Depoimento: As muitas crises que se somam, mas não se escolhem

Camila Appel

 O comunicador Fernando Aguzzoli é uma voz que se destaca na conscientização sobre o Alzheimer e a busca por melhorias na qualidade do envelhecimento no Brasil. Foi pego de surpresa pelo novo coronavirus enquanto participava do programa ‘Atlantic Fellow for Equity in Brain Health’, que oferece bolsa de estudos para uma rede de lideranças internacionais em saúde cerebral.

Conheça mais sobre seu trabalho aqui.

Ele me encaminhou um texto em que procurou trazer algumas raízes desse panorama em diferentes realidades. “Essa crise parece ser apenas sanitária quando se vê um país europeu vivenciando o colapso do sistema de saúde, mas ela se soma à uma crise comercial em Cuba, à uma crise política nos EUA e no Brasil, e à uma crise humanitária na África”.

Ele ainda está na Irlanda, seguindo as normas de isolamento social decretadas pelo primeiro ministro irlandês, que é médico e se propôs a “salvar o máximo de vidas que pudermos”.

O isolamento foi crescente. “Começou com o fechamento de escolas, universidades, creches e playgrounds. A recomendação para que empresas migrassem para home office gerou grande preocupação. Nos primeiros dias, gerou medo e incerteza, levando a uma corrida aos mercados. Depois, foram os tradicionais pubs, os restaurantes, o comércio e os demais estabelecimentos não considerados essenciais”, conta.

A foto que ilustra esse post foi tirada por Fernando. “No transporte público os assentos são bloqueados e é possível contar um ou outro banco onde se pode sentar. De pé, nem pensar!”.

Nas calçadas, há sinalização para manter uma distância de 2 metros de outro pedestre.

Sinalização de distância na Irlanda – Fernando Aguzzoli

 

 

As muitas crises que se soma, e não se escolhem

Por Fernando Aguzzoli

Com uma das maiorespopulações mais envelhescentes da América Latina e uma pirâmide etária equivalente a da Alemanha, Cuba preparou seu sistema de saúde para a chegada do que poderia ser uma catástrofe na região. Pela primeira vez desde seu início em janeiro de 2020o novo coronavírus ameaça o hemisfério ocidental ao aportar em países de baixa e média renda, e pior, com grandes disparidades sociais.

Em um relatório de 2019 apresentado pelas Nações Unidas, Cuba e Barbados figuram lado a lado na projeção de envelhecimento como os países da América Latina com maior população acima de 60 anos – em 2050 aproximadamente 40% de sua população terá 60 anos ou mais.

No entanto a América Latina não é conhecida por sua longevidade, mas sim pelas mais complexas realidades econômicas e sociais que moldaram sua dinâmica demográfica.  De acordo com um estudo publicado no jornal The Lancet em dezembro de 2019, a expectativa de vida em determinado bairro da capital chilena pode ser até 18 anos maior quando comparada a um bairro vizinho. Em São Paulo a diferença entre a expectativa de vida na comunidade Paraisópolis e o bairro Morumbi é de 10 anos de acordo com a publicação. Não é à toa que orelatório de Desenvolvimento Humano do Programa da ONU (PNUD)do mesmo ano apontou a America Latina como a região do mundo com maior desigualdade de renda.

O combate ao novo coronavírus foi declarado como prioridade em todas as estruturas do governo cubano, reunindo esforços da redede atendimento desde sua atenção básica em saúde até níveis mais complexos envolvendo emergências e UTI’s. Contudo, muito além dos esforços para conter a crise sanitária, Cuba viu a necessidade de criar uma força tarefa focada em questões não comumente vistas em outros países durante enfrentamento da COVID-19, como o impacto na importação de comida, desvalorização das moedas e o acesso a combustível.

Cuba se antecipou nas medidas alfandegárias. Impôs a suspensão de vôos internacionais e solicitou que barcos estrangeiros deixassem a ilha. Muito embora ainda no início de abril tenharegistrado pouco menos de 300 casos confirmados, já monitorava de perto outros 30 mil casos suspeitos recebendo assistência hospitalar ou domiciliar. De acordo com relatório da OMS de 2017, Cuba possui o maior número de médicos por 10 mil habitantes no mundo. São 81.9 em contraste com 25.9 nos Estados Unidos e 21.5 no Brasil.

