Histórias de sobreviventes do suicídio

Camila Appel

A psicóloga Karen Scavacini me convidou para escrever o prefácio do livro : “Histórias de Sobreviventes do Suicídio” que reúne depoimentos em diversos formatos de pessoas que tentaram se matar,  dos que perderam parentes, e de profissionais da área.  Com a aproximação do lançamento da coletânea (veja o serviço abaixo), aproveito para colocar aqui esse texto de introdução. Na semana que vem, publicarei um dos relatos – que já chega com o seguinte título: “Uma carta de amor: onde psicólogos choram, as flores têm espinhos e a vida se refaz”.

Prefácio – Camila Appel

O suicídio, a autolesão, nos chocam como um absurdo. Como uma pessoa pode ser violenta com ela mesma, negar a vida e todos seus mistérios, negar um presente divino? A vida pode ser vista como um milagre se pensarmos em tudo que precisa acontecer, dar certo, para um ser vivo nascer. Surgimos no mundo como vencedores. E mais, vencedores evolutivos, já que muitas vezes entendemos a seleção natural das espécies como um processo de evolução.

A vida é esse presente, mas não deixa de ser difícil. Em alguns momentos, ela parece impossível.

É impossível cumprirmos todas as expectativas, darmos conta de exigências, sejam elas reais ou fantasiosas. É possível sermos bons o suficiente para o mundo, estarmos à altura desse valioso presente, contribuirmos com o que podemos dentro dos limites e possibilidades de cada um .

Vermos a vida com tantas pressões pode ser mais um fardo que precisamos carregar. Como Sísifo, aquele da mitologia grega que é obrigado a levar uma pedra montanha acima, para vê-la despencar e então, tornar a carregá-la novamente. Num trabalho sem sentido algum… Para o filósofo francês Albert Camus, a compreensão de Sísifo de que a vida não tem sentido, de que o trabalho não significa nada, traz a grande pergunta existencial: se a vida vale a pena ou não ser vivida. A princípio, a pergunta de Sísifo parece obscena. Como ousa alguém questionar o valor da vida, da preciosidade da vida? Me parece que o problema é a proibição de se fazer tal pergunta. Proibir qualquer reflexão por motivos religiosos ou por medo da conclusão. É impossível fugir dessa questão e reprimi-la pode levar à alternativa do silêncio, onde decisões podem ser tomadas sem qualquer chance de retorno. A conversa, a escrita, não podem ser tratadas como tabus. Não há assuntos proibidos.

Acolher uma pergunta me parece ser sempre a melhor solução.

Os dados que o primeiro capítulo desse livro traz são assustadores. Aumento de taxas de suicídio de 100, 200% entre tribos indígenas e um espantoso crescimento entre os jovens brasileiros. Por que nossa sociedade está doente? O que estamos fazendo de errado?

Hoje, o suicídio não é mais um debate individual ou familiar, mas sim um alerta de saúde pública. É complexo traçar os motivos para tal realidade, mas é necessário fazê-lo. Estamos fracassando na forma como nos organizamos socialmente. Nossas regras de convivência e de sobrevivência são pautadas em paradigmas equivocados. Não pode haver espanto ao vermos uma pessoa que odeia seu trabalho, e passa mais tempo nele do que com as coisas que traz prazer, estar em profunda depressão. Não dá para se espantar com a dor que transborda sem ter para onde escoar. Sem espaços de troca de sentimentos normalmente considerados negativos. Afogados, eles se tornam insuportáveis.

Na pergunta de Sísifo: se a vida vale a pena ou não ser vivida, o que aperta o coração é imaginar a dor terrível que sentiu e sente aqueles que decidem que não e tem a certeza de que o mundo ficará melhor sem eles.

É por isso que o trabalho de Karen Scavacini é fundamental. Entre os projetos do Vita Alere, está esse livro aqui. Me parece a melhor forma de lidar com esse assunto. Oferecer espaço para relatos daqueles que pensaram ou tentaram morrer, de seus familiares e dos profissionais de saúde que lidam com essa temática diariamente.

Aqui, podemos identificar toda a universalidade contida nos relatos e assim nos sentirmos… vivos. Não há tristeza, porque são depoimentos tão verdadeiros que se tornam universais. E na universalidade há força.

Há uma sensação de pertencimento e de acolhimento nas palavras da Barbara, a psicóloga que entende que sua paciente estava exausta… de existir. “Existir cansa”, ela diz.

Nos versos da Carolina que lista possíveis causas para sua tentativa de suicídio. Pode ter sido por tudo isso. Pode não ter sido por nada disso. Mas ainda pode ser a reinvenção, o recomeço.

O silêncio de Ricardo, que aos 6 anos não conseguiu lidar com sua dor, tentou se enforcar. A culpa que o atormentou hoje cede para o amor, um sentimento tão universal quanto a dor. “Hoje, a vida é bela. Tenho um raio de sol que me sorri todos os dias pelas manhãs. Um sorriso desdentado e de poucos meses mas que eu amo tanto que não consigo mensurar”.

As cartas de Debora… Ela pede desculpas. Ela sempre pede desculpas. Ela não quer morrer, ela só quer dormir até a dor passar. A Danielle também, “algumas vezes me deito e peço em silêncio para não acordar mais. Quando o dia nasce e percebo que ainda estou ali, por vezes me alegro, em outras fico triste. Difícil conviver com essa dualidade, esse sentimento de querer estar morta e ao mesmo tempo estar viva.”.

Luz de Carvalho também fala dessa dor insuportável. “Ora a dor era tão grande que sentia meus ossos estalarem e minha alma virava pó”. Todos nós já sentimos um espectro dessa dor, dessa angústia, em algum momento. E também esse vazio aqui: “Ora não sentia nada, e isso me assustava muito mais…”.

Esse vazio é o centro da dor de Olga Marie. “Dentro de mim é um vazio. Um vazio tão grande que encontro dificuldades para explicar meus sentimentos”.

O do poeta Caiubi é as pessoas que ama. “Então…Estamos aqui. Pelas pessoas que ama, disseram. E assim é. Até o último dia”.

Vanessa presenciou tentativas de suicídio da mãe, “aprendi que ninguém muda ninguém, mas que a nossa alegria verdadeira pode contagiar as pessoas que amamos.”

O texto lindamente escrito na terceira pessoa por Marina Karina, que no parapeito da varanda oscilava entre a vida e a morte, olhando a cidade sob o olhar indiferente da lua. “Milhares de pessoas, milhões talvez, e ela se sentindo tão só!”.

O livro também traz relatos dos enlutados pelo suicídio, dos sobreviventes…. Nesses, somos imediatamente transportados para um pesadelo. São relatos que tocam a alma e podem fazer chorar. É por isso que são chamados de sobreviventes do suicídio. Encontrar um filho morto, que optou por morrer é dilacerante. E só resta sobreviver.

A última categoria acolhe textos de profissionais de saúde. Izabela questiona: quem está preparado para lidar com a morte?  Eu criei um blog chamado Morte sem Tabu justamente por isso, eu mesma não estou.

A maior beleza desse livro, na minha opinião, é unir todos esses relatos e nesse coletivo apresentar a prova de que ao contrário do que possa parecer, não estamos sozinhos. A dor, em todas suas intensidades, faz parte do espectro do coração humano. Ela deve fluir como as palavras. Nunca estagnar.

Serviço:

Lançamento:  03 de março, terça-feira.

Livraria Tapera Taperá (SP). Av. São Luís, 187 – 2º andar, loja 29 – República, São Paulo – SP.

19 horas.

Haverá leitura de trechos do livro no dia. Entrada gratuita.