Quem morre são os outros

Camila Appel

E a escrita?,
se pergunta o mesmo Karl Ove em outro momento.
O que é a escrita senão a morte? Letras?
O que são as letras senão ossos num cemitério?

O escritor Rômulo Zanotto fez uma longa pesquisa sobre como a morte foi abordada na literatura e me deu a honra de publicá-la. Ele começa com Fernando Pessoa, que nos oferece a melhor definição de morte que eu já vi. “A morte é a curva na estrada”. “Morrer é só não ser visto”. É isso. Morrer é simplesmente não ser mais visto. Guimarães Rosa não fica para trás: “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. 

Rômulo tem uma inspiração forte para escrever sobre a morte. Ele é marcado pela morte prematura do pai, em decorrência de uma cirrose hepática causada por alcoolismo. Rômulo tinha 12 anos. Ele exumou os ossos do pai e se deparou com uma caveira familiar. T aí a última fala de Hamlet:  O resto é silêncio.

Boa leitura. Eu adorei.

Quem morre são os outros

Por Rômulo Zanotto

 Um ensaio sobre a vida, a morte e a literatura.

Quem sabe o que o amanhã nos trará? foi o último verso escrito por Fernando Pessoa, o poeta que escreveu também que a morte é a curva na estrada e que morrer é só não ser visto, antes de fazer a curva e ficar invisível.

A gente morre é pra provar que viveu, disse Guimarães Rosa, o homem que escreveu que as pessoas não morrem, ficam encantadas, no discurso que o tornou imortal na Academia Brasileira de Letras. Ficou encantado três dias depois.

Quando despertarmos de entre os mortos, perceberemos que nunca vivemos, escreveu o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, no último ato de sua última peça, Quando despertarmos de entre os mortos.

Morre-se sem saber pra onde, escreveu Clarice Lispector, a mulher que na certa morreria um dia. E seria como se já soubesse morrer porque antes tivesse estudado de cor a representação da morte: morrer é um instante, logo passa, eu sei porque acabo de morrer com a moça. A moça era Macabéa, personagem de “A Hora da Estrela”.

A vida é só o tempo de se contar um, calculou Shakespeare, e o resto é silêncio.

Dos parágrafos acima, os autores estão todos mortos, destroços de ossos. Nós que aqui estamos, por vós esperamos, lê-se no cemitério em Paraibuna, São Paulo. A frase virou nome do consagrado documentário de Marcelo Masagão sobre a história do século XX.

Nós, os ossos, esperamos pelos vossos, diz outra variação sobre o mesmo tema: uma inscrição no cemitério de Évora, em Portugal, apropriada como verso por Caetano e Jorge Mautner na mesma música em que eles cantam que no cemitério, pra se viver, é preciso primeiro falecer. E que morre-se assim. E de supetão.

Isso vindo de Caetano, que desde os anos 60 sabe que adiante, um dia, vai morrer; de susto, bala ou vício, e que é amigo de Gilberto Gil, aquele preto que Caetano gosta e que não tem medo da morte, mas medo de morrer sim.

A morte é tão banal, escreveu Paul Auster. E no entanto, quando ela acontece com a gente, como ela é cruel.

O homem diante da morte

Poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos, escreve Karl Ove Knausgard, escritor norueguês, em  “A Morte do Pai”. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em ambientes isolados: os corredores que levam até eles são ermos, com elevadores e acessos privativos, e, mesmo que acidentalmente topemos com eles, serão apenas corpos empurrados sobre macas, sempre cobertos por lençóis. Quando deixam o hospital, fazem-no por uma saída própria e são transportados em carros com vidros escurecidos, nas igrejas são velados em salões sem janelas, durante o funeral estão em caixões lacrados, até afundarem numa cova ou serem consumidos no calor de um forno.

E vai além: Os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em carros comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença faz? Porventura o destino que o aguarda na cova vai ser melhor só porque não o presenciamos? Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa. Ele não vai morrer outra vez.

