A minha novela não é a das 19h

Cynthia Araújo é pesquisadora em filosofia do direito e advogada da União. Ela tem uma tese de doutorado incrível sobre “O Direito à Esperança” – em que conversou com mais de 40 pacientes com cancer avançado no Brasil e na Alemanha. Não vou detalhar porque quero escrever em breve sobre ela. Cynthia sempre me encaminha artigos e notícias relacionadas à morte. Acabamos criando uma troca muito rica. Hoje, ela escreveu um depoimento particular inspirada na novela das 19h da TV Globo, “Bom Sucesso”, que aborda de forma direta e delicada a finitude. Segue seu texto.

A Minha Novela Não é a das 19h

Por Cynthia Araújo

Eu sempre pensei muito na morte. Mas numa morte depois de muita vida, sem doença, sem dor.
Lembro de, ainda criança, idealizar a partida do meu núcleo familiar: eu, meus pais e minha irmã. Estaríamos em um helicóptero que subitamente cairia, mas sem qualquer desespero. Eu já teria noventa anos – o que significa que meu pai teria cento e vinte, mas nunca me ocorreu que isso seria um problema. Também nunca pensei no destino do piloto.

Com o tempo, esqueci a morte aérea, mas continuei pensando no fim. Algo me dizia que, desde que eu tivesse o assunto em mente, ele não me pegaria de surpresa. Mas pegou.

No dia 22 de março de 2012, meu pai e eu estávamos chegando em Petrópolis, onde nasci e onde mora a maior parte da minha família, para encontrar a minha mãe. Paramos para almoçar já na entrada da cidade e eu não vi chegar uma mensagem dela. Sete minutos depois, o meu telefone tocou insistentemente, para avisar que minha mãe estava sendo levada de ambulância para um hospital. “Ela está consciente?”, foi o que consegui perguntar. “Não sei”.

Sete minutos. No caminho para o hospital, comecei a oferecer tudo que podia a Deus. “Deus, sei que não temos conversado muito, mas é caso de vida ou morte – literalmente. Eu sei que você leva pessoas o tempo todo. Mas, veja só, minha mãe não é como nós, resto do mundo. Ela é melhor. Você não pode privar o mundo da presença dela tão cedo”.

Foram dois AVCs hemorrágicos – algo que a ciência não conseguiu explicar. As causas suspeitas eram todas terríveis, o possível prognóstico pior ainda. No dia seguinte, a irmã da minha mãe já dizia “mas quem sabe não acontece um milagre e não descobrem nada na cabeça da sua mãe”. Eu já estudava assuntos de saúde o suficiente naquela época, para saber que, bem, milagres são o que são: milagres – e eu não iria contar com um.

Li no Notícias da TV que a nova novela da Globo, “Bom sucesso”, teve o melhor início no Ibope para o horário das 19h em doze anos. É impressionante, porque, afinal, a obra aborda o grande tabu da vida moderna. Para Vinícius Andrade, “apesar do mote inicial ser um tema espinhoso, a morte é retratada com leveza pela dupla de novelistas”. Não sei se é possível falar em leveza diante da informação tão objetiva de um prognóstico sombrio – alguns meses de vida –, como foi a opção da novela. Longe de mim saber como uma obra de ficção deve ou não abordar seus temas, mas a morte, especialmente aquela que decorre da doença grave, é algo pesado, sempre é.

Um assunto sério sobre o qual especialmente nós, brasileiros, evitamos falar, ainda mais se vier conjugado com a palavra câncer. Isso inclui os próprios médicos. Gawande, em um livro que todo humano deveria ler, traduzido para o português como “Mortais”, registra que os médicos superestimam em muito o prognóstico de seus pacientes. Outros estudos demonstram que, mesmo quando isso não acontece, a comunicação do médico é falha e, na maioria das vezes, o paciente não entende que sua vida está chegando ao fim.

“Bom sucesso”, no entanto, novela que é, foi pelo caminho improvável. A clareza com que se informa – duas vezes – a iminente morte dos protagonistas (primeiro Paloma, por equívoco, depois Alberto) é, talvez, o aspecto mais ficcional da obra. Digo isso com tristeza e preocupação, mas se trata de um inegável drama da vida moderna, que não é privilégio do Brasil. Não conseguimos deixar claro para os nossos pacientes que sua doença, independentemente do último tratamento da moda disponível, vai mata-los. E, ao assim fazer, impedimos que vivam o restante de suas vidas como viveriam se compreendessem o pouco tempo que lhes resta.

Mas o que então justifica a audiência da obra? O alívio da personagem, mais jovem, que descobre que não vai mais morrer? A transferência do azar (?) para alguém mais velho, mais preparado para esse destino?

Numa possível referência a Ivan Ilitch de Tolstói, Alberto, personagem de Antônio Fagundes, disse, em uma cena do dia 3 de agosto, que sentia estar morrendo e não aguentava mais o falso otimismo ao redor dele. Alguns dias depois, ele entendeu que “a morte lança um novo olhar sobre a vida”. Longe do desespero da personagem da Grazi, que cuida, com dificuldade, sozinha, de três filhos, o fim da vida para Alberto, já cuidado, parecia muito mais aceitável. Mais do que aceitável, belo, poético.
Essa, possivelmente, é uma leitura muito pessoal. Mas me parece inegável que a história de “Bom Sucesso” pode nos ajudar a ressignificar a morte, mostrando esse novo olhar sobre a vida. Para a vida vivida, para a vida por viver, ainda que por pouco tempo. Para a autonomia pela qual luta Alberto, que mostra que a doença não o torna incapaz de tomar suas próprias decisões. Sabemos que alguns momentos podem valer uma vida inteira. E, na vida que a consciência da finitude pode revelar, podemos encontrar beleza que supere a dor do fim.

Espero que esse seja mesmo o propósito da obra. Nada seria mais ficcional na novela do que a salvação do Alberto, especialmente por algum suposto tratamento. Falsas esperanças já são suficientemente alimentadas na vida real, limitando a vida presente pela ilusão de um futuro que não virá.

Não encontraram nada na cabeça da minha mãe. Não sei se por milagre, mas a profecia da minha tia se concretizou. Sete anos depois, minha mãe está viva. Suas sequelas motoras, embora sérias, são imperceptíveis à maioria das pessoas. Mas não foi esse o destino de quase todo mundo que também encarou maus prognósticos. O milagre é o que é: um milagre. Podemos torcer por ele – é natural e bastante humano fazer isso. Mas não podemos e não devemos contar com ele. Colocar a morte em perspectiva faz bem à vida. E não adianta apenas ter o fim de modo irrefletido em mente. Porque, para o susto, bastam sete minutos.

Contato: Cynthia.paraujo@gmail.com