História da vala clandestina de Perus (SP) ganha livro após 30 anos
As curvas que desembocam no Cemitério Dom Bosco, em Perus, região noroeste de SP, são desertas e com árvores que tornam a estrada ainda mais obscura. Há 30 anos, o caminho e o Cemitério Dom Bosco estampavam as capas dos jornais diante da abertura da Vala Clandestina Comum construída em 1976 e que serviu como destino final de 1.049 ossadas, entre vítimas da repressão da ditadura militar, mortos pelo esquadrão da morte ou pela epidemia de meningite dos primeiros anos da década de 1970.
Descoberta a partir das investigações do jornalista Caco Barcellos, a vala veio a público em 4 de setembro de 1990, sob o mandato da então prefeita Luiza Erundina. Na terça-feira (1), às 18h, o Instituto Vladimir Herzog lança em suas redes sociais o 1º capítulo do livro “Vala de Perus: uma biografia”, escrito pelo jornalista Camilo Vannuchi.
Em oito capítulos, o livro pretende mostrar a trajetória da vala ilegal e como o assunto ressoa até hoje no bairro da periferia de São Paulo.
“Mesmo nas tardes de julho, quando um vento frio costumava varrer o aclive suave da área destinada às sepulturas de Perus, familiares levavam flores, limpavam as placas de homenagem, arrancavam ervas daninhas. Em razão da pesquisa sobre as mortes da PM, Caco gostava de ir aos cemitérios aos domingos”, é um dos trechos do livro, que será lançado semanalmente nas redes sociais do instituto.
Para Vannuchi, o tema se faz ainda importante nos dias de hoje, uma vez que a ocultação de cadáveres e desaparecimento permanece acontecendo no Brasil. “A vala clandestina retrata o período de exceção, com elementos e modos operandi que ainda se mantém em 2020. Até hoje os pretos, pobres e periféricos são assassinados e há ocultação de cadáveres. Onde está Amarildo? Quem matou Marielle Franco?”, questiona o jornalista.
A descoberta por um funcionário
Sentado em um banco do lado oposto do cemitério, Antônio Eustáquio, 75, aguarda pela reportagem lendo um livro. De 1978 a 1992, ele foi administrador do Dom Bosco e importante expoente na descoberta da existência da vala. Hoje, aposentado, administra uma floricultura e um bar, onde conta a história enquanto atende os clientes.
Com faro de investigador herdado dos tempos de jornalista comunitário, o administrador estranhou o alto número de registros de indigentes exumados sem localização das ossadas. Os sepultadores evitavam falar sobre o assunto, até que um deles revelou a vala ilegal próxima ao cruzeiro do cemitério, que havia sido aberta após tentativa frustrada de criação de um crematório para esconder as ossadas espalhadas pelas salas de velório.
Como Antônio também dormia na sala da administração, aproveitou uma das noites e foi verificar se havia mesmo alguma coisa no espaço dito pelo funcionário. Pegou uma sonda de ferro de mais de 3 metros de comprimento e enfiou em quatro cantos, confirmando as suspeitas.
“Aos domingos vinham famílias que pareciam não ser da região, com carros de placas do Rio de Janeiro, Fortaleza e Belo Horizonte”, relembra. “Alguns familiares chegaram a dizer que estavam procurando seus familiares desaparecidos”. Até o momento, ele não podia dizer nada, somando quase 10 anos entre a descoberta e a divulgação pela imprensa.
“O momento de maior medo foi quando ameaçaram meus filhos, mas fora isso eu nunca tive medo. Minha convicção era cuidar dessa memória”, conta o ex-funcionário olhando para o grafite na parede do cemitério que simboliza as botinas sangrentas de Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI, condenado por ter sido torturador da ditadura militar.
Um silêncio de gerações
Ao buscar pessoas que queiram falar sobre o assunto em uma página com mais de 80 mil pessoas do bairro, apenas 20 comentam a postagem e a maioria indica o nome da professora de História Jaine Lima, 54. Aposentada, ela escreveu uma dissertação sobre o assunto em uma especialização em História pela Unicamp e lecionou para diversas gerações do bairro.
“Eu tinha um tio policial militar que dizia que o “comunismo era uma coisa ruim”Como eu era muito curiosa, fui pesquisar o assunto. Como professora do 3º ano do ensino médio, cujo conteúdo era a Ditadura Militar, eu sempre dava ênfase à história da vala clandestina de Perus, com trabalhos de campo e visitas ao Memorial da Resistência de São Paulo”, conta.
Mas o silêncio e o medo de falar sobre o assunto ainda se instala entre as gerações mais velhas, que evitam comentar sobre a vala com medo de represálias. O grupo de psicólogos do projeto Margens Clínicas, que aconteceu no bairro de 2016 a 2017, pode constatar isso de perto, ao ter dificuldade de encontrar gente que topasse falar sobre o período em rodas públicas.
“A violência de estado produz esse silêncio. Ninguém quer dizer e se levantar para dizer que sabia ou deixa eu dar meu depoimento. Esse silenciamento é fruto da própria prática de violência com as pessoas não se sentirem à vontade para falar a respeito do que aconteceu ou do que viram”, salienta o psicólogo Vitor Barão, 36, que era parte do projeto.
“O Cemitério Dom Bosco simboliza uma história verídica de um período de censuras, prisões e mortes de pessoas questionavam a ditadura e a opressão. Por isso, é nossa obrigação contar os fatos, para que, no futuro, isso não volte a acontecer”, acredita a educadora.
Sobre isso Antônio se entristece. Na época, ele lembra de ter sido muito julgado por seus companheiros e ficado conhecido como alguém exonerado do serviço público por ter “mexido com os terroristas”, forma preconceituosa que parte da população denominava os militantes políticos.
Uma memória em construção
Por outro lado, movimentos formados pela juventude do bairro fazem questão de tornar o assunto cada vez mais público. É o caso do Grupo Pandora de Teatro que, desde 2018, apresenta o espetáculo “Comum”, que traz a história pela perspectiva dos sepultadores e também de quem até hoje busca por seus familiares desaparecidos.
Para a atriz do grupo, Caroline Alves, 21, que cresceu ouvindo as histórias de seu tio que foi sepultador do cemitério no período da criação da vala, o fato não pode mais ser soterrado. “O espetáculo traz a tona um assunto ainda pouco falado pela população e mostra para os mais novos a importância da memória e verdade”.
Além do Pandora, a Comunidade Cultural Quilombaque também realiza as trilhas da memória “Ditadura Nunca Mais”, para grupos de estudantes, nas quais um dos pontos de parada é o cemitério.
“É importante destacar o genocídio que pregavam naquela época e que acontece até hoje. A trilha é um jeito de os moradores entenderem o que foi a vala e entenderem os dias atuais”, diz Cleiton Ferreira, 36, cofundador da organização, que acredita ser importante falar sobre a morte de jovens negros, pobres e periféricos que também foram encontrados na vala.
A última vez que a “caixa” de 1.049 ossadas foi aberta pelo Grupo de Trabalho Perus (GTP), do CAAF (Centro de Arqueologia e Antropologia Forense), foi em dezembro de 2019. Nesse momento, o grupo está na etapa final de análise dos esqueletos.
“Foram enviadas amostras de 750 indivíduos para análise genética, com planos de amostragem de mais 150 indivíduos após a reabertura do laboratório, que tinha sido fechado devido a pandemia”, diz Aline Oliveira, 28, arqueóloga e técnica de Antropologia da equipe do GTP, que está confiante de que haja novas identificações nos próximos períodos.
*Atualizado em 31 de agosto de 2020, às 13:00.