Uma carta de amor: onde psicólogos choram, as flores têm espinhos e a vida se refaz

A psicóloga baiana Jalane Maia estava em um congresso no Espírito Santo quando ficou sabendo do concurso de textos de sobreviventes do suicídio do Instituto Vita Alere. Decidiu escrever a  história da sua família pela primeira vez.  Quando conversamos, entendi porque senti tanta vontade de compartilhar seu relato. “Eu nunca tinha estampado a minha vida, já que se trata de uma tragédia e as pessoas se espantam. A minha inspiração foi escrever em forma de amor. A gente não costuma enxergar o amor na dor”. É um texto lindo. Todo amor para você, Jalene.

Uma carta de amor: onde psicólogos choram, as flores têm espinhos e a vida se refaz.

Hoje não é um dia comum! Hoje é 17 de setembro de 2018 e o senhor faria 64 anos de vida. Resolvi escrever a sua história painho, a nossa história. Ao contrário dos que muitos pensam e julgam, essa é uma carta de amor. Esse é o meu presente para ti e para o universo.

Por muito tempo calei, ficava envergonhada de falar a minha filiação: você  é filha de quem? Quem são seus pais? Quando se mora numa cidade pequena, sua identidade é atrelada a identidade dos seus pais. O medo sempre me acompanhou, o choro velado, a angústia, o pesar, desde o ano de 2010, quando o senhor faleceu por suicídio. Aquele foi o pior ano da minha vida; meu marido havia infartado aos 27 anos nesse mesmo ano, éramos recém-casados.

Menos de um mês depois aconteceu a fatídica tragédia: um surto psicótico do meu pai fez com que ele tirasse a vida dos meus dois irmãos, da minha madrasta, e tirasse a sua própria vida. Nada seria igual a partir daquele sábado de 15 de maio. Minha vida deu uma virada de 180 graus.

Mas como? O pai da psicóloga fez isso? Ele surtou? Que tipo de psicóloga é essa que nem cuidou do próprio pai, como vai cuidar dos pacientes? Essas foram algumas das indagações que ouvi na época do acontecido. Como foi difícil sobreviver a tantos julgamentos. Realmente, o termo sobrevivente se aplica perfeitamente a nós enlutados por suicídio. “Assassino, assassino! Como foi capaz de tirar a vida de duas crianças, uma de 2 e a outra de 4 anos? ”; “quando ele aparecer, vamos acabar com ele! Vamos queimar, linchar”; essas frases eu escutei no velório e, principalmente, no enterro dos meus irmãos e da minha madrasta. E eu pensava: meu Deus, não bastando ele morto, ainda querem matá-lo de novo?!

Foram três dias de terror, pois o corpo do meu pai havia desaparecido nas águas do Rio São Francisco, pois ele, para ter certeza de sua morte, usou uma arma de fogo para atirar contra si próprio e, em seguida, seprecipitou da ponte metálica que liga a cidade de Paulo Afonso na Bahia ao estado de Alagoas. Eu tinha certeza que ele estava morto; mas muitas pessoas conjecturaram muitas coisas, inclusive, que ele havia feito tudo aquilo e fugido. O corpo desaparecido reforçava a fantasia de fuga na mente dessas pessoas.

Meu sofrimento era visceral; eu clamava por Deus e Nossa Senhora para nos livrar daquele pesadelo. Essa família que morreu era o segundo casamento do meu pai, na qual nasceu meus dois irmãozinhos por parte de pai. Eu, minha mãe e meus dois outros irmãos somos a família do primeiro casamento. Nossa união, cumplicidade, força e fé fez com que renascêssemos das cinzas, assim como Fênix.

Nos dias do ocorrido, não desgrudávamos; dormíamos juntos, resolvíamos todas as pendências e problemas juntos. Ao terceiro dia, o rio São Francisco resolveu dar uma trégua para o nosso sofrimento: liberou o corpo de painho que estava submerso, estando preso por galhos e tôcos no mesmo local que ele se precipitou.

Era um grande sinal de que as coisas iam começar a ficar bem; foram muitos rumores e total crueldade com os nossos  sentimentos e com nossa vida. As fotos dos homicídios vazaram na internet; as pessoas comentavam do crime “com requintes de crueldade” que ele fizera, mas ninguém se lembrava de mim, da minha mãe e dos meus irmãos. Aquilo era uma vitrine de horror; as pessoas compartilhavam e comentavam sobre as cenas da violência; como o ser humano consegue se comprazer da miséria e da dor do outro?

