Integrando espelhos entre quatro paredes

O núcleo familiar garante a repetição de padrões, mantem a ordem, o status quo, viabiliza a permanência de sistemas e seus valores, sejam eles bons ou ruins.

Por isso, os grandes dogmas religiosos ressaltam tanto a necessidade de nos voltarmos ao núcleo familiar e por ele tudo fazer. É ali que se garante a inércia do movimento social.

Hoje, muitos estão confinados com familiares e amigos. Eles são reflexos de nós mesmos, até quando acreditamos sermos exatamente seus opostos. Carregamos esses reflexos como heranças. E passamos cada uma delas adiante, aos filhos, amigos e colegas de trabalho. Pensamentos, valores e comportamentos são transmitidos como reflexos em espelhos.

Estarmos cara a cara com essas características pode ser visto como uma oportunidade de olhar para eles e deixar de lado aquilo que não nos serve mais. Existe a possibilidade de colocar um fim nessa herança, na forma como repetimos padrões automaticamente e, no vazio, oferecer lugar à verdadeira criação.

Esse é o pensamento da educadora Ana Thomaz. Ela mora em um sítio há 88 quilômetros de São Paulo com sua família, para onde se mudou após decidir buscar alternativas à educação forma dos filhos. Quebraram um paradigma, se entregaram à impermanência e ao vazio. É a forma que encontraram de experienciar a vida. Testando, com eles mesmos, novas formas de ver o mundo e de atuar nele.

Ana diz que toda mudança estrutural deve iniciar no micro universo, nas nossas próprias casas. “Não adianta ir para fora ensinar os outros a viver uma vida que não acontece dentro de casa. Se eu não consigo resolver dentro, ir para fora será pura distração e mentira”, diz.

 Ana diz que o movimento de vida é receber essa herança, finalizá-la e abrir campo para a criação. Isso faz com que a vida seja um fluxo contínuo. Buscamos o previsível e o permanente, repetimos padrões. Mas a vida é um contínuo impermanente e imprevisível. “As árvores são sempre árvores, mas são impermanentes e imprevisíveis”.

 Na primeira conversa que tive com Ana Thomaz, me surpreendeu seu poder em lidar com o inesperado. Enquanto eu acordo com uma rotina pré-definida, ela se alimenta do calendário em branco. Me questionei se um dia eu teria vocação para viver assim. Hoje não é vocação, é necessidade. Mas ainda me vejo apegada à uma forma de viver que talvez não faça mais sentido.

Busco previsibilidade na limitação física. Vejo que sou um reflexo de cada um dos meus familiares e amigos mais próximos. Sou uma bolha e reproduzo essa bolha. Agora mais do que nunca, faço tudo pela sobrevivência dessa mesma bolha.

Encontro prazer na observação. Estou mais presente, admirando detalhes. Ventilando entre a impotência e serenidade. Tento permitir sensações doloridas e percebo que o tédio dói mais do que a angústia. Sou obrigada a deixar de ser tão controladora. Se não há previsibilidade, não há controle. Até as rédeas ilusórias se dissipam.

Resta ter paciência e empatia com as loucuras uns dos outros. Talvez, verei ascender um novo normal. Ao mesmo tempo, me deixo ser dominada por um sentimento poderoso de “comunidade” e pertencimento, mesmo me sentindo tão só.