Fundação sobre psiquiatra revolucionária inaugura no Brasil
Elisabeth Kübler-Ross foi uma médica psiquiatra suíça radicada nos Estados Unidos.
Pioneira do movimento de cuidados paliativos, ela é conhecida por ter desenvolvido a teoria dos 5 estágios do processo do morrer, que foi inadequadamente compreendida como um conjunto de estágios em que os pacientes necessariamente atravessariam, do diagnóstico de uma doença grave até a morte. Essa nunca foi sua intenção, já que seu trabalho clínico é muito mais importante do que qualquer conjunto de fases. Elisabeth sempre considerou que cada luto é singular, e que qualquer tentativa de colocar as pessoas em estágios levaria a problemas. No entanto, sua revolução foi muito mais profunda. O que ela fez foi uma mudança de paradigma. Pode parecer sútil e simples, mas significou uma transformação que sentimos até hoje.
O que ela fez de tão radical?
Em 1966, ela passou a organizar seminários chamados “Sobre a Morte e o Morrer”, no hospital de Chicago, onde trabalhava. Os seminários eram ministrados por pacientes, criando um método de ensino e aprendizagem próprio. Ela inverteu o fluxo de informação. Ao invés de termos profissionais de saúde falando como as coisas deveriam ser, os pacientes contavam sobre suas necessidades, por meio de uma entrevista clínica conduzida pela própria Elisabeth.
Essa inversão permitiu a entrada dos Cuidados Paliativos nos Estados Unidos.
Mas a história de Elisabeth com a morte começou muito tempo antes dos seminários. Aos 25 anos, ela decidiu fazer ações humanitárias em uma Europa destruída pela Segunda Guerra Mundial. Conheceu campos de concentrações e descreveu que viu muitas borboletas desenhadas pelas crianças mortas, usando as unhas, em paredes e nas próprias camas. Essa descrição foi feita por Elisabeth em sua autobiografia, “A Roda da Vida”, e foi por essa razão que as borboletas foram introduzidas no movimento de cuidados paliativos como um símbolo: a ânsia pela transformação, pela liberdade e pela vida plena, mesmo que diante da possibilidade ou pela realidade da morte.
Elisabeth morreu em 2004. Um ano depois, seu filho, Ken Ross, criou uma fundação em seu nome, que chegou ao Brasil há seis meses pela iniciativa do psicólogo Rodrigo Luz, diretor presidente desse “capítulo brasileiro da fundação”, como é chamado.
Rodrigo entrou em contato com a obra de Elisabeth aos 15 anos. Ao perder uma tia querida, buscou apoio em um processo de psicoterapia pessoal. Ao fim do processo, sua terapeuta o presenteou com livro de Elisabeth: “Sobre a Morte e o Morrer” (1969).
Ele ficou tão impressionado com o livro, que resolveu seguir um caminho profissional semelhante ao da autora. Estudou psicologia, especializou-se em cuidados paliativos, em tanatologia e terapia da dignidade. A admiração o levou mais longe. Ficou amigo do filho de Elizabeth e se aproximou dos trabalhos da sua fundação. Até que chegou o convite para abrir a representação brasileira dessa fundação, já presente em 9 países.
Segundo Rodrigo, os objetivos do capítulo brasileiro da fundação são: dar assistência qualificada e gratuita a pacientes no final da vida, a pessoas em luto e oferecer treinamento para voluntários, baseado no modelo Zen Hospice. É um treinamento aberto, de um ano, para capacitar a comunidade para acompanhar pessoas em processo de morte e em luto, sob supervisão, a fim de que transformem todo o potencial de ajuda comunitária em uma forma qualificada de apoio.
A entidade também organiza seminários como os coordenados por Elisabeth em 1966. Rodrigo se espelha em seu formato. “Seu método de ensino e aprendizagem coloca os pacientes como professores, com finalidade exclusivamente didática, e com todos os cuidados éticos. Elisabeth conduzia uma entrevista clínica, permitindo os pacientes a comunicarem suas dores, medos, angústias, fé em qualquer forma de beleza ou até mesmo falta de fé. Eles descreviam sua experiência com a doença, a rotina hospitalar, com familiares, outros pacientes e com profissionais de saúde. Ao mesmo tempo em que Elisabeth permitia isso, ela ensinava os profissionais de saúde a acessar os pacientes, e a se comunicar com eles. Ela permitiu que esses pacientes pudessem ser professores, comunicarem suas necessidades, sejam físicas, espirituais, sociais e psicológicas”, diz Rodrigo.
O próximo curso será em março de 2019 e vai durar 4 meses, no Rio de Janeiro. Rodrigo comenta que os cursos bancam as atividades realizadas pelo capítulo brasileiro da fundação EKR. “Ele é montado para dar voz às necessidades de pacientes ao fim da vida e familiares, e os recursos são revertidos para o apoio que podemos oferecer, sem custos. É uma forma de podermos levar adiante o legado da Elisabeth e beneficiar a população”.
Mas não são apenas os pacientes e os familiares que são ouvidos, mas também faxineiras, copeiros, maqueiros: “Tivemos uma entrevista com um maqueiro que foi um dos nossos professores mais especiais, porque ele olhava os pacientes diante da morte buscando a vida que ainda é possível ser vivida, e não a morte. Muitos pacientes que vêm ao nosso seminário dizem que a maneira como são vistos por quem cuida deles é definidora. Eles querem ser olhados como se ainda estivessem vivos, porque estão vivos, e é com o nosso olhar que podemos ajuda-los a se conectarem com a vida. Essa foi uma poderosa lição de compaixão para todos nós, psicólogos, médicos, assistentes sociais e todos os que pudemos aprender com aquele maqueiro”, diz Rodrigo.
