A difícil habilidade de dar um telefonema com a pior notícia
Nos últimos dois meses, mais de 15 mil famílias receberam um telefonema com a pior das notícias: seu parente morreu de COVID-19.
Durante a internação hospitalar, cabe ao profissional de saúde passar um boletim médico diário sobre o estado do paciente, atualizar sua piora, ou melhora, tentar responder perguntas que muitas vezes não tem respostas, e oferecer o máximo de acolhimento e empatia possível. Isso tudo à distância. Não é fácil.
No contexto pré-pandemia, grande parte das UTIs já estava humanizada, liberando visitas aos pacientes durante 24 horas. Na rede privada é comum permitir um acompanhante durante o dia todo. Na pública, há horários específicos, com entradas diárias. A política de visitação varia entre os hospitais, mas garante um momento de proximidade com o paciente e de conversa íntima entre a família e o médico.
Normalmente, é um momento importante para decidir tratamentos, medicações, procedimentos invasivos, discutir seus riscos e possíveis prognósticos. Enfim, tirar dúvidas. Esses momentos ajudam a processar a evolução da doença.
Se evoluir para a morte, há chances dessa notícia ser recebida com maior compreensão após esse acompanhamento e espaços para discussão. Conseguimos traçar uma narrativa do que ocorreu, porque e como progrediu de certa forma. Como a pessoa passou seus últimos minutos, o que ela disse, sentiu e como foi acolhida.
Com a pandemia do novo coronavírus, a comunicação com a família se tornou um momento mais estressante e dolorido. Não é permitido visitas. O profissional de saúde tem ainda menos respostas. Ele está inseguro com as informações disponíveis. A narrativa que formamos sobre o estado da pessoa fica truncada e confusa. A notícia da morte chega como um choque repentino. Seguido de outros choques: a impossibilidade de reconhecimento do corpo, do velório e enterro com amigos e familiares reunidos.
Conversei com a médica especializada em medicina intensiva Mariana Monteiro. Atualmente, ela coordena uma UTI-adulto de 20 leitos em um hospital público em Barueri e trabalha como plantonista em uma UTI de um hospital privado em São Paulo. Ela é mãe de dois bebês, um de 2 anos e 10 meses e uma menina de 1 ano e 2 meses.
Sua rotina durante a pandemia se assemelha aos intensos relatos que temos escutado. A carga horária dobrou, mal tem tempo para os filhos, convive com medo de ser contaminada e de contaminar sua família.
Apesar do aumento da carga horária e do stress, sua maior dificuldade é ver o sofrimento dos familiares. “Em alguns casos, eles deixam o parente em uma UPA com falta de ar. Lá dentro ele é intubado, transferido para o hospital e muitas vezes os familiares nem sabem onde esse paciente está. Há casos em que o paciente morre sem se despedir do familiar pessoalmente. Isso é muito dolorido para eles e para a gente que acompanha esse processo. Foi um baque muito grande psicológico para mim e acredito que para todos meus colegas”.
Uma vez ao dia, ela liga para os familiares dos pacientes internados na sua UTI com a missão de transmitir um boletim médico. Tenta fazer ligações com vídeo para os que estão em conscientes. Mas em muitos casos isso não é possível, principalmente com quem está em ventilação mecânica. A impossibilidade de fazer isso pessoalmente, como está acostumada, é preocupante.
“Nos treinamentos que a gente faz, sempre tem um contato físico. A gente tenta ficar próximo, sentar, abraçar, acolher quando a pessoa dá abertura para isso. E obviamente, agora com coronavírus, não pode. É muito impessoal. Eu to de máscara, a pessoa não consegue ver me rosto. Eu vejo a pessoa chorando, se desesperando e eu não posso fazer nada, não posso abraçar, encostar. É difícil até para quem tem treinamento para dar má notícia”.
Mariana me contou uma vez em que ligou para passar o boletim de uma paciente e descobriu que o marido dela tinha morrido de Covid-19 e o filho estava internado em outro hospital, em estado grave. “Há famílias que estão sendo realmente destruídas por conta desse vírus”.
Seu treinamento para a comunicação de más notícias não sinaliza frases específicas a serem usadas, mas há uma indicação de estratégia que pode ser benéfica.
“A gente não tem uma fala pronta, mas tentamos fazer com que a pessoa coloque em palavras toda a trajetória do paciente até aquele momento. Usando perguntas como: ‘O que você sabe da condição dele até hoje?’. ‘Você tem acompanhado a evolução?’. Isso é importante para que na hora que você dê a notícia do falecimento, não seja uma surpresa tão grande”.
André Junqueira é presidente da ANCP, Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Essa área da medicina é reconhecida por sua capacitação em dar más notícias. André me disse ver um grande retrocesso nesse aspecto porque as UTIs mais modernas já estavam se humanizando e permitindo a visita praticamente por 24 horas. E agora vemos, novamente, uma distância entre o médico e o paciente. Mas por um motivo bem diferente.
“Eu trabalho com dois novos desafios, a insegurança e a imprevisibilidade. No cenário do COVID-19, a gente não sabe realmente o que vai acontecer. É diferente falar sobre um câncer em fase avançada. Não temos uma segurança das possibilidades. Há perguntas que não temos respostas, como: Onde será que ele se contaminou? E se tivesse feito exame mais cedo?”.
Como protocolo, ele indica tentar aproximar o paciente dos familiares virtualmente, com teleconferência, tablet, e filmar a pessoa. “Mas não podemos fazer isso com os pacientes sedados e intubados, por respeito. Não sabemos se ele deixaria ser visto assim”.
Ele me encaminhou um guia de comunicação para profissionais de saúde na pandemia COVID-19, desenvolvido por uma instituição americana, VitalTalk, e adaptada pela ANCP.
O guia oferece orientações, em forma de perguntas e respostas, às diversas situações que necessitam de uma comunicação entre o profissional de saúde e seu paciente ou familiar. São momentos como a triagem, quando alguém está com medo de estar contaminado, a admissão do paciente no hospital ou UTI, nas conversas sobre tomadas de decisão (tratamentos, procedimentos), na informação de más notícias pelo telefone e como o profissional pode pedir ajuda para lidar com determinada situação.
Na comunicação de más notícias aos familiares, primeiro aconselha-se perguntar se a pessoa está em um local onde possa falar. Após essa introdução, passar a informação da morte do parente, dar espaço para momentos de silêncio e oferecer apoio: “Eu sinto muito”. “Estou aqui”. “Eu posso imaginar como tudo isso está sendo um choque para você. É uma situação muito triste e difícil”.
Há itens relacionados à possível antecipação dos profissionais sobre reações de pacientes e familiares. Por exemplo: “Eu não sei como dizer para esta adorável senhora que eu não posso colocá-la na UTI e que ela ta morrendo”. O guia orienta: “Lembre-se do que você pode fazer. Você pode ouvir sobre o que ela ta preocupada, pode explicar o que está acontecendo, pode ajudá-la a se preparar, pode estar junto. Essas atitudes são especiais”.
André já permitiu a visita de familiares para um último encontro. “Em casos muito difíceis, quando a família está em sofrimento muito grande, deixamos entrar para despedir à distância e toda paramentada. A nossa maior preocupação é promover essa despedida”.
Ele se emociona quando consegue ajudar uma família mesmo nessas condições.
“Apesar do cenário triste, quando a gente consegue reestabelecer a confiança, a gratidão da família é enorme. Eles agradecem muito o esforço da equipe e do hospital de promover a despedida, acolhimento e empatia. É algo que está se valorizando cada mais”.