Relato de uma brasileira em Madri em tempos de Coronavírus
A administradora Cris Rosa enviou esse relato ao blog sobre sua experiência em Madri, cidade onde vive há um ano.
Relato de uma brasileira em Madrid em tempos de Coronavírus
Por Cris Rosa
Já era o centro das notícias faz tempo. Era só ligar a TV e não se falava de outra coisa. Para mim demorou para cair a ficha. Me sensibilizei e mudei a atitude quando percebi que se tratava de um desafio coletivo de grandes proporções. A saúde pública (e privada) podia colapsar e eu poderia ser um veículo de dor ou morte para os milhares de idosos que via todos os dias na rua e não só para eles.
Aqui na Espanha tem muitos velhinhos. Olho a eles com muita admiração. Também é verdade que se os e as vê muito mais nas ruas não só por sua representatividade. Eles têm muito mais segurança para sair e saem. Também há uma cultura diferente: a vida social não precisa ficar chata conforme se ganha idade. A vida de bar e da rua faz parte de toda família espanhola. Antes do almoço é praxe ver os bares do bairro abarrotados de todas as idades tomando seu aperitivo. Obviamente eles também não dispensam sua cervejinha ou vermute. Entre tantas culturas, esta é uma das que mais lhes custará não sair às ruas.
Acho que demorou para cair a ficha dos governantes também. Tivemos grandes aglomerações na capital e na Espanha dois dias antes das aulas de todos os níveis serem canceladas em Madrid e dias antes do país ser declarado em quarentena, no dia 14 de março. De repente, tudo mudou e o senso de urgência escalou do dia para noite.
Atingimos um novo recorde diário de mortos: 849. Quase o número de vítimas, em um dia, do total do conflito de mais de cinquenta anos com o grupo terrorista ETA, que é uma ferida nacional. Já são mais de 8.200 mortes. Diversos asilos acumulam histórias muito tristes, com dezenas de infectados e mais de 20 mortes em um só local, com corpos que esperam dias para serem recolhidos. Mas não são só os velhinhos que morrem. Este domingo se foi a quarta médica, uma jovem de 28 de anos. O sistema funerário entra em colapso e os governos se vem obrigados a tomar atitudes um tanto mórbidas, como engenhosas e necessárias, de transformar uma pista de patinação em necrotério. Esta já atingiu sua capacidade também. A maioria das pessoas não pode se despedir, dar a mão nos últimos instantes de vida ou velar seus queridos.
Já são mais de 90 mil infectados, mas sabemos que o número de pessoas contagiadas é muito maior. Conhecemos pessoas que ficaram realmente doentes, com todos os sintomas do COVID -19 e não foram testadas ou encaminhadas para o hospital. Não há teste nem espaço para todos. São épocas em que o termo prioridade ganha todos dias novos conceitos e aplicações. Hotéis começaram a ser utilizados para atender pacientes menos graves e um espaço de eventos, semelhante ao que seria o Anhembi, foi transformado em um hospital provisório em tempo recorde para atender mais de 5 mil pessoas.
Aqui esse medo de falta de abastecimento foi mais histeria e sensacionalismo. Um dia ou outro encontramos algumas prateleiras vazias, mas no dia seguinte volta à normalidade. Álcool e álcool gel não tem mesmo. Mas o resto sim. Nos supermercados, as filas sempre com um distanciamento entre as pessoas. Muitos com restrições do número de pessoas que podem entrar por vez.
É frequente que os representantes do governo venham a cadeia nacional, pronunciar suas medidas, transmitir mensagens e responder a perguntas enviadas por e-mail pela imprensa. Além de já ter vindo o rei e o primeiro-ministro, este várias vezes, também assumem frente uma diversidade de ministros e autoridades: economia, saúde, segurança…Grande desafio para um governo de coalização, o primeiro da democracia da Espanha, que assumiu o poder faz poucos meses. Eles reconhecem a situação crítica, que não há respostas prontas, que o problema é dinâmico e exige adaptar medidas conforme se evolui. Agradecem os esforços de todos e buscam transmitir mensagens de força, união e esperança. É claro que se pode criticar o governo, eu confesso que observo com certa admiração. Ao constatar a diferença abismal, me pergunto o que vai ser do Brasil.