Atenta às questões periféricas trazidas pelo outbreak do vírus, Cuba tem dado ênfase à campanha “EVOLUCIONA” para rastrear e solucionar casos de violência doméstica contra a mulher durante o período de quarentena. De acordo com o Banco de Dados Global sobre Violência Contra as Mulheres, em 50.7% das denúncias recebidas entre 2006 e 2013 o agressor era o companheiro. Dados como esse reforçam a importância de repensar as assistências necessárias durante o período de quarentena e de reclusão social. Enquanto em algumas realidades casa pode representar abrigo e segurança, em outras as táticas preventivas de isolamento adotadas pelo governo podem traduzir um sofrimento velado a quatro paredes.  A maneira que o país encontrou para oferecer suporte às famílias foi através da criação de canais online para seguir oferecendo suporte, fazendo registro e trabalhando na libertação dessas mulheres de suas agressões físicas, sexuais e psicológicas.

Ainda que possua um sistema de saúde integrado e com profissionais qualificados, Cuba deve também enfrentar os desafios do histórico embargo comercial imposto pelos Estados Unidos. A crise acarretada pela COVID-19 ameaça trazer outras ainda mais complexas para território nacional, negando aos cubanos o “cessar fogo” político por questões humanitárias mais urgentes.  “Precisamos nos concentrar em nossos pontos fortes. Primeiro, o planejamento centralizado, que nos permite alocar recursos materiais e financeiros quando eles são mais necessários e não para onde o mercado possa direcioná-los”. O ministro cubano da economia e planejamento, Gil Fernández, se referia ao carregamento aéreo de máscaras, kits de testagem e respiradores que foi impedido de chegar ao país no dia 31 de março por conseqüência das sanções americanas. Desde a última sexta-feira (03/04/20) outros países como Alemanha, França e Brasil também acusaram os EUA de intervir em carregamentos e negociaçõesalegando o desvio dos materiais a mando do governo de Trump.“Precisamos das máscaras. Não queremos outros conseguindo máscaras. É por isso que estamos acionando várias vezes o ato de produção de defesa”, disse Trump em um pronunciamento no sábado (04/04/2020).O Ato de Produção de Defesa evocado é uma herança da década de 50 e permite ao governo redirecionar produtos essenciais de empresas privadas para uso público. O ministro do interior da Alemanha afirmou que “Mesmo em momentos de crise global, não é correto usar métodos do “velho oeste”, se referindo ao confisco dos contratos de empresas norte-americanas para suprir a demanda interna.

Outros países vivem desafios semelhantes. No começo de abril um carregamento de 600 respiradores artificiais que seriam destinados a Bahia ficaram em sua escala, em Miami, e tiveram sua venda cancelada pela companhia chinesa. A suspeita, levantada em matéria da BBC Brasil, é de que o governoTrump tenha oferecido uma proposta comercial mais alta do que a previamente acordada com os governadores do Nordeste. A embaixada dos Estados Unidos negou o bloqueio do carregamento.

Conforme migra de continente, a crise sanitária causada pela COVID-19 ganha novas projeções e acumula outros desafios. O que parecia ser “apenas” uma crise sanitária na Ásia acabou virando uma grande crise econômica que tende a se intensificar com a recessão global futura, uma crise de informação sendo a primeira pandemia sob influência da grande conectividade e disseminação defakenews,uma crise política em países que optam por ideologizar estratégias de enfrentamento da doença, colocando o equilíbrio político e a democracia em posiçõesinstáveis, e também uma crise humanitária conforme o epicentro se aproxima de países com menos recursos.

Na África o continente já enfrenta o medo sob quarentenas semassistência social para os vulneráveis, deserção de profissionais da saúde por falta de equipamentos de proteção e toques de recolher agressivos em países que antecipam o temorda crise na saúde, na economia e também nas relaçõeshumanitárias. Um relatório feito pelo Global Health Observatoryem 2017 mostrauma densidade de médicos baixa em todo o continente africano, mas ainda pior na África Ocidental em países como Mali, Niger e Burkina Fasso com menos de 1 médico por 10 mil habitantes. Enquanto países ricos isolam milhões de habitantes sob políticas econômicas sustentáveis, outros não podem pensar na crise do amanhã sem resolver a fome do hoje.

