Filhos do câncer e uma despedida para Frida

Camila Appel

Frida, diminutivo para Elfriede, tem câncer metastático no fígado, ossos e pulmão desde 2010. Foi na doença que ela encontrou uma nova forma de estar no mundo: como porta-voz de um tema delicado, desmitificando tabus, ajudando a informar e apoiar famílias que recebem esse tipo de diagnóstico.

Os canais de acesso à Frida são o Facebook, Instagram e o aplicativo do Oncoguia.

         Aos 63 anos, ela descobriu mais uma metástase e faz um tratamento de quimioterapia experimental, agressivo. Frida tem pressa. Quer ajudar o maior número de pessoas possível. Gaúcha, filha de imigrantes alemães, mora na Vila Brasilândia em São Paulo com seu marido, há 35 anos, Jadyr Galera, e os dois filhos. Uma família linda de ver. Os olhos de Jadyr brilham de admiração pela esposa, melhor amiga, cúmplice de vida.

Neta de uma ilustradora, estudou artes plásticas, se especializou em comércio exterior, trabalhou em uma multinacional, mas gosta mesmo é de velejar. Construído na garagem de casa por 26 anos com o marido, o veleiro “Augenblick” ficou pronto em 2014. O nome significa “Momento”,  em alemão.

Velejar foi tão importante nessa fase, que resolveu criar o projeto “Velejando Contra o Câncer de Mama”, para sentirem juntos a brisa do mar.

Não é desinibida só na fala. Já posou nua para o UOL, em uma reportagem sobre pacientes com câncer metastático.

Apesar do diagnóstico em 2010, só conseguiu ser atendida pelo SUS dois anos depois. “Minha luta tem sido árdua, mas ela não é impossível. O SUS não é ruim, o problema é não ter medicamento disponível a todos. Eu preciso lutar por uma medicação que está em falta, o tempo todo. Para o médico, também é muito doloroso ver um paciente morrendo, sabendo que existe remédio para aquela pessoa, só que não ele está disponível… o que sobra para nós, é a ação judicial”, diz.

Toda vez que ela era procurada por uma mulher com problemas de acesso a medicamentos, Frida e seu marido indicavam um advogado disponível e mostravam seus próprios processos administrativos, como uma referência. Impossível mensurar o número de vidas que salvaram com esse tipo de apoio.

A falta de acesso à medicação é uma de suas bandeiras, mas não a única. “Fiquei chocada porque eu não posso usar a palavra câncer, muito menos metástase. Eu sofri muita discriminação. Imagina como se sente uma pessoa em uma sociedade que acha que câncer é igual a morte? As pessoas se afastaram, não me convidam mais para festas, não convidam para nada. Não podemos fazer esporte… Mas eu, por exemplo, velejo todo final de semana!”.

A boa morte

Frida deseja uma morte em que seja respeitado seus desejos. “Eu vejo coisas absurdas acontecendo. Um amigo meu está mantendo a mulher viva há mais três meses. Para mim isso é egoísmo, ele nem pergunta se ela quer ficar ali, daquele jeito, entubada, viva. Ela ficou acamada em pé, para receber mais oxigênio. Isso é fazer sofrer. Essa distanásia começa com nossos animais de estimação. Você quer enfiar comida nele, mas ele não quer comer, ele quer partir. Ele não come porque o rim não processa mais, o sistema vai parando. Nós desligamos nossas luzes internas e isso tem que ser respeitado”, desabafa. Eu tive essa conversa com Frida há dois anos e passei por essa situação logo depois. Tentei forçar comida no meu cachorro que estava morrendo. E, depois, vi meu sogro ser obrigado a comer, por sonda. Mas nessa segunda situação eu já consegui agir de uma forma diferente.

