Precisamos falar sobre o luto das mulheres negras

Rodrigo Tavares Raposo nasceu antes da hora, em 7 de fevereiro de 1996. Pressa de vida. Cabeludo, com costeletas e corpo miúdo, até hoje o cordão umbilical está muito bem guardado, seguindo o costume da família. Aos 2 anos, já girava o mundo do quintal de casa em cima de uma bicicleta. Crescido, fez caratê, capoeira, natação e futebol. Acreditava em gente e que Nova Iguaçu (RJ), o seu lugar, era o maior celeiro de talento jovem que poderia existir. 

Rodrigo quando ainda era um bebê/Arquivo pessoal

Falar de Rodrigo, seu jeito e seus gostos é contar a história que Nivia Raposo, 45, gostaria de ter lido nas manchetes dos jornais em outubro de 2015, quando o filho mais velho foi arrancado dela praticamente na frente de casa, pela milícia de Nova Iguaçu, com um tiro nas costas.

Ele tinha 19. Iniciava carreira no Exército Brasileiro. Queria seguir os passos do avô e da família de militares. Acreditava na justiça, mas, em um dos fins de semana de folga do quartel, foi contraditoriamente morto após se recusar a pagar “pedágio” de um policial que o acusava de roubo em um bairro vizinho. Até hoje, ninguém foi preso. Nenhuma justiça foi feita.

“Quando o Estado mata, mata até aqueles que agem corretamente. Ensinei meu filho a respeitar as pessoas e a ser um homem com todos os superlativos, para simplesmente perdê-lo para sujeitos com desvios de conduta dentro de uma instituição que, teoricamente, é destinada a nos ‘servir e proteger'”.

Nivia prefere contar em mensagens escritas essa história. “Escrevo pra não esquecer”. Conscientemente, é o jeito que encontrou para garantir o direito à memória do filho com suas próprias palavras, trazendo a verdadeira identidade de Rodrigo.

“Viver o luto a cada dia não é fácil. Pode passar até 30 anos. Vai fazer cinco em 17 de outubro e eu rememoro a cada dia, quando leio as mensagens dos amigos no Facebook dele. Ele sempre se fez muito presente na vida dos amigos e, às vezes, se estendia aos familiares dos amigos. Ele era um ser humano iluminado”.

O luto atravessa tudo. Em alguns dias, Nivia prefere ficar sozinha, mais introspectiva, mas sempre pode contar com o filho mais novo, Thiago, que também faz questão de rememorar a vida do irmão. Em outros, ela planta girassóis. “Foi Rodrigo quem me ajudou a fazer esse jardim”.

Nivia durante fala do Observatório das Favelas (RJ)

Mães de Maio, de Junho, de Julho

Para uma mulher que teve a vida do filho ceifada pelo Estado, viver o luto passa principalmente pela memória coletiva. Aquela contada junto a outras mulheres, com o ouvido perto uma da outra, mas também os olhos, as mãos, pois são corpos que vivem a mesma dor.

“Temos um Estado que já está acostumado a apagar as histórias dos nossos ancestrais. Cabe a mim, como mãe, amplificar nossas lutas e me somar a todas que perderam seus filhos”, reforça Nívia.

Débora Silva, líder do Mães Maio, diz que essa luta vem do útero e que, mulheres como ela e Nivia, irão parir um novo Brasil. “As mães dizem que luto, para nós, é verbo. Do luto nós vamos à luta. Nosso sistema é capitalista, classista, racista e patriarcal. Mas acredito que essas mulheres são intelectuais orgânicas. Damos um um giro decolonial  no momento que o sistema criminalizou e marginalizou os corpos pretos caídos ao chão”.

Além de professora, Nivia também é militante da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, onde se apoia e também acolhe outras mulheres em situações semelhantes à sua. Muitas têm conseguido romper a dolorosa barreira do silêncio e se unido para falar das tristezas ainda encostadas, das memórias das suas crianças pequenas ou mais crescidas, mas sempre cobrar por justiça aos filhos e filhas. É isso que fizeram também ao realizar uma live no dia 23 julho, quando a Chacina da Candelária, no RJ, completou 27 anos.

