Amanhã tenho outro plantão e realmente não sei o que me espera – relata uma tanatopraxista

Camila Appel

Carolina Maluf já quis ser legista. Decidiu pela profissão de tanatopraxista aos 8 anos quando o avô, técnico de anatomia, a levou para conhecer o laboratório da USP em que trabalhava. Ela era considerada uma criança esquisita, meio “Wandinha” da Família Adams.  Fazia os enterros dos animais do bairro, cachorros, gatos, peixes. Com direito a cortejos.

Tanatopraxia é uma técnica usada para conservação do corpo. Ela melhora o aspecto, as expressões e higieniza o cadáver tornando o velório mais seguro.

Essa tanatopraxista vê sentido nas reconstruções faciais que faz. “Eu gosto do desafio de pegar uma pessoa que, teoricamente, não teria mais condições de ter um caixão aberto no velório e conseguir oferecer esse momento para a família”.

Tenho trocado mensagens com Nina, como é conhecida. Hoje, ela mora no Rio Grande do Sul onde, além de tanatopraxista, também atua como agente funerária. “Faço atendimento da família, vendo o serviço, faço a cobrança, removo o corpo, preparo o corpo, abro e fecho o velório…”.

Em 2015, quando a entrevistei pela primeira vez, ela falava da profissão com paixão. Agora sua voz está bem diferente. Ela tem receio de ir trabalhar, teme pela sua segurança e a dos colegas. Seu maior medo é ser contaminada pelo novo coronavírus. No último mês, tratou 14 corpos suspeitos (envolviam doenças pulmonares e pneumonia), mas não foram testados para COVID-19.

“Somos a última linha de proteção contra o vírus. Nós buscamos o corpo no hospital, preparamos, fazemos o sepultamento. Imagina se o pessoal começa a cair doente? O problemão que não vai ser.. para o mercado funerário e para a população de forma geral. A gente ta preocupado com isso”.

Nina se sente sozinha e esquecida, como é possível ver no depoimento que me enviou, abaixo.

“Bom, desde a última vez que falamos fiz dois plantões..  Aqui no Rio Grande do Sul as coisas estão estranhas…  as pessoas estão com medo… medo de entrar na funerária, medo de chegar perto de nós, medo de entrar no hospital…

Cheguei na funerária com vontade de chorar.. por não saber o que dizer pra família do morto.. o que dizer à equipe.. Mas me arrisquei, conversei com a família..  e pedi que deixassem lacrar a urna.. não deixaram.. expliquei sobre os riscos.. não aceitaram.. fizemos o procedimento.. mesmo sendo corpo suspeito.

Eu questionei para o médico o fato de ter acontecido uma morte por problemas respiratórios, uma morte suspeita, e ele chegou a gritar comigo. Disse que não ia se dar ao trabalho de discutir com uma gentizinha qualquer.

A minha maior preocupação é manipular os corpos sem causas definidas…  Estamos acuados.. com medo.. e as pessoas não se importam com a gente .. as pessoas estão ignorando o perigo eminente de tudo que estamos vivendo.. Nosso segmento é marginalizado.  Os donos de funerária têm suas associações, mas as pessoas da linha de frente não têm representatividade.

Ao chegar em casa hoje, eu chorei porque não pude abraçar meus filhos.. saí correndo pro chuveiro.. estou frustrada… triste.. mas em pé.. amanhã tenho outro plantão e eu realmente não sei o que me espera.. não sei se serei xingada, empurrada ou agredida por médico, familiar.. simplesmente não sei.. e tenho que aguentar calada.. porque sem esse trabalho quem passará fome são meus filhos.. amanhã chegando do plantão te relato como foi”.

Depois do plantão, recebo um áudio:

“Ta um clima bizarro, cansativo, exaustivo. Eu presto serviço para várias funerárias e vejo algumas não oferecendo assistência e equipamentos de proteção. Eu e meu marido, que trabalhamos juntos, levamos nossos próprios equipamentos. Também não tem lugar para tomar banho. Muito difícil ter funerária com lugar para fazer higienização adequada. Tem colega pedindo demissão. Tem um colega que se matou. Eu não sei… Eu não sei te dizer. É um sentimento estranho, tudo. A gente não sabe se vai sair vivo, se volta para casa bem. Não sabe se vai transmitir para alguém. É aterrorizante. Mas a gente precisa do emprego, né?”.

O documento oficial sobre manejo de corpos do Ministério da Saúde, publicado em 25 de março, prevê a segurança dos profissionais do setor funerário. O depoimento da Nina nos mostra que isso não está sendo cumprido em alguns locais. Nos resta exigir que essa proteção ocorra. E aos profissionais de saúde, pedir tolerância com a óbvia insegurança dos profissionais do setor funerário ao manejar qualquer corpo num momento como esse.

É preciso escutar esses relatos. Pedir por proteção e respeito.