas se tornam mais simples e mais complexas ao mesmo tempo. Também mais fáceis e mais difíceis, o que não é exatamente o resultado da simplicidade e da complexidade crescentes. E o perigo está em não aprender a ver estas mudanças e perder as grandes oportunidades que elas oferecem.
Derli aprendeu. Tanto na vida como na obra. Os trabalhos que está produzindo no limiar de seus 80 anos simplificam as imagens de extrema complexidade que sua retina e sua câmera tem registrado ao longo do tempo. Revisitando suas fotos de situações as mais variadas, procura extrair sua essência. Reduzindo-as a formas, cores e movimentos, na realidade amplia a visão daquilo que realmente está em jogo. O resultado pode ser aparentemente fácil, mas trata-se daquela facilidade difícil que também buscavam Miró e Klee.
O que torna a velhice especialmente perigosa não é somente que sejamos seres perecíveis, mas especialmente nossa consciência da morte, que se torna cada vez mais presente. Amedrontadora, deprimente: muitos preferem fugir dela o quanto podem. Procuram não pensar (e ainda menos falar) no assunto. Torna-se um tabu, pior que o sexo.
Mas também há os que tem olhos para ver e encontram novas perspectivas quando se deparam com o encurtamento de seu futuro. O que era importante deixa de ser. O que era eterno encolhe no tempo. O negligenciado passa a ser prioridade. Necessidades urgentes se evaporam. Experiências insignificantes tornam-se preciosas.
Paixões adormecidas se acendem. Belezas inusitadas são percebidas. Prazeres recônditos são descobertos.
Nas mãos de Derli, fotos que tirou nos quatro cantos do mundo, e cujos infinitos detalhes ele tanto aprecia, são submetidas a um rigoroso processo de depuração e celebram a beleza da simplicidade. A riqueza das aparências se torna supérflua e emergem cores e movimentos numa coreografia brilhante que nos convida a concentrar no essencial.
Tudo isto parece ter muito a ver com nossa posição no espaço e no tempo. O cientista … já dizia: se há quatro bilhões de anos éramos amebas; daqui há quatro bilhões de anos, os seres existentes serão provavelmente tão distintos de nós, como nós das amebas.
Ontem, poeira de estrelas. Amanhã, abracemos o desconhecido.