Uma voz no Alzheimer

Camila Appel

Fernando Aguzzoli é, para mim, um fenômeno. Um menino carismático que cuidou da avó durante seis anos e fez dessa experiência uma missão. Ele une sensibilidade com talento para comunicação e tem falado sobre Alzheimer com crianças (publicou um livro infantil para netos lidarem com os avós), jovens, adultos e velhinhos diagnosticados. Basicamente, todo mundo.

“Quem, Eu?”, da Companhia das Letras, pode ser considerado sua estreia como uma liderança na comunicação do universo dos esquecidos, (veja o book trailer aqui).

Inicialmente, o livro foi escrito para sua família, não tinha pretensões de ser lançado publicamente. Ele começou a escrever junto com sua avó. “Eu sentava ao lado dela e perguntava: me conta da sua infância, o que você lembra. Ela devorou livros a vida inteira, seria incrível se ver na capa de um. Pena que ela morreu no meio do processo… Terminar o livro sozinho foi a tarefa mais difícil da minha vida”.

Surgiram outros projetos, como o livro infantil, selecionado pelo programa nacional de livros didáticos, e o site Vovó Nilva, um portal de comunicação para incentivar e auxiliar familiares. “Tudo que eu encontrava sobre Alzheimer me derrubava, eu me sentia incapaz. Por isso, decidi criar meu conteúdo na internet para informar e oferecer apoio aos familiares”.

Em suas palestras, Fernando conta sobre a descoberta do diagnóstico da avó, sua relação com ela, os obstáculos que encontrou na jornada e a forma como lidou como eles.

Um desses obstáculos era a repetição, ouvir a mesma pergunta o tempo todo. “A repetição irrita todo mundo. Eu fui aprendendo ao longo dos 6 anos que a mentira terapêutica pode ajudar. Mas para chegar nesse estágio, onde a mentira pode ser algo bom, é longo. Minha avó sempre perguntava onde estava sua mãe. Para ela, a mãe não estava morta, mas sim viva. Eu dizia: ela já morreu. Todos os dias, ela chorava e revivia o luto. Teve um dia que ela perguntou sobre várias pessoas… ela me disse: – é tão difícil esquecer e tu fica me lembrando. Um dia, ela me perguntou: – onde está minha mãe? Eu disse: – ta na praia. Ela ficou feliz, perguntou: – o que ela foi fazer? – Passear. Depois de 10 minutos, ela me perguntou de novo. Eu achei melhor mudar a resposta, para eu não me irritar. Fui realizar os sonhos da minha avó no esquecimento dela. Ao invés de dizer que sua mãe foi para uma praia bagaceira, eu comecei a dizer outras coisas: – ela ta na Disney, – nos Estados Unidos… Ela perguntava: – por que eu não fui junto? Eu dizia: – a gente vai amanhã. Cheguei a imprimir passagem falsa. Ela ficava feliz”.

Hoje, ele está na Irlanda com uma bolsa do Global Brain Health Institute, que se propõe a criar uma rede de lideranças internacionais em saúde cerebral. O propósito dessa instituição remete ao seu fundador, Chuck Feeney, um dos criadores do conceito do Duty Free. Ele decidiu doar toda sua fortuna para projetos ao redor do mundo, como sistemas de bolsa de estudos na Irlanda. Uma parte dessa fortuna foi doada ao Atlantic Philanthropies. O Global Brain Health, onde está Fernando, faz parte desse instituto maior e reúne  diversas disciplinas para estudar os efeitos da demência pelo mundo.

Fernando é um dos 20 convidados para ter essa formação. De segunda a sexta-feira, faz pesquisas em seu escritório, desenvolvendo seu próprio projeto que concorre a uma bolsa para ser implementado no Brasil. Às terças e quintas, participa de pods. São encontros multidisplinares com economistas, musicoterapeutas, médicos, neurologistas, para discutirem determinados temas, como por exemplo, neuroanatomia.

Ele é escalado, semanalmente, para acompanhar um trabalho de campo. Na semana em que nos falamos, Fernando acompanhou os psiquiatras da Saint James Hospital e foi conhecer  intervenções não medicamentosas como música e arte, no Misa creative.

O projeto de Fernando será o Instituto Vovó Nilva, que pretende ser um centro de referências para centralizar serviços em Alzheimer e doenças similares, mas dedicados aos familiares. Um desses serviços é o que Fernando chama de Projeto Restart – para ajudar as famílias a recomeçar após a morte.

“Eu cuidei da minha avó por 6 anos. Imagina quando você cuida de uma pessoa com Alzheimer por 20 anos. Como você recomeça? Você deixou sua carreira e sua vida pessoal de lado por muito tempo. A doença afeta seus relacionamentos, suas emoções no amplo espectro. Todos os sistemas vão até a morte, ninguém pensa naquela família após”.  Fernando quer preencher essa lacuna.