Em uma conversa apenas com familiares de vítimas do Estado, acompanhei as falas beiradas de saudade, mas também cheias de acolhida e companheirismo. Além de Nivia, Bruna Silva, mãe de Marcos Vinicius, Rafaela Matos, mãe de João Pedro Matos, Vanessa Salles, mãe da Ágatha Félix, e tantas outras histórias que, algumas vezes, nós, gente com caneta e câmera na mão, precisamos nos atentar mais. [Abaixo, leia alguns trechos da live]

Maternidade ultrajada

O dossiê “A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil” aponta que as mulheres pretas vivem violência tanto no esforço quanto no isolamento e solidão para tentar proteger a vida de seus filhos. O medo não é à toa.

“Por trás destes números há também a violência não letal, mas intensa e continuada, que afeta milhares de mulheres negras, em sua maioria mães dos e das jovens assassinados. Estas violências são vividas tanto nos intensos esforços que desenvolve, geralmente em isolamento e solidão, para proteger e tentar preservar a vida de seus jovens, mas também após a morte destes, ao longo de suas ações para recuperar a dignidade dos jovens assassinados”, aponta o relatório.

Uma das lutas de Nívia é ressignificar a memória do filho Rodrigo/Arquivo pessoal

O Atlas da Violência de 2019, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que, em 2017, 75,5% das pessoas assassinadas no país eram negras — a maior proporção da última década, evidenciando o racismo estrutural de nossa sociedade.

O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) apontou em um estudo que, por dia, 32 crianças e adolescentes de 10 a 19 anos são assassinados no Brasil. Só em 2017, foram 11,8 mil, sendo 82,9% negros e do sexo masculino.

O que é morte tabu na periferia? 

Esse blog se chama Morte Sem Tabu. Mas, diferente da Nivia, falar da morte dos filhos ainda é um grande tabu para muitas das mulheres negras e periféricas que perderam seus meninos e meninas nas mãos do Estado ou outras violências que acometem nossos territórios.

“Elas têm medo das pessoas que mataram seus filhos e de serem perseguidas. Têm mais medo quando é o Estado que comete o crime, porque veem os policiais passando em frente às suas casas a todo momento”, é o que diz o jornalista Kaique Dalapola, que já passou pela Ponte Jornalismo e hoje atua no Portal R7, dedicando-se sempre a denunciar assassinatos da população negra nas periferias.

“Quando a pessoa é morta pela polícia, a família tem receio de denunciar. A maioria das famílias só aceita contar a história de maneira anônima e, mesmo assim, muitas vezes, os familiares não levam adiante”, aponta.

“Muitas vezes, a única que luta até o fim é a mãe. Em nenhum momento desacredita. Os outros familiares acabam naturalizando a morte e entendendo que o Estado está cumprindo seu papel”, diz o jornalista, que tenta sempre respeitar os tempos, os medos e os lutos de cada família entrevistada.

Na semana que conversamos, ele investigava a chacina de Embu Guaçu, extremo sul de SP, onde passou boa parte de sua adolescência. Diferente de outros jornalistas, que não têm relação direta com o território, Kaique sabe as realidades que permeiam suas reportagens.

“É sempre o mesmo perfil: jovem, negro e da periferia”, conta ele, que realiza uma postagem de 8h em 8h em sua conta no Twitter com o nome de uma pessoa negra da periferia assassinada pelo Estado. Segundo dados de boletins coletados pelo jornalista, mesmo em meio a uma pandemia, o maio de 2020 foi o maio mais letal da história de São Paulo, desde os crimes de 2006, que contabilizou 137 mortes (contabilizadas). Em 2020, o número foi de 68.

Violência em tempos de pandemia

Mesmo em meio a uma pandemia, as mortes não cessaram. Do começo do ano para cá, a polícia militar do Rio de Janeiro assassinou ao menos 741 pessoas. Em São Paulo não é diferente, até aqui foram 442 mortos pela PM.  Segundo a Plataforma Fogo Cruzado, na região metropolitana do RJ, só no primeiro semestre de 2020, 17 crianças foram atingidas por tiros na região, o que representa 70% a mais se comparado a 2019. Seis morreram baleadas.

