Cartografia da morte
Dia de Finados! Recebo mais parabéns do que no meu próprio aniversário.
Aproveito o dia para divulgar uma pesquisa.
A “Cartografia da Morte” foi conduzida por Gisela Adissi, presidente do Sincep/Acembra. Sincep é o Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil. Sim, existe um. Ter Gisela como sua presidente é um ótimo sinal. Ela faz parte de um (ainda) pequeno grupo disposto a humanizar nosso setor funerário. Essa pesquisa chega com algumas indicações sobre como o brasileiro vê a morte, seus símbolos e percepções sobre rituais fúnebres.
Logo na primeira página, uma conclusão potente: “Os elementos, abordagens e práticas ao redor deste tema muitas vezes são sombrios, frios e potencializam, negativamente, a experiência da morte e do luto. Com a linguagem visual não acontece muito diferente. Os cemitérios, e suas adjacências, são marcados pela presença de cores escuras, ambientes “frios” e pouco acolhedores. Além dos rituais em torno da morte que nem sempre trazem significado”.
O tabu sobre a morte é sublinhado pela forma como ela se apresenta. Melancólica e escura. Muitas vezes, são rituais vazios em significados, com textos padrões e genéricos. Podem não acolher quem está sofrendo. A pesquisa abordou alguns símbolos específicos, como o uso da cor preta, mas vou me atentar aos aprendizados gerais. Acredito que sejam interessantes para qualquer leitor.
Aprendizados:
1) A morte é o tabu do mundo moderno
Grande parte dos entrevistados (75,70%) diz que a morte é um tabu da nossa sociedade. A pesquisa cita o antropólogo Geoffrey Gorer (1905-1985) conhecido por fazer paralelos entre a morte e o sexo:
“Enquanto nossos bisavós ouviram que os bebês eram encontrados embaixo de arbustos, de repolhos”… ou trazidos por cegonhas (a sexualidade era o tabu), nossos filhos provavelmente vão ouvir que os que faleceram viram flores, descansam em lindos jardins, viram árvores ou estrelas”.
2) Espera-se que ela simplesmente não aconteça
As pessoas tendem a rejeitar a morte como uma possibilidade. Pessoas morrem ao nosso redor, mas ainda assim esperamos que não nos alcance. Lembro da paliativista Ana Claudia Arantes dizendo: lidamos com a morte como crianças brincando de esconde-esconde. Tapamos o olho com as mãos e, assim, achamos que estamos escondidos.
3) Consequências do aumento da expectativa de vida
Com o aumento da expectativa de vida, a morte deixa de ser admitida como um fenômeno natural e necessário. Agora, ela é sempre considerada como prematura ou acidental.
Por quantos anos devemos viver?
4) A morte é a negação da tecnologia
A tecnologia é associada ao aprimoramento dos homens. Os superhumanos do futuro viverão mais com o apoio da tecnologia, ou imersão. Há quem aposte na imortalidade. A morte passa a ser vista como a negação desse fenômeno. O movimento contrário ao da imortalidade tecnológica. “A morte não é civilizada, ao contrário, é animal, instintiva, não se domestica”.
Categoria: “tecnologia e morte” do blog
Categoria: envelhecimento e imortalidade
5) Vínculos líquidos
Aqui, a pesquisa aponta para um fenômeno sociológico. “Com os laços cada vez mais frouxos entre as pessoas e suas escolhas (relacionamentos, carreira, prazeres, etc), a morte vem perdendo também o seu lugar. A sociedade ocidental vive uma espécie de presente perpétuo. Não há nem a visão de um futuro nem a evocação de um passado. O resultado é uma sociedade que busca inutilmente a felicidade em fugas da realidade”.
4) Super capitalismo
“Ao capitalismo interessa quem produz. Mortos são improdutivos! Mais uma vez, o foco deve estar em quem está vivo. Quem pode, conta com o que há de melhor na medicina para adiar a morte e os rituais atuais dão mais conta de “satisfazer” quem fica do que valorizar quem se foi”.
Uma boa notícia: os entrevistados não acham que falar sobre morte pode atraí-la. Apenas 10% respondeu que sim. Ótimo. Essa teoria do mau agouro nunca nos ajudou em nada. Diversos testamentos deixaram de ser feitos em função disso, causando uma dor de cabeça desnecessária aos que ficam.
Os entrevistados consideram que morrer cercado de familiares é melhor. Sobre esse tema, sugiro duas leituras: “A solidão dos moribundos” e “É melhor morrer em casa ou no hospital?”.
É interessante perceber como poucos consideram a morte uma escolha (ao redor de 10%). Esse tema é abordado na categoria eutanásia e suicídio assistido desse blog.
A pesquisa aponta que o ritual fúnebre não é visto como um espaço para valorizar quem se foi. Apenas 4% vê o enterro como uma homenagem. Na cremação, a porcentagem sobre para 7,7%. Aí, eu vejo uma oportunidade. Um velório no Brasil dura em média 6 horas. É um tempo precioso. Poderia ser utilizado para uma homenagem, para ajudar no luto dos que estão sofrendo uma perda irreparável. Como a própria Gisela me ensinou: rituais mal elaborados levam a lutos mal elaborados.
Hoje é dia de Finados, um ótimo gancho para refletirmos sobre isso. Em tempo de mudar essa concepção.
Conheça outras categorias do blog: bastidores da morte, luto, suicídio, depoimentos de leitores….