A ressignificação do luto da perda de um filho
Em 2015, entrevistei Amanda Tinoco. Seu único filho, Gabriel, morreu atropelado por um ônibus enquanto jogava um game no celular, de realidade aumentada, chamado Ingress. Ele tinha 16 anos. Nessa entrevista, fazia um ano que Gabriel tinha morrido. Hoje, fazem mais de quatro.
Amanda fundou uma página no Facebook chamada Mães Para Sempre, sobre luto materno, em que acolhe muitos pais em sofrimento. Hoje, estuda psicologia e quer se especializar em luto. Enquanto isso, trabalha como coaching de luto. Seu programa se chama Não Mais, Mas Ainda, e tem como objetivo “validar o vínculo com o ser amado que partiu, uma vez que o Amor não morre”.
Hoje, ela diz ter ressignificado esse luto. “Eu já consigo escolher do que eu quero falar, do que quero lembrar, e isso ajuda, isso significa o Não Mais, Mas Ainda. Ele já vive comigo de uma forma diferente. Não é simples, mas é possível. Nunca pensei que, um dia, conseguiria alcançar esse estado”.
Leia a primeira entrevista nesse link. E nossa conversa atual, abaixo.
Contato da Amanda: atinocco@gmail.com. Facebook Mães Para Sempre.
Faz quanto tempo que o Gabriel se foi?
Quatro anos e nove meses.
Como você vê seu processo de luto até hoje?
A despeito de qualquer teoria, considero-me a prova viva de que o luto tem começo, meio e fim, caso seja elaborado da forma correta. Para explicar rapidamente essa questão, considero importante relembrar a primeira vez em que entrei no consultório da Dra. Adriana (terapeuta do luto), apenas 15 dias após a morte do Gabriel. Eu estava devastada. Em prantos, disse a ela que não sabia como conseguiria viver sem o meu filho. Recordo perfeitamente de ela ter me olhado no fundo dos olhos (e da alma) e respondido: “Amanda, você não vai viver sem o seu filho. Isso é impossível. Você vai aprender a viver com ele de uma outra forma”. Não entendi como isso aconteceria, mas verdadeiramente acreditei que podia ser uma possibilidade.
E, de fato, aproximadamente um ano e meio após esse primeiro encontro, Adriana me atendeu pela última vez e fez uma série de perguntas. Após responder todas, ela me comunicou que eu estava de alta, ou seja, que meu luto estava oficialmente encerrado. Continuamos a conversar e ela me apresentou uma literatura de J. William Worden*, um famoso teórico no estudo do tema e mostrou-me que eu já havia cumprido todas as tarefas de acordo com seus conceitos. Fiquei feliz e concordei com ela. Enfim, eu já havia aprendido uma nova forma de relacionar-me com o meu filho, que transcendia o físico, e já estava tocando a vida. De lá pra cá, venho aprimorando essa relação. Gabriel faz parte do meu dia a dia e continua sendo o maior orgulho da minha vida. O aprendizado do luto é para sempre, o luto, propriamente dito, não.
Quando eu te entrevistei pela primeira vez, me marcou muito uma frase sua, sobre o constrangimento do luto ser do outro. As pessoas se sentiam mal quando você falava do Gabriel. Não sabiam como reagir. Mas na verdade, te fazia bem falar sobre ele. Isso mudou com o tempo?
Sim, esse comportamento seletivo do meu grupo social mudou muito, inclusive por causa da nossa primeira entrevista. Naquela mesma época, vários amigos se retrataram, argumentando não saber que era do meu agrado falar sobre o Gabriel. Por isso que é extremamente válido falar da morte sem tabu. Todo mundo entendeu que o Gabriel ocupa um lugar especial da minha vida e que tenho 16 anos de experiências lindas para compartilhar. Falo com prazer do meu período de gestação, de quando ele era bebê, curiosidades da sua infância/ vida escolar e até da rebeldia da adolescência. Adoro quando me contam alguma situação vivida com ele, é como bálsamo para o meu coração. Pouco tempo atrás, minha irmã me deu um presente lindo – um quadro de leão, que é o símbolo master do Biel. Achei o máximo ela me contar que passou na loja, lembrou-se de nós dois e fez questão de comprar pra mim. É isso! Mães e pais gostam de falar de seus filhos, estejam eles presentes ou não. Eventualmente, podem surgir emoções, vamos sorrir e talvez até chorar, mas isso é seguramente saudável.
O que te inspirou a fundar a página Mães Para sempre?