Alinhado com objetivo da fundação de fazer um trabalho com os pacientes e as famílias, há um grupo de pais enlutados por perda gestacional, organizando um projeto comum, de costura de roupas para bebês mortos, pois muitos pais referem que não há roupas adequadas para vesti-los, especialmente se são muito pequenos, e as roupas são grandes demais. “Este é um projeto em andamento, pois marca a participação da comunidade e uma transformação na forma de se entender a morte. Não há como entregar apenas a roupa, pois sem treinamento adequado pode-se fazer mais mal do que bem aos pais, mas podemos começar produzindo transformações lentamente, com o apoio das instituições de saúde”, afirma Rodrigo.
Um próximo projeto é produzir uma versão moderna do livro “Sobre a Morte e o Morrer”, que completa 50 anos no ano que vem, não necessariamente utilizando as categorias dos 5 estágios, mas explorando as lições e as preocupações modernas de pacientes e seus familiares, como a culpa, o arrependimento, o desamor, o amor, o laço do compromisso, a conexão espiritual, o sentido da vida. O livro “Sobre a morte e o morrer” foi sobre o resultado do estudo clínico realizado por Elisabeth. “Ele não é sobre os estágios do morrer, é sobre as necessidades que os pacientes comunicavam, sobre seus medos, suas culpas, suas urgências existenciais. Queremos fazer algo do gênero nos dias de hoje também, sem pretensões de dar a última palavra, mas apenas contribuir com o que temos aprendido em nossos seminários, onde os pacientes são os professores, e nós somos os alunos”, comenta Rodrigo.
Os cinco maiores estágios, indicados por Elisabeth, são: Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Rodrigo entende haverem críticas a esses estágios, mas oferece uma interpretação alternativa. “As críticas são muito bem-vindas, mas precisam partir de algumas premissas. Elisabeth teve uma forma muito particular de criar núcleos de sentido a partir do que ela ouvia. Não foi um estudo randomizado. Ela escutou os pacientes e fez um modelo a partir do que escutou deles. No entanto, o mais importante no livro é o modelo de ensino e aprendizagem, que pouca gente discute, hoje em dia, e que coloca o paciente como professor. O melhor que podemos fazer para honrar o trabalho de Elisabeth é ir além do que ela ensinou, e acompanhar os avanços dos estudos científicos na temática do luto e dos cuidados paliativos. A moderna tanatologia apresenta hoje outros modelos, como o modelo dual, rompendo com os modelos predominantes no século XX, de fases ou estágios. Para Elisabeth, o mais importante era que os pacientes fossem os professores, reconhecendo a singularidade de cada um. Muitas pessoas perguntavam: qual o estágio que esse paciente está? Ela dizia: não interessa, escute o paciente, lide com o paciente real que está aí, e não com o modelo de estágios”.
Rodrigo ainda comentou que, segundo Ken Ross, filho de Elisabeth, esse modelo proposto por Elisabeth teve grande influência de Ana Freud, filha do Freud. Aquele mesmo. Nesse aspecto, haveria uma influência da psicanálise nesse modelo sugerido por Elisabeth.
Rodrigo não é psicanalista. Sua linha como psicólogo é existencialista, de Sartre. “O que a psicologia existencial de Sartre diz é que cada um de nós vive uma existência singular e temos uma liberdade, mesmo que dentro de certas contingências, de eleger quem seremos. A partir da eleição daquilo que seremos podemos construir nossa história. Podemos fazer decisões que tornem nossa existência mais rica e podemos decidi-la até o ultimo minuto”.
Rodrigo distingue as visões dos filósofos Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Martin Heidegger (1889-1976) sobre a morte. “Para Sartre a morte é um acontecimento. Para Heidegger, é um projeto. Para Heidegger a morte dá sentido à vida. Para Sartre, a morte não dá sentido a vida, o que dá sentido à vida é só a vida. Para Sartre, a confrontação com a morte não é necessária para um estado de autenticidade. Ele não vê o problema da finitude como sendo o problema da morte, mas sim como um problema de liberdade. Quando você se elege como um ser, quando toma decisões para eleger esse seu ser um, você exclui todas as possibilidades de ser outros. Para Heidegger, o problema da finitude é a morte” – afirma Rodrigo.
Para além dessas diferenças filosóficas, Rodrigo indica: “A morte é uma dama da filosofia, que não serve para trazer verdades definitivas, mas para exercitar e questionar o modo como vemos a vida. Diante da morte, somos todos aprendizes”.
Apesar de conhecida especialmente com os trabalhos de assistência com as pessoas diante da morte, a mensagem de Elisabeth era sobre a vida e o amor incondicional. “Ela acreditava que o trabalho dela fosse construir uma sociedade baseada no amor, onde não houvessem mais Hitlers, e sim mais Madres Teresas. Afirma Rodrigo, por fim: “A sofisticação do trabalho de Elisabeth foi justamente reconhecer a singularidade de cada paciente e propor um tratamento absolutamente singular. Muita gente que não a compreendeu critica Elisabeth por ela ter, supostamente, proposto um modelo rígido para o processo de morrer. Mas Elisabeth nasceu como trigêmea, e foi tratada, grande parte da vida, como as suas duas irmãs, de maneira completamente idêntica, o que a deixava enfurecida. Ela fez um esforço em toda a sua vida para se diferenciar das irmãs, de maneira que fosse reconhecida em sua singularidade. O mesmo esforço que a marcou em sua vida foi o que ela fez quando se deparou com pessoas diante da morte: reconhece-las em sua singularidade radical, e propor um tratamento que levasse em conta seus valores e sua história de vida. Isso não é revolucionário?”
Conheça a história de vida de Elisabeth Kübler-Ross
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