Quando os heróis morrem

E Karl Ove não para: Mendigos que morrem congelados em bancos de praça ou debaixo de marquises, suicidas que saltam de prédios altos ou pontes, senhoras idosas que despencam de escadarias, vítimas presas nas ferragens de veículos, o garoto embriagado que cai na água depois de uma noitada na cidade, a garotinha que vai parar debaixo do pneu de um ônibus, por que a pressa em ocultá-los? Decoro?, pergunta-se.

E responde com outra pergunta:O que seria mais decoroso que permitir ao pai e à mãe daquela garota encontrá-la uma ou duas horas mais tarde, deitada na neve ao lado do local do acidente, a cabeça esmagada tão visível quanto o restante do corpo, o cabelo empapado de sangue e o casaco imaculado? A céu aberto, sem segredos, do jeito que estava. Mas mesmo uma hora na neve é impensável. Uma cidade que não mantenha seus mortos longe dos olhos, que os deixe jazer nas ruas e calçadas, parques e estacionamentos, não é uma cidade, e sim um inferno. Não importa que esse inferno reflita de modo mais realista e profundo nossa conduta. Sabemos que ela é assim, mas nos recusamos a encará-la. Eis o ato coletivo de repressão simbolizado no ocultamento de nossos cadáveres”, finaliza ele, num raciocínio tão eloquente quanto literário.

De forma menos artística e mais tecnicista, o historiador francês Philippe Ariès também escreveu sobre o tema. No livro “O Homem Diante da Morte”, perpassa os últimos mil anos da história ocidental para contar como a morte passou a este cenário esterilizado dos hospitais que conhecemos hoje, escondida e calada. A partir do Século XVIII, com a noção fortificada de individualidade em detrimento à comunidade, a morte passa a adquirir um sentido dramático e ser encarada como transgressora: considera-se que a morte “rouba” a pessoa de seu cotidiano, de sua vida, de sua família.

Depois, advinda a modernização da medicina e as mudanças dos hábitos sociais, a partir dos anos 1930, a morte “some” definitivamente. Passa a ser socialmente necessário que ela seja ocultada entre as paredes de um hospital, asséptica e imediatamente esquecida. Lava-te do rosto o assassinato, meu príncipe, e lança um lânguido olhar à nova Dinamarca, nos parece dizer a sociedade sobre a morte e sobre o luto, com a mesma pressa de Gertrudes a Hamlet: antes que se gastem os sapatos com que seguiu o enterro de seu pai. Como se o que os olhos não vissem, o coração não sentisse.

E foi assim que, se, um dia, em algumas culturas – como na antiga província de Santa Cruz, a que hoje “vulgarmente” chamamos Brasil – pai, mãe e irmãos não só matavam com as próprias mãos o parente moribundo para aliviar-lhe o sofrimento como também lhe comiam a carne a fim de que uma coisa tão baixa e vil como a terra não lhes consumisse o corpo de quem tanto amavam (que sepultura mais honrada lhe poderiam dar que metê-lo dentro de si e agasalhá-lo para sempre em suas entranhas?), hoje a sociedade isola os velhos e os moribundos naquilo que Norbert Elias chamou de “bastidores da sociedade”.

A Arte de Morrer

Até morrer, vivemos como se fossemos viver para sempre. Só nos lembramos da morte na sua presença iminente: um diagnóstico incurável, o testemunho de um acidente, uma morte na família. Antes disso, quem morre são os outros.

Não a todos, talvez, assim aconteça, diz Guimarães Rosa. Ou, quem sabe, só tenham noção disso os já mais velhos, os mais acordados, complementa. Na obra de Tolstói, Ivan Ilitch descreve de forma eloquente este salto da morte, do abstrato para o particular; do sabê-la intelectualmente para o senti-la na pele; da verdade vaga e genérica da morte para sua verdade pessoal e intransferível; da realidade em terceira pessoa para a realidade na primeira.

