A escuta é uma ação fundamental para prevenir o suicídio, diz psiquiatra sobre o Setembro Amarelo

Camila Appel

Chama atenção a palavra “ação”. O título poderia ser, simplesmente, “a escuta é fundamental para prevenir o suicídio”. Achei pertinente ressaltar o verbo. Escuta é uma atitude passiva, mas merece postura ativa.  Parece simples, e é mesmo. Sentar ao lado de alguém que demonstra sinais de risco, falar sobre esse tema sem constrangimentos, é fundamental. Isso me lembrou uma conversa que tive com uma amiga. Alguém próximo, uma familiar, já tentou o suicídio algumas vezes. Ela me questionou: “vou tentar conversar com ela amanhã, você acha que eu posso tocar na palavra suicídio?” Eu disse que sim. E ela: “mas falar sobre isso, não pode estimulá-la a se matar?”.

Uma pessoa não vai querer morrer porque você tocou no assunto. Não falar sobre isso, evitar o termo, com constrangimentos, pode sim ser prejudicial. O tentante (um termo que aprendi com o corpo de bombeiros) já se sente excluído, inútil. Ver o constrangimento causados por seus pensamentos e atitudes, pode não ajudar.

Hoje é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Entrevistei Jorge Jaber, psiquiatra da ABP – Associação Brasileira de Psiquiatria. Ele ressaltou exatamente isso: o poder da escuta. E claro, a necessidade de um tratamento em casos de transtornos mentais.

Conversa com Bial fala sobre suicídio em rede nacional

Mitos sobre o suicídio e como preveni-lo

Qual é importância do setembro amarelo?

Setembro amarelo é uma campanha mundial encampada pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Está comprovado, cientificamente, que se conversarmos mais a respeito, as taxas podem diminuir. O suicídio é uma das maiores causas de morte entre todas as doenças, e pode ser evitada de forma relativamente barata. Uma boa maneira de conseguir iniciar essa ajuda é permitindo ou estimulando as pessoas a conversarem sobre o tema.

Quando você começou a atuar no setembro amarelo?

Há 16 anos, criei um bloco de carnaval, “Alegria Sem Ressaca”, que sai 15 dias antes do carnaval, para levar a mensagem sobre o abuso do álcool. Há cerca de 10 anos, observamos um aumento no suicídio. A Associação Brasileira de Psiquiatria criou o setembro amarelo e assumi a responsabilidade de fazer o primeiro evento, há 4 anos. O evento me deu notoriedade e fui convidado pelo Exército Brasileiro para fazer a prevenção entre os soldados.

É um grupo em que as taxas de suicídio tem aumentado muito…

Sim. Eu faço um trabalho de conscientização dos comandos e nas escolas militares, dentro do Programa de Valorização da Vida da instituição. Esse programa foi implantado em 2015 e conseguiu reduzir pela metade a ocorrência de suicídio. Há uma necessidade de adaptação aos novos tempos no relacionamento militar. Não é mais aceitável, mesmo dentro do quartel, aquela exigência muito agressiva que se exercia de comando. Tudo tem que ser feito com respeito.  Um movimento que tem muita influência do General Villa Boas.

Quem são as pessoas que estão cometendo suicídio?

No momento, são adultos com depressão ou com uso de substâncias químicas, incluindo álcool. São pessoas que têm, em algum momento, um transtorno psiquiátrico. Vinte por cento dos pacientes internados hoje na minha clínica pensaram em suicídio ou tentaram se matar. Para eles, tenho um grupo especial chamado Grupo de Valorização da Vida.

Como identificar um potencial suicida?

O fator preditivo isolado mais importante é a existência de tentativa prévia. Estima-se que 50% dos que se suicidaram já haviam tentado anteriormente. A quase totalidade dos suicidas portavam uma enfermidade mental, muitas vezes não diagnosticada. Aproximadamente 80% dos suicidas são pessoas com Transtornos do Humor e/ou Transtornos no Uso de Drogas . Sentimentos de falta de esperança, desamparo e desespero estão fortemente associados ao suicídio. A impulsividade é um fator de risco muito forte.

É muito importante ficar atento a estas características entre jovens, uma vez que o aumento de suicídio nesta faixa etária está crescendo assustadoramente.

Em idosos também a taxa é muito alta. Geralmente associado a doenças crônicas como hipertensão, diabetes e tumores, aposentadoria e perda de relação afetiva significante, como na viuvez.

Os óbitos por suicídio são muito mais frequentes entre homens do que mulheres. Porém, conflitos em torno da identidade sexual tem sido relacionados com aumento das tentativas.