Ele também quer montar um “help-line”, que não tem no Brasil. É uma linha de apoio 24 horas, formada por voluntários, para ajudar nas questões emocionais como – ele não ta dormindo, ele ficou agressivo, eu não estou entendendo porque eu estou sentindo raiva dele…

Quando retornar ao Brasil, Fernando vai pesquisar porque vemos o convívio social de velhos como algo ruim. “No mundo todo, moradia compartilhada significa qualidade de vida. O convívio social é um fator de proteção para as cognições. Mas, no Brasil, o idoso não quer envelhecer com outro velho. Nos Estados Unidos há condomínios de idosos. Visitei um em Miami que tem mais de 20 mil idosos morando juntos”.

Sua experiência na Irlanda também mostra outra forma de lidar com a morte. “Aqui não é tabu falar sobre morte. Ela não é a derrota da velhice, ela é consequência da vida”. Essa é a inspiração para o novo livro do Fernando, quebrar a barreira da morte, com previsão de lançamento para abril 2020, pela Companhia das Letras.

“Quando enfrentamos o Alzheimer, nos sentimos derrotados desde o início. Porque não importa dinheiro, esforço, o que for, você não pode derrotar, impedir o Alzheimer. Então, qual é nosso papel nisso tudo? Em muitos casos, a morte, dependendo da nossa compreensão, será uma libertação. A morte da minha avó representou para mim essa libertação”.

Vovó Nilva é o grande compromisso da vida de Fernando. Ele usa seu anel para representar essa aliança e se lembrar todos os dias dessa missão.

Alzheimer

Alzheimer é um tipo de demência que corresponde a mais da metade dos casos de demência. Seu nome oficial refere-se ao médico Alois Alzheimer, o primeiro a descrevê-la, em 1906. Ele estudou e publicou o caso da sua paciente Auguste Deter, uma mulher saudável que, aos 51 anos, desenvolveu um quadro de perda progressiva de memória, desorientação, distúrbio de linguagem (com dificuldade para compreender e se expressar), tornando-se incapaz de cuidar de si. Após o falecimento de Auguste, aos 55 anos, o Dr. Alzheimer examinou seu cérebro e descreveu as alterações que hoje são conhecidas como características da doença.

Estima-se que existam no mundo cerca de 35,6 milhões de pessoas com a Doença de Alzheimer. No Brasil, há cerca de 1,2 milhão de brasileiros, a maior parte deles ainda sem diagnóstico.

Não é uma doença hereditária, menos de 5% dos casos se observa algum tipo de herança. A idade é o maior fator de risco. Quem tem 85 anos tem 50% de chance de ter.

Diagnóstico precoce é fundamental. Ele é feito observando-se uma perda de memória progressiva, que afeta o dia a dia e aplicar testes e notar o comprometimento. É importante ressaltar que se esquecer de fatos pode ser normal. Devemos ficar atentos quando há perda de memória que gera interferências no cotidiano. Esse diagnóstico aborda muito a exclusão de outras doenças. Por exemplo, faz-se exame de sangue e neuroimagem para afastar doenças, como hipotireoidismo e problemas cognitivos, AVCs. Existem exames mais refinados, mas também não dão certeza absoluta. O diagnóstico da certeza absoluta só existe com um estudo do tecido do cérebro, o que não é feito devido ao risco de uma cirurgia cerebral.

A verdade é que não estamos preparados para envelhecer e criamos políticas públicas de forma lenta e ineficaz. É importante falarmos sobre o Alzheimer para conscientizar a população e diminuir o estigma. Tratar esse assunto em classes sociais baixas é ainda mais desafiador. Contratar um cuidador é muito caro e o familiar acaba deixando de trabalhar para cuidar do pai, por exemplo. Não há um plano nacional de demência que compreenda todos os custos que a doença gera para a família. Custos financeiros e emocionais.

Alzheimer ainda não tem cura. Acredito que um dia ela virá. O que podemos fazer hoje é retardar seu início, diminuir o estigma dos velhos, criar políticas públicas que dê melhor qualidade de vida e possibilite o convívio social.

Do Avesso

O primeiro livro que eu escrevi é uma fantasia chamada “Do Avesso”, de 2007. Após a morte da mãe, meu protagonista chega no universo da engrenagem do nosso planeta, chamado Maya. Tudo que acontece aqui é feito por grupos de seres divididos em tarefas e funções lá. O universo das funções enfrenta o poder de uma profecia, em que o inimigo aterrorizante, que é uma geleia gigante chamada Estagna, mata todos que estagnam. Ele está crescendo e aumentando seu poder. Meu protagonista se perde em Maya porque ele não sabe qual é seu talento, sua função, e fica ali procurando um. Sem talento nenhum, ele fica à mercê de Estagna, esse grande inimigo que matou sua mãe. O Alquimista é um personagem importante porque ele envia as emoções ao nosso mundo. Ele está com Alzheimer e se esquece das fórmulas, envia as emoções todas misturadas… Gera uma bagunça só. Enfim, ele faz um jantar de despedida e anuncia que deixará de exercer suas funções. Eu chorei criando esse personagem. E imagino a dor de alguém que tem a consciência de estar desaparecendo… Saber da nossa finitude é um presente realmente muito dolorido.