A gente não tem um minuto de paz
Enquanto eu me recupero da COVID-19, convidei a pesquisadora Cynthia Araújo para escrever um artigo para o blog. Cynthia sentiu um impulso de falar sobre um tema urgente. “Tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado, mulheres, tamoios, mulatos, eu quero o país que não está no retrato”. Obrigada pela oportunidade de publicar esse conteúdo aqui, Cynthia.
Tem sangue retinto pisado
Por Cynthia Araujo
Tem sangue retinto pisado,
atrás do herói emoldurado,
mulheres, tamoios, mulatos,
eu quero o país que não está no retrato
Até que ponto nós, brancos, podemos contar certas histórias? Sempre me faço essa pergunta.
A sociedade brasileira é considerada por muitos a mais racista do mundo. Então, de branca para brancos: nós somos racistas. E a nossa indiferença contribui para a morte de pessoas negras. Então, nós também devemos falar sobre isso.
No Atlas da Violência 2018, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), observou-se que 71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas.
Um vídeo produzido pela Anistia Internacional, Coalizão Negra por Direitos e Periferia Connection, divulgado no último dia 25 de maio, lembra, dentre muitos e muitos outros, os homicídios de Kauã Vítor Nunes Rozário, aos onze anos; de Ághata Vitória Felix, com oito; e de Kauê dos Santos, aos doze. Crianças assassinadas por um Estado que deveria protegê-las, com a conivência de uma sociedade que dá peso menor a sua morte. Violências absurdas que foram amplamente divulgadas pela imprensa e são deliberadamente esquecidas por pessoas brancas como eu.
Na última semana, João Pedro, um menino negro de apenas quatorze anos, foi covardemente assassinado. Ele estava em casa, na Ilha de Itaoca, em São Gonçalo. A jornalista Thais Bernardes, editora-chefe do portal de jornalismo Notícia Preta(1), escreveu que o laudo cadavérico aponta que o menino foi assassinado com um tiro de fuzil pelas costas. Em casa.
A família de João Pedro passou a noite procurando por notícias suas. Ele já estava morto. A polícia já sabia que ele estava morto. Mas a família continuava procurando por ele.
Conceição Evaristo, uma das principais escritoras brasileiras contemporâneas, falou sobre a cruel atualidade da obra “O Genocído do Negro Brasileiro: o processo de um racismo desmascarado”, de Abdias Nascimento. Ela destaca que “jovens corpos negros defrontam com a precipitação da morte. Um deles, João Pedro Matos, 14 anos, com o seu corpo negro estava ‘marcado para morrer’.”
“Corpos matáveis”. Conhece essa expressão? Ela nos lembra que as crianças mortas pelas mãos do Estado são quase sempre pretas.
E que “a gente não tem um minuto de paz”.
Esse sentimento pode até sensibilizar pessoas brancas como eu. Mas logo voltamos para a segurança de quem não será violentado pela cor. De quem não terá que brigar pela biografia de um filho executado pela polícia, porque ele não é negro.
Brigar pela biografia. Tentar impedir que, além de matar o João Pedro, matem também a sua história. Para que não violentem a sua imagem depois de violentarem o seu corpo, criminalizando a sua existência.
No dia 19 de maio, pouco depois que o corpo do João Pedro foi localizado, o RJTV1 fez uma matéria sobre sua morte. Ela me causou um incômodo profundo – o mesmo que você está sentindo ao ler este texto, espero. Em um vídeo gravado, sua mãe, Rafaela Lenc, dizia: “Ele só tem quatorze anos. Ele não é bandido”.
Em transmissão ao vivo, o pai de João Pedro repetiu para o repórter Eudes Júnior que o filho não era bandido, era “um jovem de quatorze anos, um jovem com um futuro brilhante pela frente, (…) querendo ser alguém na vida. Mas infelizmente a polícia interrompeu o sonho do meu filho. A polícia chegou lá de uma maneira tão cruel, atirando, jogando granada, sem mesmo perguntar quem era. E eu entendo. Se eles conhecessem a índole do meu filho, quem era o meu filho, eles não faziam isso”.
A família de João Pedro preocupava-se em mostrar que ele não merecia morrer.
No episódio do podcast Finitude “Vidas negras importam”, o ativista negro e membro do canal Periferia Connection Wesley Teixeira deu voz ao meu incômodo: “parece que a vida da população negra tem que ser o tempo todo validada, [tem que] merecer viver”.
No dia 28 de maio, conversei com a tia do João Pedro, Denize Roza. Falei sobre a minha sensação de que os familiares do João tinham achado necessário ressaltar que o João Pedro era só uma criança, que ele não estava envolvido com nada errado.
Ela me disse que a família realmente queria deixar isso bem nítido: “A gente sabe que, na mente de muitas pessoas e até das polícias, se você mora numa favela, a grande maioria eles acham que são pessoas envolvidas com tráfico. E não é isso. A minha preocupação também era essa. Que ele não ia passar como se fosse um menino ruim, um menino bandido, um menino viciado, coisa que ele não era”.
Eu respondi que me doía muito saber que eles se preocupavam com isso, no lugar de apenas sentir a dor de perder o João. Falei sobre reconhecer mais um privilégio, dentre tantos: o de perder uma pessoa para a violência policial e não temer que o Estado e a sociedade a culpem por isso.
E pedi para a Denize falar um pouco mais sobre essa preocupação. Ela me respondeu que sempre orientava o João e os primos dele, seus filhos, a abrir a porta e deixar a polícia entrar:
“Mas a realidade que a gente vive não é essa. Eles não chegam, batem no seu portão e perguntam se podem entrar. Eles entram. E muitas das vezes atirando. É muito complicado você querer criar seu filho decentemente, como o João era criado, como a mãe mesma relatou: protegi tanto meu filho, porque ele tinha bronquite, protegi tanto meu filho da pandemia e aconteceu isso com meu filho. Você tem um filho negro, você tem que ensinar o seu filho a se portar melhor do que uma criança branca. Por que eles podem ser confundidos com bandidos? Meu filho é uma criança como outra qualquer. Mas a gente sabe que na nossa sociedade não é assim. A gente tem que se policiar o tempo todo. Infelizmente, não adiantou. Pro João, isso não importou”.
Não importou, porque a cor que nos desiguala em vida também nos desiguala na morte. E precisamos que as histórias sejam contadas por quem vive essas histórias.
William Reis é coordenador do AfroReggae[2] e colunista da Veja Rio. No dia 26 de maio, ele escreveu a matéria “Coalizão Negra: Movimentos sociais se unem por João Pedro”. Nessa matéria, o William fala sobre o genocídio de jovens negros: “Você que está lendo agora esse texto pode se perguntar: Essas pessoas morrem porque são negras?’ A resposta é sim. Elas morrem porque são negras e pobres”.
Eu pedi para ele falar um pouco mais sobre essa naturalização da morte preta.
Ele me respondeu que “as pessoas morrem porque são negras, pois existe um sistema pra isso. Um sistema racista. Racismo é poder, e falta poder econômico, na saúde, na educação, no saneamento básico e na segurança [para as pessoas negras]. Sendo assim as pessoas negras historicamente morrem mais e, de tanto morrer, de tanto o racismo estar aí para que você morra, essas mortes são naturalizadas. As pessoas não associam isso à questão racial, porque, no Brasil, existe uma falsa democracia racial. Muitas pessoas acham que, pelo fato de aqui nunca ter tido leis segregacionistas, negros são iguais ou têm as mesmas oportunidades que pessoas brancas”.
Falei para ele que tenho a impressão de que a maioria das pessoas brancas não consegue associar a piada racista, a falta de representatividade do negro, o racismo no cotidiano à morte das pessoas negras.
Ele me disse que “os números mostram isso. Você tem o mapa da violência que mostra a violência por cor e classe social, você tem a anistia internacional falando que a cada 23 minutos morre um jovem negro, e você tem agora o observatório da violência no rio, são muitos órgãos. Acho que falta mesmo é o Brasil aceitar que somos racistas, pois estudos e órgãos sérios não faltam. Aceitamos isso ou vamos conviver com o fracasso como país e sociedade”.
Esse fracasso não é privilégio do Brasil. Enquanto escrevo esta matéria, o racismo faz outras vítimas. George Floyd, um homem negro de quarenta e seis anos, foi asfixiado pelo policial branco Derek Chauvin no último dia 25 de maio, em Minneapolis, Estados Unidos. Um vídeo amplamente divulgado mostra que Floyd estava no chão, algemado, com seu pescoço pressionado pelo joelho do policial. Ele dizia que não conseguia respirar e implorava por sua vida, até que perdeu os sentidos. Conforme informações da BBC, pouco depois de ser levado por uma ambulância, foi declarado morto.
Há cinco dias, protestos incisivos tomam conta dos Estados Unidos.
Em abril deste ano, o criador de conteúdo e ativista social Bruno Jerônimo perguntava em um artigo para o site Médium: “O sangue do povo preto importa?”
Perguntei ao Bruno o que ele pensa sobre o Brasil de João Pedro versus os Estados Unidos de Floyd:
“Os protestos tiveram um avanço nesses últimos dias. Depois que o vídeo viralizou, a comunidade negra norte-americana foi para as ruas, expressar sua revolta e exigir prisão para os policiais de Minneapolis, responsáveis pelo assassinato de George. Devido ao cenário histórico-social, a população negra norte-americana consegue ter uma articulação maior do que a população negra brasileira. É só lembrar das lutas pelos direitos civis, Luther Ling, Malcom X, Panteras Negras e entre outros. O mito da democracia racial no Brasil aumenta o nosso pacifismo em relação aos protestos. Tem o Covid-19, que cria o receio de sair de casa e protestar, mas é notório que, comparada aos EUA, nossa revolta com esses casos têm peso diferente. João Pedro, 14 anos, morto pelas costas, Amarildo, que não sabemos o que houve com o corpo, os 80 tiros não foram solucionados, quem matou Marielle é uma pergunta que tem 808 dias sem respostas. Tem passado batido, sabe?
A Coalizão Negra por Direitos, aliança que reúne mais de cem entidades do movimento negro de todo o Brasil, notificou organismos nacionais e internacionais, para que haja investigação e responsabilização pela morte do João Pedro (os documentos protocolados podem ser encontrados aqui. Além disso, a Coalizão tem uma campanha permanente para que “os veículos da mídia passem a tratar os assassinatos deliberados, diários, sistemáticos em massa da população negra com o nome que eles têm: genocídio”.
Uma das entidades que compõem a Coalizão é a Uneafro , uma rede de educação popular de ação permanente em quarenta comunidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Conversei com o professor de história Douglas Belchior, um dos seus fundadores, sobre o trabalho da Coalizão.
Ele me disse que a Coalizão trabalha fazendo denúncias em cortes nacionais e internacionais, além de intervenções junto ao Executivo e ao Congresso Nacional, “visando à aprovação de leis que buscam a implantação de uma segurança pública humanizada no país, e não essa, que é uma segurança pública genocida, na nossa avaliação. No ano passado, estivemos muito no Congresso, em Brasília, além de termos ido à OEA e à ONU, por diversas vezes”.
O Douglas me explicou, também, que, embora existam outros escritórios e iniciativas de direitos humanos que atuam nesse sentido, os movimentos negros querem fazer a sua autorrepresentação: “nós somos o movimento que está na base, que é composta pelo povo que morre na bala da polícia, e nós, ao mesmo tempo que somos esse povo que labuta dia a dia, que enfrenta com o corpo a violência da polícia e do Estado e a desigualdade e a fome, a gente quer também ser o corpo que elabora a política, que formula, que se organiza”.
Para o Douglas, o João Pedro é mais uma criança preta vítima da política de segurança pública colocada em prática pelo Estado, que promove a morte deliberada de um segmento específico: o negro. E isso tem um nome: genocídio, praticado pela polícia mais violenta do planeta.
Hoje, dia 31 de maio, após a morte de mais um jovem negro pela polícia, desta vez Matheus Oliveira na favela do Catrambi, foi realizado um ato pelo fim das operações policiais violentas nas favelas, em frente ao Palácio da Guanabara, convocado por coletivos de favelas do Rio de Janeiro. A necessidade de visibilidade em meio à pandemia de Covid-19 veio com recomendações: “Mantenha distância de 2 metros das outras pessoas, volte para casa depois do ato, não crie aglomerações, vá de máscara. Se for grupo de risco não vá”.
Sigo muitos perfis de jornalismo negro e antirracista nas redes sociais. O ato foi amplamente divulgado, mas, antes pouco repercutiu na mídia em geral.
Para o Bruno Jerônimo,
O cenário artístico norte-americano é outro ponto que diferencia os Estados Unidos do Brasil, pois vemos o engajamento de celebridades mundiais, como LeBron James e Beyoncé, na esfera política, que faz com o que o povo negro tenha mais voz. Os protestos resultaram na prisão de Derek Chauvin, policial que matou George. Se será condenado ou não, veremos. No Brasil, as investigações andam lentamente sobre o caso João Pedro. Torço por justiça, apesar de ver que os fatos do passado não favorecem. Enquanto esse povo continuar adormecido, as mortes serão apenas números e postagens no Instagram. Isso me faz questionar se o sangue do povo negro realmente importa”.
Enquanto termino de escrever esta matéria, assisto ao vivo, pelo Instagram, a violência policial carioca. O jornalista negro da Rede Globo Marcos Luca Valentim, que havia participado do ato, realizado de forma absolutamente pacífica, acaba de ser ferido por uma bomba jogada pela polícia sem qualquer motivação.
Denize Roza lembra que todas as mães da ilha sentem a dor da mãe do João Pedro. Todas sabem que “poderia ter sido o seu filho”. Ela diz que a família quer justiça, “não só pelo João, por todas essas crianças e mães que já passaram por isso. E a gente sabe que isso não vai parar, infelizmente”.
Pergunto ao William Reis o que eu, branca, posso fazer para que isso pare. Ele me responde que “as pessoas brancas podem ajudar, acho que fazendo um papel dentro dos seus locais, onde convivem, se reeducando, educando as crianças brancas, cobrando uma diversidade no nosso país, entendendo que podem ajudar, mas que o protagonismo disso é negro. Não odiamos os brancos, odiamos o racismo do país”.
A Thais Bernardes concorda: “o papel do branco antirracista na sociedade racista é dar visibilidade para as causas negras. No seu espaço de convivência, seja no seu trabalho ou na sua família, levar as pautas e o olhar racializado sobre os temas”. Ela explica que “a luta antirracista não é de negro contra branco. Para uma sociedade plural como a nossa se constituir, é preciso ter diálogo. O nosso racismo é estrutural e estruturante. Os brancos ocupam lugares na sociedade que nós, negros, não ocupamos, ou em que somos minoria”.
Se ainda não convenci você sobre a nossa responsabilidade, compartilho a última fala da tia do João Pedro: “Tudo que a gente faz lembra ele. Vamos comer e lembramos daquilo que ele gostava de comer, daquilo que ele não gostava. Hoje a gente comentou que ele adorava comer bolo de fubá. É muita dor, ele era um menino alegre, sorridente, brincalhão, gostava de fazer a gente rir”.
João Pedro era um adolescente, no início da vida. Ao ouvir a mensagem carinhosa da sua tia, lamentei não ter como conhecê-lo. Falhamos com o João e tantas outras pessoas. Falhamos com seus sonhos, suas potências. Suas vidas valiam muito, valiam tudo. E nós tiramos deles o mundo que lhes era devido.
Agradeço a todas as pessoas que gentilmente aceitaram conversar comigo e me cederam o que temos de mais importante: o tempo. Contribuíram para esta matéria: IG @brunojeronimo @ciica.pereira @denizeroza_ @negrobelchior @thaiisbernardess e @williamreis85. Agradeço, ainda, a @conceicaoevaristooficial @eudesjunior27 @finitudepodcast @hosanaelliot @thiago_augustto e @wesleyteixeiras e todos os portais de jornalismo antirracistas, em especial o @noticiapreta. E, hoje, e sempre, pela troca e confiança, à querida Camila Appel @mortesemtabu (fb).
“Não sou negro, como ajudo na luta contra o racismo?”.
Texto de Ciça Pereira. Gestora de políticas públicas. Pesquisadora e gestora cultural. Idealizadora da iniciativa Afrotrampo.
- Doe para campanhas em combate ao racismo.
- É bem relacionadx, conhece pessoas bem sucedidas, fale sobre projetos pretxs e sobre profissionais pretxs.
- Compre produtos de empresas pretas.
- Fale sobre racismo para pessoas brancas.
- Fique em silêncio quando uma pessoa negra falar algo relacionado ao racismo.
- Encontre terapeutas pretos e pague sessões e diga a ele para distribui-las para pessoas negras. (anonimamente, por favor. Não faça a Rafa Kaliman)
- Grite com policiais quando forem racistas.
- Se você tem acesso a veículos de imprensa ou tem visibilidade, apoie campanhas e denúncias, apoie conteúdos urgentes de mídias independentes. Conheça: @almapretajornalismo @vozdascomunidades @portalgeledes @desabafo_social @xepafestival @ebonyenglishschool @afrotrampos
- Seu pai é dono de empresa? Doe dinheiro para projetos pretos.
- Seu pai/você é dono de empresa? ‘Contrate, promova e pague um bom salário a pessoas negras, porque somos sempre os que ganham abaixo do piso das faixas salariais – experiência própria. Detalhe: entregando mais e melhor do que muitos’ (@MartaCelestino)”.
(1) Qual a importância dos portais de jornalismo antirracista?
Por Thais Bernardes (Notícia Preta)
Primeiro é importante ressaltar o que é fazer um jornalismo antirracista. Um jornalismo antirracista não é somente sobre pautas ligadas diretamente ao corpo negro, como acontece nos casos de genocídio, assassinato e violência policial. Ser um jornalista antirracista é entender a informação através de uma perspectiva racial e social da notícia e isso pode passar por pautas sobre política, economia. Por exemplo, se a gente fala sobre o aumento do dólar, a gente pode fazer uma pauta antirracista, dizendo como isso vai impactar as classes C e D, que são majoritariamente negras. A gente também pode falar sobre como uma determinada política atinge o corpo negro.
Portanto, o jornalismo antirracista pode ser praticado por todo jornalista, em qualquer mídia, não apenas pelo que chamamos de portais ou jornais negros, que estão tendo ascensão graças à Internet. É importante dizer que o jornalismo negro em si apareceu no início do século XX, mas foi desaparecendo em razão da falta de financiamento.
A importância desse jornalismo é trazer a informação levando em consideração a população negra, que corresponde a 54% da população brasileira, segundo dados do IBGE. Então, por exemplo, no início da pandemia aqui no Rio de Janeiro, a gente fez várias pautas sobre transporte público. Nós mostramos que a mídia tradicional falava “fique em casa”, mas o BRT continuava lotado. Ali tem uma questão racial, porque o BRT estava lotado majoritariamente de uma população de trabalhadores negros que compreende empregadas domésticas, porteiros, as classes C, D e E, que precisa trabalhar para sobreviver e não tem como ficar em casa, por motivos principalmente econômicos. Então, tratar essa pauta de uma forma racializada é dizer que essas pessoas são negras, porque estão na base da pirâmide social, especialmente a mulher negra.
Na ausência desse jornalismo antirracista na chamada mídia tradicional, que frequentemente desconsidera a racialização, são os portais de jornalismo negro que fazem a leitura da informação para os nossos.
Um outro aspecto importante do jornalismo antirracista é a leitura dos corpos negros, tal qual são apresentados, como nos casos de violência policial, já que a maior parte das pessoas assassinadas são pessoas negras. Quando houve o caso do João Pedro, muitos títulos da imprensa tradicional diziam: “jovem de quatorze anos morre em operação policial”. Para a mídia antirracista, as palavras “morre” ou “é morto” apagam o que de fato aconteceu, um assassinato, porque o laudo comprovou que o João Pedro foi assassinado com um tiro de fuzil nas costas. E isso é ser executado em operação policial. A utilização correta dos verbos dá um sentido amplo e real do fato. Quando a mídia antirracista enfatiza “jovem é executado”, “jovem é assassinado”, aí você entende a crueldade do foi feito pela polícia. Outra questão importante se refere à identificação do negro, a partir de suas profissões. Eu sempre dou o exemplo de “traficante é preso com cinquenta quilos de cocaína no aeroporto” e “estudante é preso com cinquenta quilos de cocaína no aeroporto”. Quando você adjetiva, você sabe a cor que ele tem. Geralmente, o traficante é o negro, o estudante é o branco.
Esse é o trabalho linguístico e educacional da mídia antirracista. É a gente entender que a utilização dos verbos e dos adjetivos leva a entendimentos diferentes.
E eu sempre falo que o trabalho do jornalismo negro é um trabalho educacional. Por vivermos em uma sociedade de racismo estrutural e estruturante, é nossa função quebrar conceitos, clichês e paradigmas. E a gente só consegue isso através de uma educação. E como é educar no jornalismo? É você educar a leitura, a forma como você lê e a forma como você interpreta. Eu acredito que, mudando essa linguagem jornalística aos poucos, a gente vai conseguir – não sei em quanto tempo – chegar a uma linha de escrita e comunicação antirracista, em que palavras como “denegrir não serão mais utilizadas; em que uma jornalista não vai falar, sobre um negro preso, que ela não sabe o motivo da prisão, mas “ele poderia estar roubando”, porque para ela é natural essa situação. A partir do momento em que a linguagem é trabalhada, a gente desnaturaliza conceitos que foram historicamente criados.
[2] Nas palavras do próprio William, o AfroReggae é uma ONG que existe há 27 anos nas favelas do Rio, trabalhando com Populações marginalizadas e com foco central em afastar jovens da influência do tráfico. A ONG hoje tem projetos na área de games, uma agência para egressos do sistema prisional que se chama Segunda Chance, um centro cultural em Vigário Geral que oferece oficinas culturais, uma orquestra de música clássica. Nosso dever é com o fim das desigualdades, do preconceito e do racismo.