O silogismo, escreve Tolstói, Ilitch aprendera na lógica de Kiesewetter. “Caio é um homem, os homens são mortais, portanto Caio é mortal”, a vida toda lhe pareceu correto quando aplicada a Caio, mas nunca aplicado a ele. Que Caio, um homem qualquer, fosse mortal, era perfeitamente justo. Mas ele não era Caio, não era um homem genérico e sim uma criatura distinta de todas as outras. Ele, Ivan Ilitch, era Vânia, com mamãe, com papai, com seu irmão, com os brinquedos, o cocheiro, a babá, depois com a irmã, com todas as alegrias, tristezas e entusiasmos da infância, da juventude, da mocidade. Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listada, de que Vânia gostara tanto!? Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele, daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? Fizera um dia tanto estardalhaço na Faculdade de Direito por causa de uns pierogui? Estivera Caio assim apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal?

Caio é realmente mortal, pensava Ilitch, e está certo que ele morra. Mas quanto a mim, Vânia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e ideias, o caso só pode ser outro! Era assim que ele se sentia: não poderia ser que Ilitch tivesse que morrer. Seria terrível. Como se a morte fosse uma aventura pertencente a Caio apenas, e de modo algum a ele.

Juiz de Direito, vaidoso, Ilitch pensava pela primeira vez na sua pequenez. Ele, que tinha todo mundo em suas mãos  (mesmo as pessoas mais importantes e convencidas), a quem bastava escrever determinadas palavras para que aquelas pessoas importantes, autossuficientes, fossem conduzidas à sua presença na qualidade de acusados ou de testemunhas; a quem, se ele não convidasse para sentar, ficariam em pé, na frente dele, respondendo as perguntas que ele fizesse, se via agora vulnerável, pequeno, ínfimo, infinitesimal.

Tolstói

De tanto descrever pormenorizadamente o trespasse de seus heróis, Tólstoi se tornou uma espécie de especialista em morte da literatura. Em “A Morte de Ivan Ilitch”, além de ilustrar muito bem que quem morre são os outros, o russo também consegue evidenciar com precisão como a iminência da morte destrói todos os véus (ou biombos, como chama o escritor) que a separam da vida.

Durante um conserto doméstico (Ilitch foi retirar uma cortina), o personagem cai, acidenta-se num móvel, e tem início a sua saga moribunda. Num dos capítulos, em um flashback, o personagem remonta obsessivo ao momento em que tudo – a sentença de morte – aconteceu, tentando concertar tudo (concertar mesmo, orquestrar, colocar ordem e sentido): Então é verdade que aqui, junto a esta cortina, eu perdi a vida?, pergunta-se el.Será mesmo? Como é terrível e estúpido. Isso não pode ser.

Ao pensar na morte, Ilitch sai evocando, um após outro, pensamentos que substituam aquele. Enxota-os como falsos, incorretos, doentios, colocando outros em seu lugar.

Tentava voltar aos velhos caminhos de pensamento que anteriormente ocultavam para ele a ideia da morte, escreve Tolstói, mas, fato estranho, tudo o que antes ocultava, escondia, anulava a consciência da morte, não podia mais ter este efeito.

Já que tantas vezes era o trabalho que tinha dado sentido à sua vida, Ilitch chega a se ocupar do trabalho para esquecer: ia para o tribunal, conversava com os colegas, sentava-se e dava início ao julgamento.

Mas, de repente, em meio à sessão, a dor do lado iniciava. Sem dar nenhuma atenção ao desenvolvimento do caso judiciário, iniciava o trabalho com o seu caso. Ivan Ilitch prestava atenção, entoava o pensamento a respeito dela, mas ela continuava sua faina, e ela vinha e parava bem diante dele, e olhava-o, e ele petrificava, o fogo se apagava em seus olhos, e ele começava de novo a interrogar-se: “Será possível que somente ela seja verdade?”. E seus colegas e subalternos viam com espanto e desgosto que ele, um juiz tão brilhante e sutil, se confundia, errava. Ele se sacudia, se esforçava em voltar a si, conduzia a sessão de qualquer maneira até o fim e regressava para casa com a triste consciência de que a sua função judiciária não podia mais, como outrora, esconder dele aquilo que ele queria esconder.