Oagressivo uso do termo isolamento social tem sido foco de grandes discussões nos últimos três meses. Ao passo em que isolar-se parecia ser uma solução ao vírus em países ricos, em países pobres passou a simbolizar falência, fome e medo, trazendo conflitos gerenciáveis apenas por governos equilibrados e por políticas sociais responsivas e eficientes. Entretanto, a diferença cultural variante tem mostrado que o isolamento pode ser apenas social, emocional, físico ou um conjunto de todos, abrindo caminho para um cenário de dor e sofrimento coletivo. A aflição pela possibilidade de morte iminente explorada pela mídia. O medo do desconhecido compartilhado pelos governantes. O desespero da fome do dia seguinte. O receio do mundo que teremos ao final dessa tempestade que navegamos. O martírio que se via individual durante a pandemia mostrou-se de uma sociedade. Vivemos constantemente um luto coletivo de perdas, algumas, irreparáveis e outras de reparo urgente.

As muitas particularidades do envelhecimento moldam e atenuam riscos relacionados ao novo coronavírus, atenuando para algumas populações, suavizando para outras. Conhecer as microestruturas sociais de comunidades também é necessário na hora de avaliar políticas públicas de assistência e impacto econômico do isolamento. Enquanto em países de alta renda é possível – e muito comum – viver sozinho, com autonomia, independência e sem nem mesmo conhecer quem mora ao lado, em países de baixa e média renda a vida colaborativa é uma questão de sobrevivência.

Em 2015 a Holanda ocupava o 6º lugar no ranking de Apoio ao Envelhecimento de acordo com o International Global AgeWatch enquanto o Brasil figurava a 56ª posição. Essa estatística está bastante relacionadaao modelo de cuidado compartilhado entre estado, seguradoras privadas e as famílias. Enquantona Holanda93.4% da população 60+ vivesozinha ou com um cônjuge em apartamento próprio, no Brasil esse número cai para 35%. Além disso, o relatório da ONU de 2017 mostra que apenas 5.5% desses idosos na Holandamoram com seusfilhos, e que no Brasil esse número sobe para 50%.

A América Latina aprendeu a viver em comunidade. Não é à toa que o termo “Favela” ganhou um substituto para denominar as regiões com precariedade em infraestrutura: “comunidade”. Ambos como adjetivos de qualidades contrastantes, a primeira ganhou cunho pejorativo e tem caído em desuso por remeter a bairros não urbanizados, sujos e dominados pelo tráfico e prostituição, já o segundo se referindo a qualidade colaborativa das dinâmicas vivenciadas em periferias brasileiras. A proximidade física das construções, a ausência da privacidade e a constante necessidade de assistência forçaram essas populações a governarem um estilo de vida colaborativo: o famoso “botar mais água no feijão”.

Depois de três semanas das políticas de distanciamento social recomendadas pelo Ministério da Saúde no Brasil, o governo federal iniciou o pagamento do auxílio mensal de R$600,00 destinado a trabalhadores informais. O pacote inicial representa um investimento de R$ 98 bilhões e deverá suportar 54 milhões de brasileiros elegíveis ao benefício.

Nas comunidades é necessário conhecer quem mora ao lado, no quarto de cima ou até mesmo no quarto dos fundos. A dinâmicaautogerenciável de assistência nas comunidades permite uma distribuição de gentilezas, favores e obrigações humanitaristas. Funciona quase como uma moeda de troca podendo incluir mais um prato no almoço, uma vianda à noite, o uso compartilhado da internet, carona para o trabalho ou cuidar dos filhos do outro quando aquele tem trabalho.

