A literatura como remédio – um projeto de vida

Camila Appel

O historiador Dante Gallian é autor do livro: “A Literatura como Remédio – Os Clássicos e a Saúde da Alma” (Martin Claret; 2017), em que conta um experimento tão ousado quanto natural: discutir livros clássicos em laboratórios de leituras para alunos de medicina. Esse projeto já rompeu as fronteiras da universidade, como vocês vão ver abaixo. Na minha conversa com Dante, percebi que mais do que uma iniciativa, seus laboratórios são um projeto de vida.

Há 20 anos, Dante coordena esses laboratórios, em formato de atividade extracurricular na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

A ideia surgiu de um desafio. Ele dá aulas sobre História da Medicina, área que nutre interesse há muitos anos. Seu pós-doutorado, por exemplo, foi em cima de uma pesquisa sobre a história do coração humano, desde a Antiguidade, Egípcios, Hebreus, Gregos, Romanos, Idade Média até os dias de hoje. O subtítulo: o destronamento do coração. Nesse processo histórico, o coração deixa de ser o centro da pessoa, cedendo lugar ao cérebro.

Em suas aulas, Dante percebeu que os alunos estavam mais interessados nos temas científicos e técnicos, atuais, do que em aprender sobre o passado da medicina. Ele fez algumas modificações na didática das aulas e passou a distribuir pequenos trechos sobre a medicina na antiguidade. Colocou alunos em roda, para lerem e comentarem os temas. “No começo, foi difícil, porque eles não estão acostumados a fazer isso. Os professores apenas projetam conhecimento”, comenta. Os alunos estão acostumados a aprender passivamente.

Dante insistiu e o interesse cresceu. Os alunos foram se surpreendendo ao ler textos o século 15 e 17. Quando a disciplina acabou, pediram para continuar a discussão em horário extra curricular. Assim, Dante seguiu. Como não havia mais a necessidade de apresentar textos de medicina, perguntou aos alunos o que gostariam de ler. Começaram a trazer ensaios filosóficos, textos jornalísticos. Até que um dia, um dos alunos que estudava atuação teatral em paralelo à faculdade de medicina, sugeriu seu texto de trabalho para discussão: “Antígona”,a tragédia grega de Sófocles.

Dante se surpreendeu. “O impacto foi impressionante. Lembro de uma aluna da enfermagem falando que ela mesma era a Antígona. Percebi que isso levava as pessoas a refletirem sobre a essência da existência humana, a dor, a morte… A partir desse momento, comecei a trazer textos literários e, aos poucos, fui desenvolvendo a parte teórica e metodológica”.

Surgiu então, o Laboratório de Humanidades, que expandiu dentro da universidade. Dante formou alunos da pós-graduação para coordenar o laboratório e aplicar essa metodologia, a da leitura de clássicos com potencial humanizador, com os pacientes também.

Dante vê a importância dessa iniciativa para trabalhar questões delicadas. “A literatura é um meio interessante e poderoso para abordar assuntos tabus, como morte e suicídio. A pessoa pode se utilizar de um personagem do livro, aspectos da temática e da narrativa, para comentar assuntos que são particularmente importantes para ela. Nesse sentido, serve como uma ferramenta. Não tem tabu, você está falando da vida do outro, não da sua própria vida”.

A experiência ultrapassou a universidade. Dante e sua esposa, Beatriz, fundaram a Casa Arca, onde reúnem grupos abertos para laboratórios de leituras. Atualmente, estão discutindo “Orgulho e Preconceito” (Jane Austen) e “Grande Sertão Veredas” (Guimarães Rosa). É um grupo diverso, vai de 18 a 90 anos.

Ele também tem atuado em empresas e escolas. Criou, em uma escola de negócios, a disciplina: ética e literatura. Eu me formei em administração de empresas e adoraria ter tido essa aula. Discutir os clássicos me parece bem-vindo em todas as esferas.

Hoje, Dante utiliza textos clássicos por perceber um efeito terapêutico maior. “Clássico não é clássico por acaso. Por que discutimos Shakespeare, Tolstói, Goethe, há tantos anos? Porque eles traduzema experiência humana de forma universal e permanente”. O que diferencia um best-seller de um clássico é essa perenidade.

O título de seu livro “A Literatura como Remédio” surge de uma convicção. “A leitura pode curar na medida em que abre a possibilidade para uma experiência ampla e autêntica da própria humanidade. Grande parte de nosso adoecimento decorre de uma dinâmica de vida moderna, onde funcionamos mais como máquinas do que pessoas. Temos muito pouco tempo para pensar, para questionar qual é o sentido das coisas que fazemos. A leitura é uma oportunidade de te arrancar dessa dinâmica automática e mecânica. O livro transpõe a um outro espaço geográfico, outra realidade. Num primeiro momento, a literatura não deixa de ser uma fuga, mais é uma fuga terapêutica. Ela te desperta coisas, sentimentos, afetos”.

Por fim, Dante enfatiza a importância de uma experiência coletiva, o que diferencia seus laboratórios de uma biblioterapia, no qual textos são prescritos para leitura em casa, individualmente. “A felicidade só é completa se puder ser compartilhada”, conclui citando Tolstói.

 

Bio:

Dante Gallian. Bacharel em História pela FFLCH-USP, onde também fez mestrado e doutorado. É pós-doutor em Sciences Sociales pela École des Hautes Études, de Paris. Foi professor visitante na EHESS de Paris (07-09) e no Center of Humanities and Health do King’s College London, na Inglaterra (12-14). Desde 1999, é diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Escola Paulista de Medicina, da Unifesp.

 

 

Casa Arca. http://casaarca.com.br/