Procurando escapar a esta condição, Ivan Ilitch procurava outros biombos além do trabalho. E eles apareciam. E, por algum tempo, pareciam salvá-lo. Mas, depois, não é que os biombos desaparecessem: tornavam-se transparentes. Como se ela, a morte,atravessasse a tudo e nada pudesse encobri-la.

É o que acontece quando há algo de podre no Reino da Dinamarca. Quando as máquinas (o corpo) param. Quando o que era doce se acaba. Quando um indivíduo, por algum motivo, como à queda de uma cortina (véu?), se vê à margem da sociedade, à margem do corpo, à margem da vida. Quando, por motivos alheios à nossa vontade, somos impedidos de continuar nossas escalada social e obrigados a repensar nossos valores, nossas escolhas, nossas condutas, nossos limites, nossas ambições. Quando já nada – família, posses, livros, trabalho – pode nos distrair de uma condição: se não estiver por vir, será agora. E se não for agora, mesmo assim virá. Estar pronto é tudo.

E o pior era que ela não o atraía para si não para que ele fizesse algo, mas unicamente para que a olhasse. Bem nos olhos. A olhasse e se atormentasse, frente a frente, mas sem ter o que fazer com ela. Somente olhá-la e gelar.

 A Hora da Estrela

Outro que viu a cara da morte – desta vez sendo autor, não personagem – foi Caio Fernando Abreu. Ao ser diagnosticado com AIDS, um sentença de morte em 1994, o escritor gaúcho publicou uma sequência antológica de crônicas em sua coluna quinzenal no jornal O Estado de São Paulo chamada “Cartas para Além dos Muros” – crônicas que se preparam para virar filme em 2019.

Nelas, Caiovê a cara da morte. Tão próxima que consegue ver o rosto inteiro dele, refletido nas pupilas dilatadas dela. Não é medonha, só que não aceito seu convite para dançar. Pelo menos por enquanto, escreve ele.Até concluir que não há outro jeito: é preciso suportar e beijá-la na boca.

Em quem está com Aids o que mais dói é a morte antecipada que os outros nos conferem, vaticina ele na terceira e última das cartas. Talvez por isso o autor conseguisse contar com tanta força o que visse, como a visão do próprio rosto dele refletido nas pupilas dilatadas da morte: porque já estivesse lá, sem que ainda tivesse deixado de estar aqui.

Tal qual o personagem de Tolstói se entregando ao seu ofício para fugir do pensamento-morte, Caio também mergulha na escrita, o seu ofício, na hora da morte. Mas, diferente de Ilitch, o seu mergulho ao trabalho não tem a ver com negação, e sim com entrega. Pensar na vida, na existência, no ser ou não ser, no ser e re-ser.

Eis a questão: em um de seus contos, Caio explica que contar uma história é desemaranhá-la aos poucos,como quem retira um feto de entre vísceras e placentas, lavando-o depois do sangue e das secreções para que se torne preciso, definido, inconfundível como uma pequena pessoa. E finaliza: O que conto agora é isso: uma pequena pessoa tentando nascer.

Pois na hora da morte, o que Caio nos mostra é isso: uma pequena pessoa querendo morrer. Em paz, de bem com a vida.

Me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé, escreve. Chorei algumas vezes porque a vida me dá pena, e é tão bonita. Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo.

Em outras cartas pessoais, reunidas postumamente em uma bibliografia epistolar, Caio escreve que se sente estranhamente bem, se respeita como nunca, e que depois de toda aquela saia justa, viver lhe parece um luxo. Mesmo nos detalhes mais aporrinhantes. Sou um tigre ferido defendendo a patadas furiosas o que me resta da vida, escreve. O tempo que temos, se estamos atentos, será sempre exato.