Distanásia é o processo de prolongamento da vida a qualquer custo. É o oposto da eutanásia (encurtamento da vida). A ortotonásia é a morte natural, sem prolongá-la com o uso da tecnologia ou abrevia-la com medicamentos. A ortotanásia é o processo dos Cuidados Paliativos. Frida é paciente de cuidados paliativos há 9 anos. “Para mim, a morte vai ser um dia muito importante que eu quero viver, quero experienciar. As pessoas fogem do assunto, porque você não costuma falar. Eu queria que todo mundo morresse sem dor e sem falta de ar, que são as duas coisas que você pode aliviar nesse momento”.

Suas vontades foram registradas em um testamento vital, documento utilizado para descrever vontades no final da vida.

Quando comentei sobre fazer esse post, ela respondeu: Vamos! Antes que eu vire purpurina! Revi minhas anotações sobre ela, nossa conversa para a preparação de um programa sobre morte no “Conversa com Bial”, e encontrei mais uma referência ao brilho. Frida diz que sua essência vai virar purpurina, e as cinzas serão colocadas em uma caixa bem pesada, feita de concreto ou tijolo. “Em uma bela cerimônia, com todos meus amigos velejadores, vamos em um determinado lugar para jogar minha caixinha para o fundo do mar. Ela será lançada lá e vou virar um coral”.

Filhos do câncer

Frida encontrou prazer em ter um canal de comunicação com pacientes oncológicos e familiares. Ela é voluntária do aplicativo do Oncoguia. Uma das questões que mais recebe se refere a como tratar um familiar que está com câncer. Para uma menina que disse “não sei o que falar com mamãe, estou ilhada de medo e depressão”, Frida respondeu “faça todas as vontades da sua mãe, realize os sonhos dela, faça ela relembrar esses momentos bons”. Frida conta de um menino que levou a mãe para o Rio de Janeiro, realizando o sonho de visitar o cristo redentor.

O filho de uma paciente desabafou: “escuto minha mãe chorar no banheiro. Como posso ajudá-la, como posso chegar perto nesse momento?”. Frida recomenda: “chegue perto, não diga nada. Jamais diga para sua mãe: não chore. Abrace e chore com ela. Isso vai fortificá-la”.

Ao passar pelo andar do diagnóstico no hospital, Frida diz ser muito comum ver a família toda junta e escutar um dos filhos falando não chora mamãe, você prometeu que não ia chorar”. Frida não pensa duas vezes, “eu entro no meio, abraço todo mundo e digo: vamos chorar todos juntos, ela precisa chorar e nós também”.

Frida se refere a essas pessoas que buscam sua orientação como “filhos do câncer”.

“A maioria dos filhos do câncer, se encontram em um desespero tão grande… Buscam um apoio, mas não é o apoio que eles encontram em sites e ONGs. Querem apoios em relação aos pensamentos. Aquilo que uma pessoa que está com câncer pensa. Eles não conseguem entrar nesse pensamento. É muito mais difícil para um filho ver uma mãe, um pai, ou um ente querido com câncer do que ele próprio. A minha resposta para esses filhos é aproximar-se e começar um diálogo bem devagarinho., comendo pelas beiradas. Nada muito bruto, invasivo. Esse é um momento para descobrir o que esse ente querido deseja fazer com seus dias. Não vamos pensar que ele vai morrer amanhã, mas a família, os filhos, os netos, podem realizar sonhos. Então, descobrir o que ele gosta de fazer, o que faz tempo que ele não faz, parentes que não visita há anos… Entre uma quimioterapia e outra, é possível viajar, visitar parentes. É possível visitar um local desejado. Às vezes, uma família inteira faz uma excursão. Isso faz muito bem para quem pratica essa ação e para quem recebe. Para quem pratica é como se fosse um carinho no coração, uma paz. Para o paciente, isso é vida”.

Infelizmente, hoje, ela não está mais aconselhando. Frida está partindo, já inconsciente. A mim, só resta dizer: foi uma honra te conhecer. Vá em paz, minha querida Frida. Que sua purpurina brilhe no céu de hoje, de amanhã, de depois de amanhã, e nos ajude a encontrar um pouco mais dessa lucidez que você esbanja de sobra. Sua voz vai fazer falta.

Atualização: Frida faleceu alguns minutos após essa publicação…