Depoimento: Para enterrar o mundo e viver esse luto

Camila Appel

Maíra Lopes é professora e pesquisadora de um tema conhecido como ‘cultura de consumo’.  O foco da sua pesquisa é analisar como nossas relações são mediadas pelo o que consumimos.  Maíra mora e trabalha fora do Brasil desde 2013, alternando entre universidades da Suécia e da França. Hoje, está de quarentena na França. A pedido do blog, ela encaminhou o depoimento abaixo. Maíra fala de suas percepções sobre a chegada do novo coronavírus na França, as mudanças dessas impressões, reflexões sobre o que o vírus nos mostra e as transformações que causar.

“Temos agora a possibilidade de enterrar aquele mundo e começar a construir outras rotas, outras possibilidades. Pensar no que vale manter e no que podemos deixar na tumba desse mundo que já partiu. É um processo de luto e o luto se sente de várias formas”.

Para enterrar o mundo e viver esse luto

Por Maíra Lopes

No comecinho deste ano, tomava café com um amigo italiano em Estocolmo e no meio da conversa ele me perguntou o que eu achava do que estava acontecendo na China. Respondi que aquilo iria se resolver logo. Comentei sobre uma reportagem que tinha visto com um epidemiologista falando que o mundo estava mais preparado do que nunca para lidar com epidemias e evitar pandemias. Eu sou especialista em cultura de consumo, ele em epidemias. Eu tenho os meus conhecimentos, ele tem os dele. Me pareceu saber do que estava falando e fui na dele. Com o passar dos dias e das semanas, a evolução da doença foi tomando outro percurso. A situação foi ocupando cada vez mais espaço nos jornais, nas reuniões de trabalho, nas conversas de bar, nos grupos de amigos e da família.

Nesse meio tempo, comecei a fazer um pós-doutorado em Lyon. A cidade é linda, mas durante o mês de março foi possível notar uma atmosfera com cada vez mais tensão, dia após dia, como num conta gotas. As máscaras começam a aparecer nos rostos das pessoas, o papel higiênico e o macarrão começaram a desaparecer das gôndolas dos supermercados. Até que recebo uma mensagem: “Putz, que pena, Lisa e Michela não conseguem mais viajar. Por enquanto, ainda conseguimos ir. Vamos ver.” Lisa é uma amiga italiana e Michela sua mãe. Elas iriam me visitar no final de março, junto com outra amiga francesa e sua família. A viagem delas não era mais possível. As fronteiras estavam fechadas diante uma explosão de mortos na Itália. O medo já estava instalado ali. Por aquela mensagem, o medo chegou até elas. Ele chegou até mim. O vírus, tão invisível, se fez presente. Ele estava entre nós.

Não muito tempo depois, na quinta-feira à noite, o presidente Macron aparece na televisão francesa dizendo que a situação é também muito grave na França e as escolas estarão fechadas a partir de segunda-feira. Junto com outro professor, tenho que dar aula na manhã seguinte ainda (e depois tudo será migrado para formatos online). Já tínhamos sido avisados dessa possibilidade. No dia seguinte, sexta-feira, demos a aula e voltamos pra casa rapidamente.

Passo o fim de semana em casa, escutando o barulho das crianças brincando na praça na frente de casa. Muitos franceses parecem ainda resistir. Na segunda-feira, Macron volta para a TV e decreta: tudo fechado. Nessa altura, o mundo já está parando, em diferentes velocidades, mas o freio já está acionado. É tempo de recolhimento. Apesar de ter sido um processo longo desde aquela primeira conversa com meu amigo italiano, foi no período de uma semana que tudo pareceu mudar – o mundo, as nossas rotinas, as nossas preocupações. Muitos dos nossos planos e das nossas ‘certezas’ simplesmente desmoronaram. Começamos a sentir na nossa pele a força da velocidade do contágio do vírus e a desaceleração do mundo ao mesmo tempo. Ao olhar pela janela, ou ler as notícias, e ver os posts nas mídias sociais: não reconhecemos mais o mundo. Ao caminhar pelas ruas, as lojas estão fechadas. Os restaurantes, os bares, a praça na frente de casa, de onde ouvíamos risadas e outros barulhos de vida, restou o silêncio. O mundo mudou, mas nossos corpos parecem não saber ainda como se ajustar nesse novo espaço, nossa mente também não. Esse descompasso mostra um espaço vazio. Há um vão entre os nossos corpos e aquele mundo que desmoronou – junto com as nossas reuniões, aulas, churrascos, botecos, viagens, trabalhos, e os prazos de entrega. Entramos num limbo, entre passado e futuro. O passado tem imagens, o futuro não mais. O futuro se tornou um grande muro sem cor, sem nada. Entramos num tempo-espaço onde o medo já se faz presente, mas ainda não se transformou em esperança. Temos medo do vírus, temos medo de muita coisa agora. Temos medo por nós, temos medo pelos outros.