Jung escreve que à noite, quando dormimos, a consciência se liberta do corpo planando sobre nossas cabeças. Toda essa consciências dos dormentes planando juntas, na mesma hora do dia, sobre nossas cabeças, torna mais “visível”, nessas horas, o inconsciente coletivo. Por isso mais escritores tendem a criar em horas elevadas da noite: por captar, nesse contexto, os segredos da humanidade.

Sendo a morte a grande noite da alma, não estariam eles, à beira da morte, captando segredos do outro mundo?

Fim de Partida

O show (a vida) não pode parar. Morrer? É pra depois.

Viver, escreve Guimarães Rosa, éobrigação sempre imediata.Talvez por isso Maria Alice Vergueiro, a octagenária atriz de teatro, tenha querido “ensaiar a própria morte” no espetáculo “Why the Horse”.

Após ter tido um AVC, ser diagnosticada com Parkinson, perder a irmã e passar por uma série de internações e infecções, Maria Alice quis “contar” o que é a morte de um ponto de vista muito particular: de quem está mais perto dela do que da vida. Não apenas porque o show tem que continuar, mas porque tinha algo a dizer.

Fábio Furtado, dramaturgo, conta que a ideia inicial era montar “Fim de Partida”, de Beckett. “Maria Alice, entretanto, não se entusiasmava”, conta ele. “O que ela queria era algo diferente. A questão da morte estava presente para ela de uma outra forma, e ela dizia que não entendíamos porque somos mais jovens.” Foi quando enveredaram, então, por um caminho novo, que partia do repertório, percepções e angústias de cada um em relação ao tema.

A partir daí, os atores começaram então a explorar as suas relações com a morte (como queriam morrer e o que queriam matar), bem como a relação específica com a morte de Maria Alice, que seria velada em cena. “Como se os atores, entendendo o desejo dela de ‘morrer’ em cena, ensaiassem pequenas mortes para que Maria Alice tivesse forças para ensaiar a sua”, explicando o dramaturgo.

E já que está viva, é da própria boca que Maria Alice escuta que está morta: numa metarreferência linguística, um televisor traz à cena um  close enorme da boca imensa de Maria Alice, ainda jovem, num take gravado e usado na época para outro espetáculo, desesperada ao saber da morte de alguém, outra pessoa.

Assim, a bocarra de Maria Alice pergunta-se incrédula, em terceira pessoa, ao ver-se morrer:  Quem!? Não!? Ela!? Tal como se, como Ilitch – e como atriz que é! – também tivesse acreditado demais na própria imortalidade.

Morrendo em terceira pessoa

A morte sempre foi uma presença constante nas artes e letras. Mesmo se nos afastarmos da literatura e adentrarmos o jornalismo, “exemplos de morte” não faltam. Não aquela mortandade em massa exibida todos os dias nos telejornais e noticiários, esta sim, paradoxalmente permitida, estranhamente naturalizada. Mas exemplos que se aproximam do literário, do estético, do artístico.

Para começo de conversa há, por exemplo, o propalado romantismo dos obituários, onde só se fala sobre a morte no último parágrafo. Todos os anteriores são sobre a vida, e o resto é silêncio.

E digo romantismonão apenas no sentido estético, mas também no modus operandi e em todo o processo de feitio que envolve este tipo de noticiário. Basta imaginar o seguinte: neste instante, em todas as redações do mundo, nos principais jornais do planeta, centenas – quiçá milhares! – de famosos e personalidades têm seus obituários prontos, aguardando apenas a causa e o momentum mortepara serem finalizados.

Parece uma lógica cruel, mas trata-se, em geral, de uma maneira de respeitar figuras públicas, garantindo que o que será falado sobre elas será justo, preciso e único. Jair Bolsonaro, Donald Trump, Mick Jagger, Roberto Carlos, Sílvio Santos, Oprah Winfrey, Caetano Veloso, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, e centenas de outras personalidades, visadas demais ou com mais passado do que futuro pela frente, têm seus obituários prontos, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar.