Um fator importante entre os jovens se refere à ocorrência de suicídio de ídolos ou de amigos. Nestas circunstâncias, é muito importante abordar o jovem e procurar estimulá-lo a falar sobre o tema. Em caso de desconfiança de possível tentativa, procurar imediatamente ajuda profissional especializada. Lembrando que a existência de laços sociais é fator de proteção ao suicídio e ter uma história de suicídio na família é fator frequentemente associado a outras tentativas entre seus membros. Existência de armas de fogo ao alcance é fator fortemente conectado ao aumento das estatísticas de morte por suicídio.

Como ajudar?

Quando descobrimos um problema, a medicina deve ser portar da seguinte forma: primeiro lugar, identificar a pessoa, o perfil a que ela pertence.  Ao identificar a pessoa e saber qual é o problema dela (desse perfil), levantar quais são os recursos existentes. O próximo passo é colocar esses recursos em contato com a pessoa, que é a maior dificuldade da saúde no Brasil. A demora no atendimento, no agendamento de exames afastam as pessoas, por falta de uma verdadeira política de saúde pública eficaz. A pessoa procura o sistema de saúde e se perde. É importante veicular o 188, novo telefone do CVV.  Depois disso, precisamos quebrar essa resistência. Também precisamos quebrar a resistência de falar sobre o assunto. Divulgar o novo número do CVV, 188, é importante. O programa que o “Conversa com o Bial” fez também. Ajudam a quebrar essa resistência. Essa conversa também ajuda no aspecto da impulsividade. No momento de sofrimento, a pessoa tem um impulso e quando detona ação, não tem mais volta.

Resumindo, precisamos reconhecer o suicida, verificar o que ele precisa, colocá-lo em contato com essa necessidade e quebrar a resistência de falarmos sobre isso.

Normalmente, as pessoas querem convencer essa pessoa a fazer algo: você tem que sair, tem que namorar, tem que ir à praia. Isso não funciona, porque cada vez que ela se sente fora do sistema, piora. Temos que dar atenção a essa pessoa, ajudá-la a ser ouvida. As pessoas ficam inseguras sobre o que fazer diante do suicida. Essa insegurança as faz impulsivas. Sentem que estão tentando invadir sua privacidade, ditando regras.

Ouvir e dar apoio é muito importante: 90% dos suicídios poderiam ser evitados.

Por que está aumentando?

Primeiro, as pessoas já não estão morrendo tanto das doenças infecciosas, cardiovasculares e de câncer. Os jovens não morrem mais de apendicite, sarampo… A maior causa mortis em São Paulo, há 40 anos, era o sarampo.

Ao vivermos, vamos nos defrontando com mecanismos de frustração. Nós perdemos um pouco aquela noção de solidariedade humana, de afeto, de carinho, de respeito. Houve um momento em que o capitalismo passou a se desenvolver de tal maneira que a tentativa do lucro acabou se sobrepondo a outros valores.

A comunicação do jovem sofreu uma mudança muito grande com as redes sociais. O sofrimento era mais coletivo. Havia o hábito de se abrir com os amigos. Agora, a comunicação é muito rápida e a sensação de rejeição é forte. Enfrentamos um momento de grande revolta e brigas por coisas pequenas.

Dos mitos do suicídio, qual te irrita mais?

O mito que me irrita mais é dizerem que é frescura. Primeiro, o potencial suicida tem uma ideia, depois ele tem um plano. Aí, ele coloca em andamento uma parte desse plano. Uma hora ele toma uma atitude e executa o plano. Por exemplo, começar a juntar remédios… A família diz: ele fez isso só para assustar, para chamar atenção. O suicida, mesmo se quiser chamar atenção dessa forma, já está em uma situação grave.

O que te levou à psiquiatria?

Um médico vai decidir se especializar em psiquiatria por herança – quando a família atua na área, por uma curiosidade científica, ou por dificuldades próprias, emocionais. Eu me encaixo na terceira alternativa. Na faculdade, percebi que eu tinha um sofrimento, uma dificuldade. Eu tinha depressão. Comecei a estudar psiquiatria para descobrir como eu poderia me curaria sozinho.

Você descobriu ?

Não. Pelo contrário… não conseguir entender o que eu estava estudando. Fui procurar ajuda. Aí, eu percebi que funcionava muito e me apaixonei.

Se apaixonou pela vontade de fazer com os outros o que fizeram com você?

Sim e muito. Faço até hoje. Você me perguntou porque eu estou na campanha do setembro amarelo. Eu tenho uma ideologia, me identifico com uma razão para viver.