Depoimento de uma médica do front

Camila Appel

Sabrina Correa é médica intensivista e emergencista. Topou conversar comigo deixando claro que fala em nome próprio, e não pelas instituições em que trabalha ou das quais participa. Faz questão de destacar o dia da entrevista, já que as informações mudam muito rápido e sua opinião pode parecer descontextualizada em uma semana. Conversamos em 28 de março de 2020.

Consigo uma hora da sua atenção não porque está de folga após um plantão exaustivo, mas sim por ter percebido sintomas de gripe em si mesma. Ela fez o teste do COVID-19 e aguarda o resultado em isolamento. Mas não está em casa sem fazer nada. “Eu estou gripada mas posso conversar com a equipe, fazer trabalho administrativo e reuniões virtuais. Estamos nos organizando para receber um número muito maior de pacientes do que estamos acostumados”.

Ela me desestabiliza logo na primeira pergunta.

– “Tudo bem?”.

– (silêncio). “Tudo bem é uma pergunta complexa agora, né? Nós, profissionais de saúde, ficamos um tempo dizendo que a gente ta bem. Mas, na verdade, não estamos”.

Ela diz que, desde o momento em que foi declarada a calamidade pública, não conseguiu chorar. A primeira vez que desabafou foi ouvindo uma de suas músicas preferidas cantada por um colega ao violão, enviado no whatsapp da sua turma de faculdade. Foi um alívio.

“O meu maior medo é chegar no hospital e ver gente morrendo porque eu não posso dar para as pessoas os recursos que elas precisam”.

Formada há 20 anos na Universidade Federal do Ceará, Sabrina decidiu se especializar em pneumologia na USP, em São Paulo, onde logo começou a trabalhar na área de emergências e nunca mais se desligou.

Em 2005, acompanhou seu avô materno morrer em uma UTI com “um enorme sofrimento”. Passou a ver a dor dele nos pacientes que atendia. Daí, surgiu o interesse pelos cuidados paliativos, uma área da medicina que preza a ortotanasia. (conheça essa área na seção do blog, aqui).

No início do ano, chegou a pensar que o novo coronavírus poderia ser como uma H1N1, que “chegava anunciando ser o fim do mundo mas não seria tão grave assim”. Percebeu a gravidade da situação ao descobrir o potencial de contaminação do vírus.

“Se tivermos uma população enorme contaminada, teremos mais pacientes do que vagas nos hospitais públicos e até nos privados. No SUS, o país já vive no limite. Já tem médico faltando, já está subfinanciado, bolsas cortadas, problemas para financiamento de pesquisa”.

Sua rotina de trabalho mudou bastante. Passou a trabalhar o dobro, juntando os plantões, a produção de material, como o guia de comunicação para profissionais de saúde que ajudou a traduzir, a gravação de podcast e a participação em 2 comitês de crise. Diz que até o momento não faltou nada que fosse essencial, mas as coisas estão mudando. “Por exemplo, a máscara N95 que descartávamos após o uso está sendo reutilizada. Estudos em outros países permitem que essas mudanças sejam feitas com segurança”.

Além da preocupação com a futura falta de leitos, profissionais e materiais, Sabrina chama atenção para algo fundamental:

A grande maioria dos casos não está sendo diagnosticada, pois os testes são priorizados para pacientes graves e profissionais de saúde. As pessoas com sintomas leves muitas vezes nem estão sendo testadas”. Há perspectiva de novos testes chegarem e, aí, as estatísticas podem mudar rapidamente.

Além do problema da subnotificação, há o que ela chama de falso negativo. “Uma divisão que pode proteger os pacientes da contaminação intra-hospitalar é a separação entre os suspeitos, os confirmados e os negativos. No começo da infecção, é possível aparecer um paciente com resultado negativo, mas quando olhamos a tomografia, parece muito ser COVID-19. As tomografias e a evolução clínica têm padrões que se repetem com frequência. Já aconteceu algumas vezes de testar de novo e dar positivo”.

Ela relata que, até onde sabe, nos principais locais em que ela e seus colegas trabalham a pandemia ainda não mudou a forma de admissão da UTI, mas teme que em algum momento, com a lotação, seja necessário mudar. Há a perspectiva de ser preciso fazer escolhas, como está acontecendo em outros países como Itália e até Estados Unidos. Uma pergunta cruel é: como se faz essa escolha? Vou transcrever uma resposta grande porque é um tema complexo.

“Eu vou primeiro falar como penso que não se deve fazer essa escolha: A pessoa que faz essa escolha não deveria ser quem está cuidando do paciente. É muito duro para nós. O profissional de saúde quer oferecer a todos os seus pacientes tudo o que eles precisam. A experiência em outros países como os Estados Unidos orienta que a escolha deve se basear em critérios pré-determinados e decididos por um grupo heterogêneo que inclua bioeticistas e especialistas, com o objetivo de maximizar o benefício dos recursos existentes. Não devem entrar valores individuais, como cor, raça, riqueza, status social. As regras devem ser justas e aplicadas a todos. A idade, de forma isolada, não é o critério ideal e não deveria ser usada para excluir pacientes. Até o momento, felizmente pudemos oferecer o tratamento necessário a todos os pacientes graves que atendemos. O escore que alguns hospitais americanos estão utilizando é baseado em quantas disfunções orgânicas o paciente tem e isso significa quantos órgãos pararam de funcionar. Em paralelo, devemos estar trabalhando para que esses recursos sejam ampliados e oferecidos a todos que necessitam deles”.

Os cuidados paliativos têm muito a agregar nesse momento. Os paliativistas são bem treinados em comunicação de más notícias, controle de dor e falta de ar. E  são acostumados a fazer uma reflexão sobre o quão benéfica cada ação tomada está sendo para o paciente.

“Eu nunca tinha dado uma má notícia atrás de uma máscara, de um óculos de proteção, na frente de uma pessoa que não pode entrar para ver o familiar e está atrás de uma máscara também. Nessa hora, a empatia, experiência e atenção podem fazer toda a diferença.”

Ela ressalta que mesmo profissionais sem um treinamento específico devem se preparar para o momento em que darão informações difíceis da mesma forma que se paramentam para entrar no centro cirúrgico ou para fazer um procedimento. A forma com que essas notícias vão ser dadas pode fazer toda a diferença para alguém que se lembrará desse momento para o resto da vida.

Os profissionais de cuidados paliativos dão muita atenção ao cuidado com o cuidador. E se preocupam com o acolhimento da equipe. Sabrina diz estar começando a ver alguns colegas doentes, o que traz ainda mais preocupação.

Para aliviar o stress, ela lê sobre outros assuntos, escuta música e faz encontro com amigas online. Busca se reconectar com sua vulnerabilidade e as pessoas que gosta, mesmo à distância. Tenta fazer atividade física, mas sente falta do Jiu jitsu que costumava praticar.

A médica espera que, no longo prazo, essa fase impacte a forma como lidamos com a medicina. “Eu espero que as pessoas consigam entender que coisa maravilhosa que é o sistema único de saúde. A saúde é direito para todos e dever do estado” e termina com uma mensagem para a população:

“Fiquem isolados. Não é para sempre. É só enquanto for extremamente necessário. É até a gente entender melhor o que está acontecendo e como a doença está se disseminando. Até a gente se preparar para atender muito mais casos graves do que estamos acostumados. Estamos nos preparando. E protejam os outros que não podem se proteger, pelo amor de Deus”.