Sobre matar, comer e morrer
O professor do Instituto de Matemática da USP Salvador Zanata me enviou um relato instigante sobre matar, comer e morrer.
Após a morte do pai, ele passou a reparar nos detalhes do dia a dia que antes não chamavam atenção. Chega a dizer que começou a viver só depois desse momento, de tão desapercebida que a vida corria na sua frente.
“Eu comecei a ver a beleza do mundo, detalhes que passavam batido… Íamos juntos para a musculação e meu pai dizia: olha que grama verdinha, que lua bonita… Eu ouvia o que ele dizia, mas nao entendia de verdade. Depois, de repente, passei a ver tambem. Quanta gratidao senti.”.
A consciência da finitude o trouxe ao presente, como um choque de realidade, que Salvador chama de detalhes da vida cotidiana.
Um desses detalhes fisgou sua atenção logo em seguida.
Ao fazer compras no mercado, começou a refletir em cima de uma imagem: a da carne ensacada. Aquele pedaço de animal instigou uma reflexão muito interessante.
Salvador nunca divulgou esse texto. Até hoje.
Sobre matar, comer e morrer
Por Salvador Zanata
Nos últimos 30-40 anos, muito tem se discutido sobre alimentação e dietas. O que é saudável, o que não é, o que prolonga a vida, o que a encurta.
Eu queria falar de um outro ponto de vista, da relação entre o ato de se alimentar e a nossa alma. É fato que no mundo existem pessoas que não comem animais, mesmo aqueles que não comem nenhum produto de origem animal, nem mel, nem ovos, leite, etc… Mais pra frente comento alguma coisa sobre eles. Por hora, gostaria de falar sobre o ato de comer animais mortos. Essa é uma prática muito antiga, provavelmente anterior à origem do nosso
primeiro antepassado separado dos demais grandes primatas. Apesar dos nossos parentes mais próximos, bonobos e chimpanzés, comerem menos carne que a média dos humanos, eles a adoram, a partilha de pedaços de presas entre eles é coisa muito séria, quase sagrada. E não poderia, ao menos, não deveria ser de outra forma. Matar um animal, privá-lo de sua existência em nome de se alimentar deveria ser um ato sagrado.
Fico pensando no que é olhar um cabrito, galinha ou porco nos olhos antes de matá-lo. Saber que a vida dele será tirada em nome da nossa sobrevivência. Ou do nosso prazer. Quanta dor por ele! Quanto respeito por aquela carne e quanta responsabilidade. O peso de honrar aquela morte, viver sabendo que a nossa sobrevivência dependeu da morte de outro.
Lamentavelmente, ao menos para quem vive em cidades grandes, acho que esse é um pensamento pouco frequente. Compramos carne já embalada, cortada, sem gordura, penas, couro, escamas, miúdos, descaracterizada do animal ao qual pertenceu, em nome de facilidade no preparo, da limpeza. Mas acho que o motivo real não é esse. Ninguém quer se haver com o animal que está comendo. Pensar o quanto o seu prazer à mesa foi obtido as custas da morte de outro e o que é talvez ainda pior: De uma vida horrível levada pelo bicho. Todos sabem o quanto é desgraçada a vida de frangos, porcos e mesmo bois criados para o abate. Infelizmente, com a população do mundo tão numerosa, talvez não haja outra forma de produzir alimento para tanta gente. Apesar de muito triste, não é sobre a vida desses bichos que eu gostaria de falar. Nem sobre a covardia do homem em olhar para isso, sofrer com isso, e mesmo assim continuar a criá-los da mesma forma e a se alimentar deles. Como já disse, talvez não seja possível mudar, ao menos de maneira profunda, esse sistema de criação. O que pode ser mudado é a atitude perante quem morre, contra sua vontade, para servir de alimento.