Em 2012, o jornal carioca O Diafez história com um obituário. Morreram Chico Anysio, trazia a manchete do jornal no dia da morte do comediante. Anunciava a morte dele no plural, ao lado da galeria de fotos dos seus personagens.

Gay Talese, o lendário jornalista literário norte-americano, escreveu o perfil “Sr. Má Notícia”, sobre o obituarista mais famoso do New York Times. Talese conta a história real do editor do jornal que, ao se recuperar de um ataque do coração, recebeu por engano o próprio obituário para revisão e teve outro ataque. Talvez porque quase ninguém esteja preparado para contemplar a sua própria imagem falecida e, pior: a sua ausência no mundo.

Além do tal editor, o escritor Ernest Hemingway foi outro caso raro de alguém que pôde ler seu próprio obituário. No caso do escritor, dezenas deles. É que, dado como morto em um acidente de avião na África e tendo sua morte anunciada, Hemingway teve o privilégio de ler o que todos falariam dele depois de morto. Até tirar a própria vida, o escritor criou o hábito de, vez ou outra, ler um dos obituários acompanhado de uma taça de champanhe.

A Mulher que Alimentava

Mortos anônimos também são diariamente biografados postumamente para os jornais. Se em “Hamlet”Horácio mantém seu sopro de vida neste mundoapenas para contar a saga de vida e morte do príncipe dinamarquês, no Brasil a jornalista e escritora Eliane Brum fez “a Horácia jornalismo”: acompanhou os últimos 115 dias de vida da merendeira Ailce. Contou a história no obituário “A Mulher que Alimentava”, publicado pela revista Época.

Ailce, a personagem: merendeira, aposentada, portadora de um câncer. Eliane, a escritora: uma repórter que não sabia o que estava fazendo, descreveu a própria. Uma mulher que tinha decidido acompanhar até o fim outra pessoa com uma doença incurável, mas não tinha a menor noção de tudo que aquilo significava.

Eu escreveria sua história, e ela estaria morta, assusta-se Eliane ao dar-se conta da empreitada em que se meteu. Ninguém confiara em mim como ela. Pela primeira vez, a personagem principal de uma reportagem – por premissa, não por acidente – não estaria vivo para lê-la. Ailce se entregara inteira nas minhas mãos de escritora.

E Eliane, que em todas as reportagens tem “o defeito” – segundo a própria – de escrever mais do que cabia, sofreu ainda mais nesta com cada frase que ficou de fora.Cada corte era uma traição a Ailce,explica,um pedaço da vida dela que deixava de existir ao não se transformar em história contada.

Quando tudo era desordem na vida dela, a transtornada Ailce (palíndromo da personagem de Lewis Carrol, Alice transformada na hora da morte?), a presença de Eliane a lembrava que ainda havia essa história, ainda existia uma mulher chamada Ailce, que havia criado dois filhos, construído uma casa grande e matado a fome de centenas de crianças.

O que você quer ser quando morrer?

Shakespeare escreve que sabemos o que somos, mas não o que podemos vir a ser. Guimarães Rosa diz que a morte amedronta não por se perder o que possui, o que se é, ou o que se foi. Não pelo presente ou pelo passado. O que se teme, na morte, é perder o futuro: O possível de coisas ainda por vir, no avante viver, o que talvez longe adiante me aguardava. A vida está toda no futuro.

O que você quer ser quando morrer

É o que parecem afirmar as mortes de outros dois personagens da história da literatura. Em “A Hora da Estrela”, a maior frustração de Macabéa ao morrer acontece exatamente porque ela percebe que justamente ali, naquela hora, pela primeira vez, ela era uma pessoa grávida de futuro.

Em “Hamlet”, alguns versos finais ecoam com precisão o lamento da humanidade por tudo que há porvir, mas que não vem nunca mais quando os galos são abatidos e não há mais amanhecer. Seele tivesse vivido e ocupado o trono, teria se tornado um grande soberano, lamenta Fortimbrás sobre o cadáver do príncipe morto, que nunca se transformou num rei.