Durante a crise que vivemos é possível ver também alternativas de assistência não institucionaislideradas por membros das comunidades. No Brasil tem sido comum observar bilhetes em prédios, elevadores e corredores oferecendo por ajuda: “Sou jovem, moro no apartamento 2B e me disponho a ir ao mercado, farmácia ou levar o lixo para os vizinhos idosos ou mais vulneráveis ao vírus” outro dizia “Sou médica, moro no terceiro andar e me coloco a disposição para atender de forma gratuita quem tenha optado por ficar em casa, arcando com o prejuízo da ausência de trabalho ou com a demissão”. Muitos médicos estão usando suas redes sociais para divulgar números pessoais na intenção de dar suporte às famílias em isolamento para que não procurem um hospital e se coloquem em risco de infecção.

Um aplicativo na Irlanda mapeou idosos que moram sozinhos e precisam de ajuda e jovens que podem ajudá-los. Em uma comparação grosseira funciona como um aplicativo de encontros promovendo “matches” entre quem precisa e quem pode oferecer suporte.

De acordo com a Universidade John Hopkins mais de 1/3 da população mundial iniciou o mês de abril em quarentena ou com alguma forma de isolamento. Isso representa 2.5 bilhões de habitantes, incluindo toda a população da Índia com mais de 1.3 bilhão de pessoas. Isso representa a maior quarentena em números já registrada, forçando uma rápida reestruturação dos modelos de assistência equilibrando poder público, privado e a responsabilidade das famílias nesse processo.

No Paquistão não é diferente. Escolas e o comércio não essencial estão fechados e reuniões públicas proibidas. De acordo com o primeiro-ministro Imran Khan cerca de 25% dos paquistaneses não podem comer duas vezes ao dia.Entretanto em matéria produzida pela britânica BBC, o povo reeducou-se de maneira consciente para oferecer suporte aos vulneráveis. Readaptou suas estruturas para um cotidiano governado pela complementaridade entre cidadãos, unindo-se para ajudar aqueles que não podem esperar a crise sanitária resolver-se por si. Muitos paquistaneses estão oferecendo o Zakat – imposto muçulmano da caridade – aos não assalariados que dependem do dinheiro de hoje para comer ou passar fome. Em entrevista a BBC o Dr. Imtiaz Ahmed Khan, biólogo molecular da HamdardUniverisiyem Karachi citou o Zakat como sendo uma limpeza espiritual. Frente ao vírus que coloca a fragilidade biológica do ser humano em cheque, Imtiazsugere uma limpeza não-física mas ainda assim necessária na crise atual: “O dinheiro é como a sujeira nas mãos”, complementa ele com um dito popular paquistanês que propõe a prática da caridade.

Ainda mais impressionante é o relatório compartilhado pela Stanford Social InnovationReview mostrando que pelo menos 1% do PIB no Paquistão é destinado à caridade, enquanto Reino Unido e Canadá doam respectivamente 1.3% e 1.2% de seu PIB. Outro dado levantado pelo Pakistan Centre for Philantropy afirma que 98% da população dedica algum tempo à caridade e voluntariado.

Países pobres não podem esperar por planejamento quando a forme bate à porta todos os dias. Paquistaneses estão destinando muito mais do que o valor devido ao Zakat para compra de produtos essenciais àqueles que perderam a remuneração do dia trabalhado.

A Chikungunya não vai isolar-se no nordeste brasileiro. A Dengue vai seguir matando em Cuba. A África do Sul continuará lutando contra o espraiamento do HIV concentrando cerca de 20% dos casos registrados no mundo. A fome vai continuar matando na Somália. A guerra do narcotráfico no México. A violência na América Central. As ideologias no Oriente Médio. Mas onde estarão os estádios lotados em países ricos para arrecadar dinheiro para a crise dos países pobres? Onde estarão alocados as reservas e recursos essenciais de países ricos quando uma crise se sobrepuser a outra?

Precisamos mais que nunca validar o pensamento coletivo e dar suporte as comunidades vulneráveis. Precisamos utilizar as redes sociais para compartilhar bilhetes com gentilezas nas portas de elevadores, destemidos civis entregando suprimentos para quem dorme na calçada, profissionais que estendem a mão e compartilham seu conhecimento apenaspelo bem de tê-lo feito. Varais de máscaras e luvas doadas aos desabrigados. O reforço da economia de bairro. Valorização da indústria nacional.Agora, mais do que nunca, precisamos de pequenas mudanças para viver outras maiores. Eu preciso de ti, você precisa de mim.