Pelos menos os animais não precisam sentir-se discriminados. Agimos de maneira semelhante no que se refere a nós mesmos. Ao menos na era moderna, morrer deve ser bem difícil. Todo mundo foge de quem está no fim, médicos, enfermeiros e auxiliares seguem protocolos, a família faz visitas rápidas, mal aguenta olhar para aquele ente querido que está terminando. Obviamente que não é fácil, mas quando a vida traz essas situações, elas deveriam ser vividas plenamente, sob pena de caso contrário, nos desumanizarmos.
Duvido alguém tomar um remédio amargo e sair feliz, saltitando. Mas se preciso for, tomamos e forçamos nossos filhos a tomarem também. O contato com a morte de alguém querido é provavelmente o mais amargo dos remédios, mas o efeito que ele tem na gente, talvez seja o mais potencialmente belo dentre as experiências da vida. Se o seu pai, irmã, companheiro de uma vida está perto do fim, você vai ficar pouco com ele em nome do quanto é difícil, de quanta dor isso te trás, da revolta? É claro que é muito duro. O que não se costuma enfatizar, é que vivenciando essas perdas de maneira profunda, existe uma grande possibilidade de você sair disso uma pessoa muito mais humilde, conectada com os ciclos do mundo, com mais consciência do que realmente importa. Enfim, querendo honrar aquela pessoa que se foi e vendo a morte como uma parte da vida, ainda que seja o ponto final. Se despedir de alguém diminui muito o medo da Velha da Foice… Não custa lembrar dos versos de “Luar do Sertão”
“Ah, quem me dera
Que eu morresse lá na serra
Abraçado à minha terra
E dormindo de uma vez
Ser enterrado
Numa grota pequenina
Onde à tarde a sururina
Chora a sua viuvez”
Nesse ponto, queria tentar formular de maneira um pouco mais clara, a conexão que vejo entre essas duas situações, o comer e o morrer. Nos dois casos, fingimos que não é com a gente. Nem pensamos na carne como parte de finados animais, nem olhamos com o coração para quem esta morrendo. “Ahh, foi melhor assim.” “Foi bom, que ele nem sofreu.” “Esses animais são ração.” E por aí vai, qualquer coisa em nome de não encarar a realidade. Inclusive religiões pregam que não se pode sofrer por entes queridos, que isso os prejudica, etc… Quase uma mutilação em quem ficou!
Volto aos vegetarianos. Eu sempre tive um pé atrás com eles. Não participando da carnificina, perdem a chance também de ver o mal em si. Como não comem, não se sentem responsáveis. Ocorre que comer um bicho, direta ou indiretamente ter causado a sua morte, nos obriga a lidar com um pedaço de nosso lado negro. Nos coloca frente a frente com ele. Imagine, toda vez que colocássemos um pedaço de carne na boca, pensar: Puxa, eu poderia ter passado sem isso, mas não quis. Quanta humildade isso traria! Quanto contribuiria para que parássemos de ver o mal só nos outros! A total consciência de que fizemos uma escolha que custou uma vida e que faremos isso muitas vezes ainda. E em muitas dessas vezes, por puro prazer! A meu ver, é esse tipo de atitude, a de nos preocuparmos com a “trave nos nossos olhos” e por consequência, não ficarmos apontando o “cisco nos olhos do nosso próximo”, que pode mudar o mundo.
Concluindo, encarar a morte, seja de humanos queridos ou de animais que nos servirão de alimento, com certeza nos torna mais humanos, humildes e conscientes. O sofrimento associado a isso é sagrado. Sem ele, o que seriamos?
Não conseguiria terminar, sem citar um trecho de um grande livro:
“Quando matardes um animal,
dizei-lhe no vosso coração:
Pelo mesmo poder que te imolo,
eu também serei imolado, e
eu também servirei de alimento para os outros;
Pois a lei que te entregou às minhas mãos,
me entregará à mãos mais poderosas.
Teu sangue e meu sangue nada são,
senão a seiva que nutre a árvore do céu.”
O Profeta, Gibran Khalil Gibran
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