Por morarmos numa cidade pequena, o ocorrido ganhou uma proporção descomunal, inclusive uma projeção na rede nacional de televisão. Logo que o corpo apareceu e foi reconhecido, fizemos o enterro dele as pressas; era quase dezoito horas da noite. Despistamos os jornalistas que estavam próximo ao Instituto médico legal e corremos para fazer o enterro que contou com a presença de pouquíssimas pessoas (eu, mainha, meus dois irmãos, meu sogro, quatro ou cinco amigos próximos e um primo paterno). Graças a Deus conseguimos arranjar um padre que fizesse a recomendação do corpo já que somos católicos.

Tivemos que fazer tudo à calada do quase anoitecer, afinal, muitos eram os revoltados e dispostos a “matá-lo” novamente.

Os dias corriam lentamente. Meu irmão mais velho conseguiu passar o mês conosco, pois residia em Salvador e o caçula já estava de férias na cidade. Minha mãe, um pedaço de rocha viva, era quem nos dava a base e sustentabilidade emocional necessária. Essa mulher de rocha, cujo nome é Maria José, foi quem resolveu toda a tramitação do enterro dos meus irmãozinhos e da minha madrasta. Até para nos dar a noticia da tragédia, lançou mão de toda sua maestria materna para nos revelar e ao mesmo tempo nos acolher e proteger. Eu e meu irmão mais velho, fomos mais poupados dos fatos, por estarmos em Salvador no dia fatídico; tudo foi sendo revelado passo a passo: primeiro-  a morte do meu pai, segundo- o suicídio; terceiro- os homicídios. Já meu irmão caçula, por estar passando férias na cidade, não teve a mesma sorte; ficou sabendo da notícia da pior forma possível, através do rádio e telefonemas das pessoas menos avisadas.

Com pouco tempo depois, meus irmãos voltaram para Salvador seguindo suas rotinas e eu permaneci em Paulo Afonso. Minha vida seguia num formato diferente; me sentia como se estivesse flutuando; esquecia muito das coisas e desenvolvi uma desorganização crônica com meus objetos, roupas e documentos pessoais. Além disso, apresentei sintomas de estresse pós-traumático; dormia mal e chorava quase todos os dias, escondido. Tinha muitos sonhos e pesadelos. Sentia uma tristeza profunda, os comentários alheios adentravam minha alma como verdadeiras foices afiadas. Eu fiquei anestesiada por um bom tempo.

A terapia me ajudou bastante a superar toda àquela tragédia. Voltei a atender no consultório pouco tempo depois. Meus pacientes também me ajudaram muito. Nenhum deles invadiu minha intimidade; a grande maioria sabia do ocorrido, porém, ao final da sessão ou seguravam fortemente minha mão ou me abraçavam; outros alisavam meu cabelo e diziam: tudo isso vai passar. Todos esses gestos de amor e respeito foram me fortalecendo. Meu consultório aumentava a  clientela a cada dia, muitas pessoas procuravam os meus serviços clínicos e eu não conseguia entender isso, pois ainda tinha muito medo do julgamento das pessoas.

Tempos depois descobri que eu era humana e que psicólogos também choram, afinal somos gente de carne, osso e lágrimas. Eu, mainha e meu marido nos fortalecíamos juntos. Em 2011 engravidei de Dante, meu primeiro filho. Ele nasceu em maio de 2012, mês que marcou minha vida para a dor e para o amor. Em setembro de 2015, nasceu Davi, meu segundo filho. Eu continuava aprimorando meus estudos e atuando como psicóloga clinica e escolar. A priori, eu brigava muito com Deus, pois várias pessoas que me procuravam apresentavam ideação e comportamento suicida. Por quê essas pessoas me procuravam? Logo eu marcada por tamanha tragédia? Deixei de brigar com Deus e decidi estudar mais o universo da vida de flores e espinhos de cada existência humana.

Em 2017 fiz um curso em suicidologia e me apaixonei. Logo após, fui aprovada no mestrado com um projeto de prevenção de suicídio nas escolas. Continuo sendo mãe, esposa, estudante, filha, irmã, amiga, psicóloga. A vida se refez e se refaz a cada dia que aceito minha missão de cuidar de almas tão sofridas e doridas. Não tenho mais vergonha de falar quem foi meu pai. Meu painho, o senhor foi o grande  laboratório de minha existência. Todo seu transtorno bipolar e instabilidade emocional não escamoteou ou diminuiu o seu amor por mim e meus irmãos; o senhor nos amou da forma que podia; sofreu também ao seu modo e nos concedeu a vida para que pudéssemos contar hoje a grande história de amor que vivemos nos melhores momentos de nossa infância, com a saudade apertando nosso peito todas as vezes que vemos as flores das caraibeiras amarelas caídas no chão da primavera, sabendo que algumas  flores podem ter espinhos, mas nada impede a beleza da flor, assim como nada impede a certeza de que a vida se refez e se refaz em cada um de nós.

Instagram da Jalane: @jalanemaia

Jalene Maia – arquivo pessoal

@camilaappel