Alguns fatos curiosos. Uma paixão dos espanhóis são os cachorros. Só pode ser! Impossível sair às ruas e não encontrar todo tido de raça em suas coleirinhas. Até hoje. Pois é, na quarenta é permitido levar seu cão para passear e fazer suas necessidades. Claro que a internet não perdoa. O humor parece sempre vencer qualquer situação. Como o anúncio dessa exceção, rapidamente os whatsapps lotaram de piadas – de desesperados em busca de um cachorro para poder passear até memes de pessoas fantasiando suas crianças de cachorro para sair às ruas. E fato, uma pessoa foi presa levando para passear um cachorro de pelúcia. Também foi flagrado uma Tiranossauro Rex andando na rua, mas ele estava indo jogar fora o lixo. O policial viu, interveio e pediu para o homem fantasiado voltar para casa. O dinossauro obedeceu e não teve maiores problemas.
Aqui só se pode sair de casa por um motivo essencial. Basicamente ir ao supermercado, farmácia, médico (consultas rotineiras foram canceladas), jogar o lixo ou se você tem um trabalho, que a partir dessa segunda tem que ser considerado essencial e sem possibilidade de ser feito remoto.
Quem não obedece pode levar multa ou ser preso. Já são mais de 1.500 prisões e mais de 180.000 sanções que podem virar multa de 100 a 600 mil euros. Apesar disso, em um país de 46 milhões de habitantes, poderia dizer que a maior parte da população obedece e apoia as medidas e buscam motivar umas às outras. É bonito.
As pessoas têm se unido e se incentivado como podem. São comuns os festivais, em que artistas famosos e desconhecidos oferecem ao público shows ao vivo on-line. Alguns orquestraram eventos coletivos e outros oferecem diariamente. Diversos profissionais, como de ginástica ou professores, também oferecem aulas e serviços grátis nas redes. Nos postes ou paredes dos prédios, anúncios de grupos de vizinhos se organizando para poder fazer as compras àqueles que mais precisam. Também há relatos de diversas pessoas que oferecem espetáculos de suas varandas ou janelas. Por aqui, ainda não tivemos essa sorte. Quem sabe não cabe a nós nos arriscarmos.
Em toda crise, abre-se um portal. Engraçado, que em um momento em que se mais precisa de máscaras de proteção, parece que as máscaras reais caem. A verdade se revelará na vulnerabilidade? Eu diria que a humanidade tem uma escolha. Mostrar o seu melhor ou pior lado. Se afundar, ou despertar seu senso solidário e criativo, uma força e uma potência até então desconhecida. Ainda é cedo para fazermos uma avaliação do momento que estamos vivendo. Não sabemos se estamos no começo no meio ou no final. Só espero que aprendamos muito. Precisamos.
As notícias do outro lado do Atlântico chegam. E reportam com imensa perplexidade a atitude do Brasil quanto ao vírus. Aqui a mídia continua monotônica. Mas agora não parece mais sensacionalismo. Ao final, até a TV tenta terminar uma mensagem positiva, reconhecendo os esforços de todos, dando animo para esta que será apenas uma fase transitória e ilustrando os casos criativos e de solidariedade.
Me despeço. São quase 20 horas e temos nosso compromisso diário: ir às janelas bater palmas para homenagear todos os profissionais da saúde. A saúde pública mais que nunca é reconhecida como Bem Público em letra maiúscula. São tempos de mudar os holofotes, de rever prioridades e reconhecer verdadeiros, novos e velhos, heróis e heroínas. E eles não são os únicos, são todos os que trabalham nas farmácias, no abastecimento, nas entregas, na limpeza… Envio meu sincero agradecimento a todas e todos. Somos uma rede, dependemos uns dos outros.
E envio meu amor a todos aqueles se foram e suas famílias ou quem está em sofrimento. E embora não seja religiosa, rezo pelo Brasil. Que ao final, possamos sair mais fortes, que tenhamos importantes aprendizados que nos permitam enfrentar melhor tantas outras crises que estão por aí e nos esperam. Que não voltemos a uma “normalidade”, essa realidade que nos trouxe até aqui. Que seja um divisor de águas, que ingressemos em uma nova etapa, uma em que atualizaremos nosso conceito do que realmente importa. Que saíamos melhores, com um novo e reforçado pacto e senso de coletivo. E que ao final possamos dizer que a vida venceu e que somos por fim mais humanos.