É por isso, inclusive, que as mães vítimas de violência uniram seus lutos e dores na live citada, para pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) aprovar a ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), apelidada como “ADPF das Favelas”, construída coletivamente, e que tem como objetivo proibir as operações policiais em tempos de pandemia.

Foi já em meio à quarentena que o garoto João Pedro Mattos, de 14 anos, foi assassinado depois de levar um tiro na barriga dentro do quintal da própria tia, durante uma operação policial em São Gonçalo (RJ). “O estado não acabou apenas com os sonhos dele, mas com uma família inteira. Quero externar meu repúdio ao ato que o Estado comete com os jovens das comunidades. Se fosse na zona sul, tenho certeza que não invadiria atirando. É muito bom saber que não estamos sozinhos nessa luta”, foi parte do depoimento de Rafaela Matos, mãe de João Pedro Matos.

Veja outros depoimentos abaixo ou assista à Live >> Mães contra as operações: em memória das vítimas das chacinas da Candelária e de Acari

“Perdemos nossos filhos na mão do Estado, mas ainda temos mais filhos. Essa lei pode garantir a vida dessas crianças (…) Assim como essas mães, meu filho também foi morto com tiro nas costas. Para eles, não basta matar, eles têm que criminalizar. Todo dia nasce uma mãe na dor. Estamos cansadas de enterrar os nossos filhos”,  diz Bruna Silva, mãe de Marcos Vinicius, morto enquanto ia para a escola.

“O STF precisa aprovar essa lei para evitar que várias mães continuem perdendo seus filhos assim”, é o que disse também Catarina Ribeiro, que perdeu o filho há 78 dias, assassinado após uma operação policial em Nova Iguaçu, em maio.

“Poucas foram as vezes que falei publicamente. O caso do meu filho não foi para a mídia. Pode passar o tempo que for, a dor pela perda do filho será sempre a mesma. Esses meninos foram arrancados das nossas vidas. Eles também tiraram parte da minha identidade. Eu deixei de ser a Catarina para ser a mãe do Rogério. A minha vida dali pra cá, acabou (…) Ao mesmo tempo que meu filho perdeu a identidade, a cada dia que passa eu quero viver minha identidade para falar da dele”.

“Eu não sou a mãe do auto de resistência. Quando sujam nosso filho, sujam a gente. Eu deixei de ser a mãe do Lucas de Azevedo Alpino para ser a mãe do meliante. Eu não sou a mãe do meliante, eu sou a mãe do Lucas. Não vamos trazer nossos filhos de volta, mas evitamos que isso aconteça com outros Lucas, outros Matheus”, diz também Laura Azevedo, para citar a importância da lei neste momento e também de contar as memórias dos filhos.

“A dor continua aqui. É a mesma dor. Quando ouvimos outras mães falando, revivemos a dor com muita força. Há seis anos venho nessa luta por memória, verdade e justiça. Não basta apenas matar o corpo, eles precisam dar legitimidade a esses assassinatos. Eles assassinam a dignidade e memória de nossos filhos. Infelizmente, nossos filhos não vão voltar. Se a gente não morreu quando arrancaram nossos filhos da pior maneira possível, a gente tem uma missão: lembrando as Mães de Acari,  que são as pioneiras nessa luta, nesse enfrentamento: a gente tem que lutar”, diz Ana Paula Oliveira é mãe do Jonathan Lima

“Há muitas mães que seus filhos não estão mais aqui. Quando acontece com a gente, a gente consegue visualizar dentro das famílias o quão grande é essa dor e a saudade que vimos. Ágatha, menina como todas as outras crianças, que tinha sonhos e queria viver. Ágatha também foi executada. Eu sigo tentando sobreviver um dia após o outro. Eu vivo por ela. Eu sigo acreditando em Deus. O mundo é mau, mas podemos nos juntar para ficar bem. Que, um dia, a gente reencontre nossos filhos, seja em outro mundo, no céu, mas acredito que vou reencontrar minha filha. Quero dizer às mães que vivem a mesma dor: vocês estão vivas, e continuem vivendo para o amor do filho de vocês. De alguma forma, eles estão vendo a dor e batalha”, disse Vanessa Salles, mãe da menina Ágatha Felix.