O Dia das Mães de 2014. Ele estava se aproximando e eu estava arrasada, haviam se passado apenas 3 meses desde a morte do meu filho (único). Daí, em uma sessão de terapia, disse à Adriana que estava muito triste porque não poderia mais comemorar essa data tão linda. Ela me fez duas perguntas: 1) Você tem mãe? Eu disse: Sim, ela é maravilhosa; 2) Quem é a mãe do Gabriel? Eu disse: Eu, ué!
Daí ela me fez reconhecer e concluir que a maternidade é um estado permanente, que eu não havia deixado de ser mãe porque meu filho não estava mais fisicamente presente ao meu lado. O que eu deveria fazer era começar a planejar a forma como seria possível comemorar naquele ano. Sugeriu um ritual– algo que representasse um momento exclusivo entre nós dois. E assim eu fiz. Vesti uma blusa com a foto dele, preparei um farto almoço para minha amada mãe e reunimos toda a família em grande comunhão. Nesse dia, o abraço que recebi do meu sobrinho Pedro (que era como um irmão para o Biel) representou o ato físico e chorei. Depois, assisti ‘sozinha’ ao filme Tarzan, que sempre foi nosso.
Enfim, quis dividir com outras mães essa descoberta da permanência do vínculo entre nós e nossos filhos. Os blogs e comunidades que eu seguia até então eram interessantes, mas só falavam da dor da perda, da falta. Eu queria falar do Amor, eu queria gritar que o sentimento maternal de afeto que carregamos desde sempre não havia sido enterrado junto com nossos filhos. Daí surgiu a comunidade Mães Para Sempre, que hoje conta com quase 22 mil seguidores.
Que tipo de mensagem você recebe lá?
O primeiro contato da maior parte das mães é de desespero e desilusão (aqueles, que eu conheço tão bem). Daí, eu as acolho e conversamos em um ambiente seguro de solidariedade e apreço. Sempre ressalto para elas a importância do auto-respeito e da coerência íntima. No início do luto, pode haver dias em que a única coisa que se consegue fazer é respirar… e, tudo bem. Menos cobranças e mais paciência, afinal perder um filho é muita coisa! O tempo será necessário, um tempo dedicado à conciliação entre duas fortes experiências: a Dor e o Amor. Sim, se o nosso peito não for demasiado espaçoso para que a Dor e o Amor convivam juntos ali dentro, nosso trabalho deverá consistir em expandi-lo, porque o Amor é, de fato, o único antídoto que nos fará felizes de novo após a perda de um filho. E isso pode demorar. Além disso, recebo mensagens que falam de frustrações, culpas, saudades e muitas fotos. Em suma, posso dizer que é um ambiente de acalento, desabafo, encorajamento e renascimento da esperança.
Sua página acabou inspirando um outro projeto, o Não Mais, Mas Ainda. Qual é o significado desse nome?
Então, assim como fui ajudada, pude auxiliar muitas outras pessoas nos últimos quatro anos através desse apoio digital e, no início deste ano, decidi assumir essa atividade como ocupação principal, devido a grande carência que observei em nossa sociedade. Estudo Psicologia e através da formação em Coaching, desenvolvi um programa específico para enlutados baseado justamente na permanência da pessoa amada em nossas vidas, afinal, a relação não termina com a morte, ela se modifica. Como bem disse a Dra. Ana Cláudia Quintana, “a pessoa que morre não leva consigo a história de vida que compartilhou com aqueles que conviveram com ela”. Para quem aqui fica, é válido construir um legado de memórias, que foram desfrutadas com amor; afinal, essas lembranças podem ser a sua herança mais valiosa. Assim, esse elo transcende tempo e espaço e você se certifica de que aquele ser que você ama não está mais aqui, mas ainda está. E sempre estará.
Certamente o sucesso da minha trajetória pessoal contribuiu sobremaneira na composição dos temas, ferramentas e conteúdos que hoje pratico durante as sessões com meus queridos clientes.
Quais pontos positivos e negativos você veria em fazer um trabalho com luto, tendo você mesma passado por um luto tão devastador?
