Manoel: o sepultador que lutava pelos direitos dos sepultadores
Manoel Norberto Pereira morreu aos 54 anos, em agosto, em decorrência de um câncer no esôfago. Agente sepultador e líder sindical, teve papel fundamental na luta dos direitos dos trabalhadores do serviço funerário durante a pandemia.
Era 3 de abril. O início incerto e tortuoso de um longo período de pandemia. Eu buscava por agentes sepultadores que topassem falar sobre os desafios desses profissionais em meio às preocupações do novo coronavírus.
Os funerais já haviam sido barrados; os enterros reduzidos a poucos familiares. Nas fotos dos grandes jornais, as mãos de homens anônimos abriam as valas comuns, enquanto se misturavam às camadas de terra.
Nas despedidas encurtadas, eles, sempre lá, segurando as próprias dores e medos. Atrás desses uniformes azuis, quem olhava para suas angústias e necessidades?
Manoel Norberto Pereira me atendeu prontamente. Antes, eu tinha assistido um vídeo dele no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP). “Puxa, que pena, se eu soubesse que vocês estavam tão perto, teria ido ao cemitério para conversar contigo”, lamentei.
Naquela semana, ele havia rodado vários cemitérios além do Dom Bosco, acompanhado do parceiro João Batista, ambos dirigentes do Sindsep (Sindicato dos Servidores Públicos De São Paulo). Em cada unidade, produziam um vídeo junto aos colegas denunciando a ausência de EPIs (Equipamento de Proteção Individual), escassez de álcool em gel ou de roupa adequada.
“Dessa vez, a mídia está em um contínuo alarde. É um vírus que é mais letárgico, está matando mesmo. Não dá pra você dizer que não tem medo”, disse em entrevista para mim naquele dia. “Ninguém quer se contaminar. O pessoal está querendo os EPIs, que é o básico para poder trabalhar com tranquilidade. Fora o uniforme comum, azul e bota, o ideal seria o macacão branco descartável, máscara NH95, que é bastante segura, luvas e o álcool em gel”, me contou.
A ideia era publicar a matéria ainda naquela semana. Porém, com dificuldades para encontrar mais fontes, a pauta paralisou e fui engolida por outras reportagens. A entrevista ficou aqui, bem guardada. Manoel não havia apenas falado sobre o caos pandêmico, mas sua história de vida, tudo que sempre vale a pena ser contado.
Era 19 de agosto, o celular apitou com uma mensagem de Alexandre, assessor de imprensa do Sindsep. Estranhei.
“Nossa homenagem ao amigo e companheiro Manoel Norberto Pereira”, dizia o texto. Manoel havia falecido naquele dia, em decorrência de um câncer no esôfago, descoberto 17 dias antes. Nos últimos tempos, queixava-se de dores abdominais. Quando internado, a doença já estava em grau avançado.
Lembrei da entrevista que ainda não havia sido publicada e me peguei pensando na brevidade das manchetes, nas histórias que a gente não só deixa contar, mas, muitas vezes, até de ouvir.
Por isso, escrevo agora esse perfil. Uma homenagem e até um pedido de desculpa tardio, pela palavra que não chegou. Mas que vem agora na voz da irmã, a Andressa Norberto, relembrando que se falavam diariamente e inventam novas palavras para aquelas que Manoel não conseguia pronunciar; na voz do companheiro de trabalho, o João Batista, recordando as greves nas quais saíram vitoriosos; da filha, Fernanda Pereira, lembrando o diálogo cuidadoso entre pai e filha; e também da sobrinha Luiza, de seis anos, que tem o tio e as brincadeiras de cabaninha guardadas num desenho de papel sulfite.
“Sempre foi muito tranquilo”
Nascido em 24 de dezembro de 1966, na região da Vila Maria, zona norte de SP, mudou-se ainda criança para São Miguel Paulista, zona leste, com os pais, José Norberto e Leonor Pereira, e o irmão mais novo, Wagner. Na época, eram só dois, até chegar os demais, Josias, Vania e Andressa, a caçula e guardiã dessa memória.
Embora a infância tenha sido cercada de dificuldades, foi também regada de brincadeiras na rua. “Tinha carrinho de rolimã, pião, empinar pipa e muitos amigos pela rua. Ele sempre foi muito tranquilo, uma pessoa muito calma”, lembra a irmã.
Mas Manoel também cresceu vendo os índices de desemprego da época afetando diretamente sua família. O pai, motorista, muitas vezes se via sem registro na carteira de trabalho. Aos 13 anos, o menino deixou a escola para trabalhar na feira e ajudar nas contas da casa. Aos 16, o dinheiro vinha de um trabalho num bar na região do Pari.
Andressa acredita que foi nesse período que o álcool também atravessou a trajetória do irmão e o acompanhou por bastante tempo. Na entrevista com ele, a questão não foi escondida. Pelo contrário. Fazia questão de contar e dialogar com outros colegas de profissão, já que muitos são acometidos pelo mesmo problema.
