Morte tem cor e CEP: é necessário expandirmos nossa discussão
Conscientemente, eu gostaria de dizer que não o reproduzo, mas essa investigação não merece respostas rápidas. No blog Morte sem Tabu, me dei a missão, há seis anos, de contribuir para quebrar o tabu da morte. Mas é necessário ampliarmos essa perspectiva. A partir de hoje, o blog terá uma coautora. Ele será escrito, também, por Jessica Moreira.
Após escrever alguns obituários de artistas e lideranças comunitárias das periferias, comecei a refletir: quem é que homenageia os rostos anônimos? Aqueles que não foram reconhecidos como líderes, mas lutaram bravamente pela própria sobrevivência?
Vai parecer mórbido, mas eu cresci visitando o cemitério Dom Bosco, aqui no meu bairro, Perus (SP), com frequência. Meu tio João, um sepultador que enterrou até presos políticos na Vala Comum durante a Ditadura Militar, morava em frente ao cemitério. Era o passeio de fim de tarde com meu pai.
Nas idas, eu sempre olhava as lápides imaginando a história por trás de cada foto; mirava, em Dia de Finados, a grande placa homenageando os presos políticos ou mortos no esquadrão da morte; tentava sempre distinguir uma morte da outra, um rosto de uma frase e me perguntando por que havia flores em umas e, noutras, a ausência de lembrança na imagem preta e branca já apagada pelo tempo.
Hoje, crescida, eu consigo sistematizar as ideias soltas da criança em novas questões: Quem homenageia as donas Marias ou seus Josés que, diante de uma pandemia, serão esquecidos sem direito sequer a um luto que abrace o coração de seus familiares?
Até a finalização dessa coluna, o Brasil já contabilizava 52.951 mortes em decorrência de Covid-19, segundo consórcio de veículos de mídia.
Quem relembra os Joãos, Guilhermes, Ágathas, Migueis, Marielles, que continuam sendo assassinados pelas mãos genocidas de um Estado que mata crianças, jovens, mulheres e homens por serem pretos?
Essas constatações me fazem sempre pensar na minha responsabilidade enquanto alguém que se utiliza das palavras, seja por ofício ou por necessidade.
Diante das dores da morte, o cuidado com a memória deve ser redobrado. Mas isso só faz sentido quando a nossa palavra pode, minimamente, maximizar o tom daqueles que sempre tiveram suas vozes abafadas.
Por isso a importância das mídias independentes e periféricas, como o Nós, mulheres da periferia, a qual sou cofundadora ao lado de outras mulheres: para que a História seja também registrada por nós.
A escrita como lugar de memória
Não sou especialista, tampouco tenho a intenção de criar uma receita sobre como cada um deve atravessar o luto ou transformá-lo em memória. Aqui, compartilho apenas a minha experiência de dor e os caminhos que me ajudaram a sobreviver sem aqueles que amo.
Nos últimos seis anos, eu vivi a perda de cinco pessoas que viviam na mesma casa que eu. Primeiro foi meu pai, Tião, que partiu em apenas 20 dias, acometido por uma diabetes descompensada. Depois, foi meu Tio Tiago, em menos de 30 dias, por conta de cirrose tardia. Em seguida, a Tia Cida, de pneumonia. A vó Laurentina, de morte dita “natural”, aos 96 anos e sem sofrimento. E, há quase conco meses, meu primo Tiaguinho, de câncer, aos 31.
A primeira delas, do pai, completa 6 anos no próximo 2 de julho. O caminho do luto foi pedregoso. Precisei perfurar a barreira do nunca mais e buscar nas nossas memórias juntos um jeito de seguir a vida sem ele.
Todo dia 2 de cada mês eu escrevia um texto em memória ao meu pai, até completar um ano. Foi o meio que encontrei para sobreviver com essa dor: guardando sua memória e mostrando isso ao mundo, entendendo que sua também havia me constituído.
A ancestralidade presente
Na minha vivência, o luto é uma doença crônica e nesse período, que a morte está tão presente em todos os noticiários, a dor do luto também vem à tona. Mas a arte, em todas suas formas, também pode ajudar a esquentar o coração.
Em outubro de 2019, quando o mestre e educador José Soró partiu, nos reunimos na Comunidade Cultural Quilombaque em volta de uma fogueira com tambores, cantando pontos de jongo, uma dança afro-brasileira da região sudeste.
Um deles diz assim: “tenho saudades de quem se foi, tenho saudades de quem se foi. Saravá! Foi pra Aruanda”. Nas religiões de matriz afro-brasileira, Aruanda é sinônimo de um local espiritual, um ‘”paraíso” ou algo assim.
Longe de mim dizer que você precisa acreditar ou não nisso. Mas aí, dentro de você, que já perdeu alguém, assim como eu, pode ser essa Aruanda, cheia das histórias dos seus. E contá-las também é um ato político e de amor. Pois as memórias das pessoas negras e periféricas importam.