Se…partícula apassivadora que opera a vida. E como saber o que seria se assim não fosse, se assim não sendo seria uma outra história?

Hamlet teria sido mesmo um grande líder? E Guimarães Rosa? Teria ganhado o Nobel se não tivesse “encantado”? Macabéa teria sido feliz se não tivesse morrido?

Quando soube de sua morte anunciada por uma doença incurável, o filósofo oitocentista David Hume escreveu uma despedida curta tecendo odes à vida. Aos moldes dos obituários, Hume também passou todos os parágrafos falando sobre a vida, passando ao passado só no final:Eu não sou, eu fui, corrige ele, porque esta é a maneira que devo falar de mim mesmo agora: eu fui!

A morte está no meio da travessia

Adentrando o cemitério enquanto o coveiro atira para o alto um crânio, Hamlet fica perplexo ao pensar que aquela caveira já teve língua e pôde cantar um dia. Depois, com a caveira de Yorick, o Bobo da Corte que o carregou no colo nas mãos, o príncipe da Dinamarca fica estarrecido de vez: Eu o conheci, Horácio, um tipo de infinita graça e da mais excelente fantasia. Carregou-me nas suas costas mais de mil vezes e agora… como é horrível imaginar essas coisas! Aqui ficavam os lábios que eu beijei nem sei quantas vezes. Onde estão agora os gracejos dele? As suas cabriolas? As suas canções? Seus lampejos de espírito que eram capazes de fazer gargalhar todos os convivas? Nenhum mais agora, para zombar dos seus próprios esgares? Caiu-lhe o queixo? Vai agora aos aposentos de minha dama e diz a ela que, por mais grossas camadas de pintura que ela ponha sobre a face, terá de chegar a isto. Vai fazê-la rir com essa ideia.

Quarto e túmulo, túmulo e útero, útero e morte. Estas palavras não rimam, mas o escritor norte-americano Paul Auster não consegue deixar de pensar nelas juntas.

Outros, como Beckett, não conseguem mais olhar para uma criança sem pensar que ela envelhece, nem para um berço sem pensar num túmulo.

Em outros, como Karl Ove, a visão de uma bela mulher nua logo leva a imaginar aquele corpo em decadência, apodrecendo na cama de um hospital. Como neste trecho, em que o autor conta sobre a vez em que, ainda criança, encontrou a foto de uma mulher nua: Era tão magra que as ancas mais pareciam tigelas vazias. Todas as costelas eram claramente visíveis. No meio das pernas ela tinha um pequeno tufo preto. Mais atrás via-se uma fileira de camas, onde pude notar os vultos de outras mulheres. Estremeci por dentro. Não havia absolutamente nada de atraente naquela fotografia, mesmo que ela estivesse nua, e também porque na página seguinte havia a fotografia de uma enorme pilha de cadáveres em frente a uma profunda cova onde vários outros cadáveres estavam jogados. Me dei conta do seguinte: pernas eram apenas pernas, mãos eram apenas mãos, narizes eram apenas narizes, bocas eram apenas bocas. Coisas que haviam crescido em outros lugares e acabaram jogadas na terra. A mulher parecia uma morta-vida. Ou a morte como vida.

E a escrita?, se pergunta o mesmo Karl Ove em outro momento. O que é a escrita senão a morte? Letras? O que são as letras senão ossos num cemitério?

No conto Páramo, de Guimarães Rosa, o personagem-narrador deixa no cemitério o volume de um livro que o acompanha a história e a vida inteira. Ao sair do cemitério tentando deixar o livro, não consegue: o volume é devolvido a ele por um homem que havia ajudado a carregar um morto num enterro. O gesto evidencia, de acordo com críticos, a impossibilidade de, em vida, se escapar da linguagem.

Afinal, cala a boca já morreu.

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Rômulo Zanotto é escritor, jornalista e publicitário. Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná, vive em Curitiba.