Posso dizer que o fato de eu ter passado por todo o processo de luto me autoriza a falar do assunto com alguma propriedade. Embora cada dor seja singular, as pessoas sentem afinidade em falar da morte comigo, porque sabem que eu a conheço bem de perto. É um fato que todos nós e todos aqueles que amamos vamos morrer algum dia. O problema é o assunto ser tratado como tabu, de forma que perdemos completamente o chão quando, inevitavelmente, vivenciamos essa experiência. Hoje, estou consciente sobre a impermanência e efemeridade da nossa passagem por este mundo. De certa forma, conquistei o respeito das pessoas e acabei me tornando uma referência no assunto para o meu círculo social, de modo que sou frequentemente acionada em situações de risco ou de morte, propriamente dita. Poder servir ao próximo em um contexto tão delicado é indescritivelmente satisfatório. Falar e ouvir sobre dores, temores e anseios que quase ninguém se predispõe a tratar me faz sentir extremamente útil e importante. Assumi essa atividade como missão, é isso. Aliás, depois da morte do meu filho, já perdi outras personalidades importantes e amadas, sofri, lamentei, chorei e vivi cada luto de forma íntegra e coerente, mas a morte não me desestabiliza mais. Como ponto negativo eu poderia citar o fato de ainda encontrar alguma resistência quando o assunto entre um novo grupo de amigos é profissão, por exemplo. Era bem mais simples ser analista de Telecomunicações.
Que tipo de ajuda profissional você teve?
A melhor do mundo! Sou eternamente grata por ter tido a Adriana Thomaz em minha vida. Costumo dizer que durante os quatro dias em que meu filho esteve no leito entre a vida e a morte (em coma), nunca fui abordada por nenhum profissional humanizado, durante esse período ninguém me olhou nos olhos nem se interessou em esclarecer mais do que o prontuário registrava. Eram uma hora por dia no CTI e 23 horas de apreensão em casa. E quando eu chegava ao hospital com mil dúvidas, perguntas e angústias, era tratada como mais uma mãe desventurada, cujo destino todos desconheciam. Mesmo quando se aproximaram para tratar da doação de órgãos, não senti minha dor validada. Porém, todo o desamparo que antecedeu o luto foi compensado com a profissional maravilhosa que me assumiu em seguida. Infelizmente, ela faleceu pouco depois de eu ter recebido alta e esse foi um dos motivos que me motivaram a perpetuar seu belo e importante trabalho, uma vez que eu realmente sei a diferença que fez em minha própria vida.
O que você gostaria de dizer para as pessoas que estão lendo essa entrevista e estão sofrendo um luto nesse momento?
Gostaria de abraça-las, sincera e demoradamente. É o que geralmente sugiro que as pessoas façam quando me questionam como devem se comportar em uma situação de luto. Aliás, o melhor a se dizer nesse momento é Estou aqui para o que você precisar e ceder, genuinamente, ombro e ouvidos. Porém, como não posso acolhê-las em meus braços, compartilho uma bela mensagem de Carlos Drummond de Andrade, para que reflitam francamente:
“Por muito tempo achei que ausência é falta. / E lastimava, ignorante, a falta. / Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. / A ausência é um estar em mim. / E sinto-a, branca, tão pegada, / Aconchegada nos meus braços, / Que rio e danço e invento / Exclamações alegres. / Porque ausência, essa assimilada, / Ninguém a rouba mais de mim”.
A morte não é simples nem fácil de entender e aceitar. Queremos quem amamos perto de nós e pronto, só isso. Porém, nossa falta de controle e impotência diante dos mistérios da vida nos desiludem e apresentam uma realidade deveras indesejável. Mas, o que você guarda em seu coração lhe pertence e quem você ama não precisa e não merece ser resumido a apenas um capítulo de sua existência, que foi o dia de sua partida. Sugiro que cada um descubra uma atividade que lhe proporcione um momento exclusivo com o seu amor, para conectar-se com ele. Um prato especial? Uma cor predileta? Um lugar, música ou filme que marcou? Uma prece? Flores? Só você sabe a situação ideal para esse ‘encontro’. Eu poderia ir ao cemitério onde repousam os restos mortais do Gabriel, no entanto, como prefiro falar e lembrar dele vivo, vou tomar um sundae de caramelo (seu sabor favorito) afinal, ele não está mais aqui, mas ainda está… Mas atenção! Não há certo e errado. Existe o que faz sentido pra você, ou melhor, pra vocês.
* Para Worden (1998), o luto se completa quando a pessoa cumpriu as seguintes tarefas: 1) aceitar a realidade da perda; 2) elaborar a dor da perda; 3) ajustar-se a um ambiente onde está faltando a pessoa que faleceu; e 4) reposicionar em termos emocionais a pessoa que faleceu e continuar a vida.
Alguns posts do Instagram de Amanda: