Finitude – jornalista trata com leveza e profundidade o tema mais universal e delicado da humanidade
Nesses seis anos de blog, vi um movimento bonito se fortalecer – a quebra do silêncio em torno de um tema universal e absoluto, a morte.
Os tabus criados e alimentados sobre a fase final da vida são prejudiciais à nossa sociedade. A relação médico paciente é muitas vezes baseada em insegurança, falta de informação e falta de cumplicidade. O médico, com receio de assustar a família, não é totalmente sincero sobre prognósticos e tratamentos. A família, com receio de incomodar o médico ou mesmo não ter acesso direto a um, sente-se perdida diante de uma doença sem perspectivas de cura.
O processo de esterilização da morte (sua passagem do ambiente doméstico aos hospitais – como coloca o sociólogo Norbert Elias) acaba favorecendo essa cultura.
Morremos sós.
Muitos morrem na UTI, entubados, distantes de uma família que está insegura sobre essa ter sido a melhor alternativa. Se consolam com as palavras dos médicos: fizemos tudo o que poderia ter sido feito.
Mas estamos realmente fazendo tudo o que pode ser feito? Afinal o que é esse tudo?
Essa é uma das questões colocadas por uma voz que se destaca nesse movimento, a da jornalista Juliana Dantas. Ela toma frente do podcast semanal Finitude.
Inicialmente, ele era tocado por seu criador, o jornalista Renan Sukevicius, para falar sobre diversos fins. Fim da vida, fim de relacionamento, fim das coisas. Tudo começou quando o colega, e amigo, a convidou para ser entrevistada sobre a morte do seu pai, o premiado jornalista Audálio Dantas. Entre seus reconhecimentos, está um prêmio concedido pela ONU, por importantes trabalhos na área de direitos humanos.
Juliana passou por uma experiência intensa. “Eu tive um luto em vida, acompanhando todo o processo de morte. Tanto da minha avó, quanto do meu pai. Ele morreu em 3 meses depois dela, no mesmo quarto, no mesmo hospital”.
Esse hospital é o Hospital Premier, o primeiro do Brasil a se dedicar integralmente aos cuidados paliativos. Fundado em 2004, se coloca como um espaço de acolhimento acima de tudo.
Conheça os cuidados paliativos aqui.
Acompanhar a morte do seu pai nesse hospital foi uma experiência transformadora. Tanto pessoalmente quanto profissionalmente, já que ela personificou uma missão a partir disso.
A abordagem do hospital é única em todos os aspectos. Até a forma como o psicólogo se aproxima é diferente e foi essencial para ajudar Audálio, que não se conformava em ter que diminuir o ritmo, a começar a elaborar o que estava acontecendo.
“Ele não gostava que as pessoas soubessem do tamanho da gravidade da doença e ele não gostava de saber. Uma vez me disse: não quero que as pessoas sintam que eu sou carta fora do baralho”.
Ao invés de chegar com perguntas bruscas, o psicólogo iniciou a conversa com um interesse comum: Carolina de Jesus, a escritora descoberta pelo jornalista.
Juliana foi percebendo, aos poucos, que existia um abismo entre a medicina tradicional e a de cuidados paliativos.
“Meu pai ia parar a quimio e um amigo dele disse ‘Audálio, não desista’. Como é cruel esse ‘não desista’. O amigo não falou por mal, mas é um completo desconhecimento sobre o que significa parar a quimio e ter qualidade de vida. Aí, eu pensei – meu deus, preciso falar sobre isso porque é uma das poucas questões brasileiras que passa não pela condição financeira necessariamente, mas pelo acesso à informação”.
Juliana diz ter escutado muitos relatos de pessoas que se arrependem de terem entubado o pai, e outras dizendo ‘não quero morrer igual minha mãe’.
“As pessoas fazem isso achando que elas estão fazendo de tudo, mas elas estão tomando as decisões em falso, sem todas as informações à disposição”.
Juliana sentiu que seu “tudo” seria não entubar o pai e poder oferecer coisas que tivessem um significado para ele. Ela aprendeu a fazer Sururu, uma comida típica do Alagoas, estado natal de Audálio. Um momento significativo foi comer jaca, a fruta predileta do pai, no jardim do hospital.
O hospital incentiva e possibilita que os familiares possam realizar atividades representativas, como o piquenique do Sururu, ou arrumar uma jaca em horas.
“Até hoje eu não sei de onde apareceu essa jaca. Eu sempre tive conexão com esse hospital. Depois que meu pai morreu, continuei indo lá”.
Ninguém entra, ninguém sai
O Premier chamou atenção durante a pandemia por ter adotado uma medida drástica: fechou suas portas por 45 dias para proteger seus 48 pacientes. Ninguém entra, ninguém sai. Com uma exceção: a jornalista Juliana Dantas.
Um dia após a declaração da quarentena, no dia 26 de março, Juliana recebeu a permissão de entrar no hospital e fez uma exclusiva para seu podcast, o Finitude. “Eu percebi muitas mudanças. Eu entrei pela lateral, que é um lugar que raramente se entra. De lá, é possível ver o jardim. O Samir Salman, superintendente do hospital, destruiu o estacionamento para fazer jardim e um espaço de convivência. Aliás, é o único hospital que eu conheço que não tem um valet cobrando 30,00 por hora. Começa por aí”.
Ela entra descrevendo o que vê e ressalta elementos que fazem desse espaço único. “Eu me vali muito da comparação. Se antes eu sabia que não tinha a tenda, agora eu sei que tem. Isso é elemento. Há elementos significativos do hospital, por exemplo: ter o nome do paciente na porta”.
Juliana entrevistou diversos profissionais que toparam, voluntariamente, se isolar no hospital durante todo esse tempo. As histórias são impactantes. Conhecemos o terapeuta ocupacional português que acompanhou o nascimento do filho por vídeo e até hoje não o conhece, a médica que deixou o filho de um ano para se dedicar a esses pacientes e a auxiliar de limpeza que enfrentou questionamentos da família por ter deixado os filhos aos cuidados do pai. Chegaram a ameaça-la de chamar o conselho tutelar. O hospital recebeu voluntários também, como o chefe de cozinha.
Os 45 dias iniciais viraram 90. Juliana teve a permissão de retornar para acompanhar a abertura das portas e a reinserção desses profissionais na sociedade, nas suas vidas e rotinas anteriores. “Eles vão começar a flexibilizar, não porque entendem que o coronavirus recuou mas porque não querem esticar a corda da saúde mental dos funcionários”, diz Juliana.
Para todos nós, a abertura após a pandemia já será impactante. Agora imagina para quem entrou por um “portal paralelo” e está confinado há 90 dias em um hospital, enquanto sua vida lá fora continuava… Imagina as histórias que eles terão para contar. É o que Juliana vai descobrir.
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