Não conseguimos fazer planos, não conseguimos enxergar o futuro. Estamos sem direção. Acho que todos já tivemos esses momentos. A diferença agora é que esses períodos eram pessoais ou até mesmo coletivos, mas não universais. Nunca tivemos esses momentos tão sincronizados, seja no hemisfério Norte ou Sul, no Leste ou Oeste. Estamos todos com medo. Medos e alegrias não se alternam mais. Agora, estamos todos sincronizados por um afeto que parece sobressair. O mundo parou, nós paramos, de medo. O vírus mostrou que o impossível pode acontecer: o mundo parou. O imaginável se tornou realidade. É nessa paradinha, que também outro impossível pode acontecer – podemos tomar outras rotas que antes também se diziam impossíveis.

Agora, podemos enxergar tantas coisas que, assim como o vírus, estavam presentes, mas nos eram invisíveis. Só agora, estamos enxergando tudo o que estava capenga, dentro da nossa casa e fora dela, nas nossas relações pessoais, assim como nas relações internacionais. Tudo que estava incongruente, tudo que era injusto. Agora grita. Tudo agora está escancarado. Não dá mais para fugir. E, pela primeira (e provavelmente) única vez na vida, tenho que concordar com o ‘nosso’ presidente, Jair Bolsonaro: ‘vai morrer muito mais gente por uma economia que não anda do que por coronavírus’. A diferença é que já morria, mas não estávamos vendo. O coronavírus escancarou. A economia que nós tínhamos já não andava – pelo menos, já não andava na direção de uma grande parcela da população. A economia já estava matando muita gente de fome, já estava esgotando o sistema de saúde, já estava tirando os direitos trabalhistas, já estava desgastando nossas relações pessoais. Aquele modelo econômico junto com sua cultura de consumo já estava nos sufocado, já estava sufocado. Talvez o vírus esteja mostrando o que antes era invisível por operarem de forma parecida – eles sufocam muito de suas vítimas.

O vírus, assim como o mercado, opera de forma invisível. Mas, a diferença, é que a natureza parece ser bem mais democrática que a economia. Com o vírus, ninguém está a salvo. Talvez o vírus então seja mais justo do que a economia, e não o contrário. Com o vírus, todos sentimos medo ao mesmo tempo.

Mas, como Bruno Latour argumenta em sua análise do Covid-19 e do sistema capitalista,devemos começar a pensar agora em qual mundo novo queremos construir. Aquele mundo já se foi, não temos que tentar voltar ao que era, não podemos deixar que esse seja o discurso. Como Latour mesmo disse: “se tudo estiver parado, tudo poderá ser questionado, flexionado, selecionado, classificado, interrompido para sempre ou, pelo contrário, acelerado”.

Temos agora a possibilidade de enterrar aquele mundo e começar a construir outras rotas, outras possibilidades. Temos que pensar no que vale manter e no que podemos deixar na tumba desse mundo que já partiu. É um processo de luto e o luto se sente de várias formas.

Por enquanto, descobrimos o poder de um sentimento de medo universal e simultâneo. Então, podemos também imaginar o potencial coletivo de outras emoções que devem ainda aparecer, como a esperança. Acho que é no momento da sincronia de esperança que o potencial de transformação está. Será nesse momento que outros mundos se tornarão possíveis, que outras formas de viver se tornarão possíveis. Por exemplo, a minha esperança é podermos valorizar o que estava desvalorizado, mas hoje reconhecemos como fundamentais. A minha esperança é que as ciências biológicas tenham cada vez mais investimento e incentivo para pesquisar epidemias, assim como funcionam corpos orgânicos e inorgânicos que estão em constante interação. Mas o que essa situação também nos mostra, é o quanto as outras ciências – as ciências sociais, humanas e exatas – são também fundamentais para a construção desse novo mundo que está por vir. Precisamos explorar outros modelos econômicos, assim como entender melhor as nossas relações sociais e nossas emoções. Precisamos explorar outras formas de relações pautadas pelo consumo porque esse não vai desaparecer. Há múltiplas culturas de consumo possíveis – e muitas delas já se faziam presentes. Precisamos dar valor aos profissionais de saúde pública, de ensino público, de ensino privado. Precisamos reconhecer a importância dos garis em nossa vida. Também precisamos investir mais em literatura, música e cinema – agora que sentimos o toque da literatura no corpo, quando nos falta o toque na pele. Ou, recorremos a vibração da música quando falta a vibração de um beijo demorado. A minha esperança tem todas essas direções.

Agora assim, começo a imaginar um novo mundo e o meu corpo passa a ter a direção desse novo mundo. Já sei para onde levar a vida. Começo então a sair daquele limbo, começo a sentir mais esperança do que medo.