Presença ilustre no Festival Piauí Globonews – obituarista do New York Times
Margalit Fox é uma jornalista e escritora americana. Ela entrou para o departamento de obituários do “The New York Times” em 2004, escreveu mais de 1.400 obituários antes de se aposentar do jornal, nesse ano. Decidiu se dedicar à escrita de livros.
No próximo domingo (2) ela estará presente no Festival Piauí Globonews de Jornalismo 2018. Haverá um bate-papo após a seção do documentário Obit, lançado em 2016, sobre o trabalho dos jornalistas da seção de obituários no New York Times.
Seus obituários marcaram presença por saírem do formato tradicional que acompanhava esse tipo de escrita. Eu costumo citá-la em palestras, porque foi seu pensamento que me despertou para o encantamento desse trabalho. Ela diz que a escrita de um obituário envolve resolver o mistério de como uma vida foi vivida. Ela entende a trajetória de uma vida como um mistério, buscando o porquê determinadas ações foram tomadas, como a pessoa percorreu de A para B e depois para C. Margalit também diz pensar sobre como as pessoas incorporaram a era em que viveram e o quanto são produtos do livre arbítrio ou do destino puramente cego. Lindo isso.
Conversamos por telefone. Segue a entrevista, abaixo.
No final da conversa, falamos sobre o tabu da morte. Comentei como esse tabu, no Brasil, envolve um certo medo de mau agouro, como se falar sobre a morte, pudesse, de alguma forma, atraí-la. Ela ficou intrigada com isso. Disse que, nos Estados Unidos, o tabu, o desconforto, costumava ser relacionado à causa da morte. A palavra câncer era um tabu. Suicídio ainda é um pouco, assim como aids. E essa era uma dificuldade para os escritores de obituários, porque a causa da morte faz parte da notícia. Algumas famílias estão confortáveis com isso, outras não. No passado, havia um código eufemístico, como “morreu de uma doença rápida”, o que significava que ataque cardíaco. “Morreu de uma doença longa”, significava câncer. Suicídio nunca era mencionado. Quando você lia nos obituários do Sul, “ele morreu em casa”, poderia significar suicídio.
No meio do ano, você lançou o livro “Conan Doyle for the Defense”, sobre um caso verídico envolvendo o autor de Sherlock Homes. Você vê uma relação entre a escrita de obituários e o trabalho de um detetive?
Eu acho que sim. De duas formas. Escrever obituários é escrever biografias. No livro, não há uma biografia total do Sir Arthur Conan Doyle, mas uma biografia parcial de sua vida. E uma biografia parcial do Oscar Slater, esse judeu que foi erroneamente acusado de assassinato, preso e quase foi executado. (Conan Doyle iniciou uma investigação por conta própria e conseguiu provar que Oscar não era culpado). Nesse sentido, escrever um livro sobre a vida de uma pessoa, e esse é meu terceiro livro, é como escrever um obituário, mas 100, ou 200 vezes maior. São as mesmas habilidades. É mais desafiador e exige um trabalho maior. Meus primeiros livros foram escritos a noite, nos feriados, porque eu ainda trabalhava o dia todo na redação do New York Times. Em junho, eu me aposentei do jornal. Sinto muitas saudades, mas vou tentar escrever apenas livros. Assim, vou conseguir escrevê-los mais rápido.
Quando se apaixonou pela escrita de obituários?
Não é uma carreira no jornalismo que todo mundo busca. Eu não acho que já existiu uma criança que chegou em casa da escola com uma redação dizendo: quando eu crescer, quero escrever obituários. Isso nunca vai acontecer. Eu entrei no New York Times, em 1994, e trabalhava como revisora no Sunday Book Review. Era um trabalho maravilhoso, mas eu não achava tão estimulante. Depois de 10 anos, eu fiquei um pouco deprimida, porque eu tenho um mestrado em jornalismo da Colombia University, eu sempre quis ser escritora. Em 2004, abriu uma vaga no departamento de obituários e tive a sorte de consegui-lo. Era o trabalho que ninguém queria, mas é um trabalho incrível.
O que você aprende com esse tipo de escrita?
Como jornalista, você aprende a não confiar em tudo o que a família te diz. Muitos jornais simplesmente pegam tudo o que a família conta e transforma em um obituário como se fosse notícia. Você acaba ficando muito crítica, no sentido jornalístico. Nesse sentido, é como o trabalho de um detetive, buscando evidências. E tudo o que a família te conta é muito importante, mas você precisa confirmar ou negar em outro lugar. Algumas famílias não gostam disso, claro. Porque eles querem tentar controlar o conteúdo do obituário. O melhor exemplo que eu posso te dar é o de um colega meu. Ele era uma pessoa boa, mas também era um jornalista muito experiente. Ele estava escrevendo sobre um político americano que cometeu um crime. Ele estava falando com a família e, em certo ponto, eu o escutei falando para um dos filhos desse político, de uma forma gentil e firme: você sabe que eu preciso comentar sobre os 4 meses na cadeia do seu pai. Ele foi um jornalista responsável ao avisá-los.
Você quer tratar os familiares muito bem, mas ao mesmo tempo, não podemos perder o olhar crítico que aprendemos como jornalistas.
Quais foram os obi mais difíceis que você escreveu?
As pessoas pensam que os obituários são homenagens. Escrevemos, normalmente, sobre pessoas que fizeram coisas grandes, marcaram a sociedade.
Por exemplo, podemos escrever sobre um sobrevivente de campo de concentração, um ganhador do prêmio Nobel, pessoas que fizeram coisas grandes. Mas também escrevemos sobre os grandes vilões. Eu já tive que escrever sobre criminosos de guerra. O que é muito difícil. No final do ano, você quer ir para casa e tomar um banho. Lavar essas pessoas terríveis de você. Mas temos que nos manter distantes. Recentemente, eu escrevi o obituário do Charles Manson, o assassino mais conhecido nos Estados Unidos. Foi muito difícil fazer isso. Eu tive que ler as notícias de todos os crimes que ele induziu seus seguidores a cometer. É horroroso, eu tive pesadelos por alguns dias, mas tinha que ser feito.
Como você começa a pesquisa de um obituário?
Temos excelentes fontes de pesquisa, como as bibliotecas americanas. Eu vou até a Biblioteca de Nova Iorque e pesquiso na seção Biography in Context. Essa é sempre minha primeira parada. É ótimo para entender, rapidamente, quem seu personagem foi e porque ele ou ela foi importante. Quando você escreve para uma determinada área, como finanças, por exemplo, você já sabe com quem falar, quais são as questões dessa área, as pessoas importantes, você já entende do assunto. O maior desafio com obituários, que é estimulante e aterrorizante ao mesmo tempo, é escrever sobre um tema diferente todo dia. E eu, literalmente, já escrevi sobre o presidente da Estônia, um cartógrafo subaquático, grandes inventores, empreendedores, e eu não sei nada sobre esses assuntos. Então, você começa de uma posição agnóstica todo dia.
As famílias são uma fonte importante. Dependendo do tempo, também falo com amigos, colegas. Meu editor brincava: todo mundo morre depois das 4 da tarde, e nosso fechamento era às 6 da tarde. Então, tínhamos que cooperar. Nem sempre eu teria o dia todo para trabalhar nisso.
Normalmente, as famílias nos contactam e avisam da morte. Às vezes, não há o contato da família e temos que fazer uma investigação básica nos arquivos públicos para tentar achar a família. Eles estão na melhor posição para dar informação essa básica. Onde a pessoa nasceu, onde foi à escola, casamentos que teve… Essas pessoas casaram e se divorciaram várias vezes. Meu recorde foi 9. Um colega fez o obituário de uma pessoa que tinha 14 casamentos. E, normalmente, mencionamos o nome das esposas e como o casamento acabou, os filhos de todos esses casamentos. Pode acontecer do filho mais recente, com quem você está conversando, esquecer acidentalmente, ou não, de mencionar os filhos de outros casamentos. Então, você aprende a perguntar coisas indiscretas: seu pai teve casamentos anteriores, como acabaram, há filhos de outras relações…. Você aprende mais sobre estruturas familiares do que em qualquer outro trabalho, mais do que um terapeuta.
Quando escrevemos sobre uma celebridade, como um ator hollywoodiano, todo mundo sabe seu nome e o porquê dele deve estar em nossas páginas. Mas se estamos escrevendo sobre uma pessoa não tão conhecida, mas importante no seu campo de trabalho, temos que buscar uma fonte que possa explicar sua importância aos nossos leitores. Para justificar dedicarmos esse espaço a eles em nossas páginas.
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