‘Não queria enterrar os colegas’
Em 1997, uma amiga que trabalhava no serviço funerário o alertou que havia concurso aberto para agente sepultador. Não pensou duas vezes. Ao entrar, no entanto, optou por não trabalhar próximo de São Miguel Paulista. “Não queria trabalhar perto de casa, porque sabia que iria enterrar colegas”, dizia.
Foi para o Cemitério da Penha, onde ficou três anos. Penha, inclusive, se tornou seu apelido nos outros cemitérios. Os problemas com alcoolismo se intensificaram e ele procurou ajuda com um tratamento. Ficou afastado e, ao voltar, também mudou de unidade.
“Fui para o Cemitério de Itaquera. Lá, foi onde eu tive a oportunidade de ir ao Alcoólicos Anônimos (AA). Além de sepultador, eu comecei a fazer um trabalho de serviço social. É comum demais o problema do alcoolismo entre sepultadores”.
‘Vou ser o Dr. Manoel’
Tornou-se encarregado e, nessa época, por volta dos anos 2000, também passou a se envolver na luta por mais direitos dos servidores públicos. Aos 44, voltou para a escola e terminou os estudos que havia deixado ainda criança. Agora, cursava o 4º ano da Faculdade de Direito e dizia sempre à irmã: “antigamente, eu era o Mané, agora eu sou o Manoel. Vou ser o doutor Manoel”.
“Não para de chegar homenagem para o meu irmão”, conta. “Como era envolvido com o sindicato, viajou para muitos locais, como Brasília, Rio de Janeiro, conheceu muita gente. Ele inspirava as pessoas”.
O companheiro de lutas
Inspirava mesmo. Integrante do Alcóolatras Anônimos do Sistema Funerário, Manoel ganhou não só o respeito, mas também a confiança de outros funcionários que passavam por situações similares. Contava sua história em palestras, era motivo de orgulho em casa e no trabalho. Estava alocado no cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, mas afastado para exercer o trabalho junto ao sindicato.
“Em 2011, realizamos uma grande greve na prefeitura de São Paulo, que durou 24h. Saímos vitoriosos, parando boa parte do serviço funerário. Depois, fizemos uma nova paralisação de 4 dias e Manoel teve um papel muito importante”, relembra João.
Sindicalizado desde os anos 2000, a atuação nas paralisações efetivou ainda mais sua participação no Sindsep. Tornou-se representante e até o momento era diretor e coordenador da região oeste de SP. Os dois caminharam lado a lado por mais de 10 anos e, neste momento de pandemia, a parceria se fortaleceu, diante da missão de vistoriar os cemitérios.
“Eu o Manoel ficamos destacados para fazer o trabalho junto ao serviço funerário. Foi o que fizemos. Dia sim, dia não estávamos no cemitério para poder denunciar a falta de equipamentos de proteção individual”, afirma orgulhoso e creditando ao trabalho deles o baixo número de mortes por Covid-19 entre funcionários do setor funerário.
“Foi uma perda trágica. Para nós, uma perda irreparável. Era um companheiro de luta, um amigo. Defendeu a vida e a proteção dos trabalhadores do serviço funerário. Essa é a lembrança que vamos ficar do Manoel”.
Era militante do Partido dos Trabalhadores (PT), mais especificamente da corrente do O Trabalho, seção da Quarta Internacional Trotskista. Foi delegado nos congressos da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e também da Fetam (Federação dos Trabalhadores da Administração e dos Serviços Públicos Municipais do estado de Alagoas) e a Confetam (Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal). Foi um dos organizadores da Greve dos 100 mil contra a Reforma da Previdência no estado de São Paulo e capital paulista. “Ele se foi, mas a luta vai continuar”, diz o parceiro João.
Orgulho da família
Em casa, a família apoiava sua militância e até o chamava de “deputado”, brincando. Vivia com os pais, mas quase todos os dias falava com a irmã, Andressa. Mesmo 13 anos mais nova, os dois eram grandes amigos.
“Ele me inspirou a enxergar que nunca é tarde pra nada: para estudar, para ser feliz ou mudar a vida. Mas você tem que fazer isso baseado em uma verdade, é o que ele pregava. Sempre foi muito verdadeiro em tudo. Não deixava pra falar as coisas depois, isso foi uma das coisas que aprendi com ele”, diz a irmã.
O mesmo diz a filha, Fernanda Ferreira, 22. “Eu tenho muito orgulho do meu pai. Ele voltou a estudar com mais de 40 anos. terminou o ensino fundamental, o médio, tirou a carta de motorista, que era um dos sonhos dele. Saber que meu pai saiu do alcoolismo e se tornou estudante de Direito, líder sindicalista, é um orgulho”.
Um aluno dedicado
Andressa conta rindo sobre as vezes que ajudou o irmão com os trabalhos da faculdade. Toda vez que ele não sabia uma palavra, porque a pronúncia em outro idioma era difícil, ele inventava uma outra no lugar. “Para download ele dizia darlon e backup ele chamava de baduque. Ele era divertido”.
Mas mesmo não tendo muita intimidade com o idioma, Manoel sempre fez questão de pagar o curso de Inglês para a filha, que hoje é professora da língua estrangeira e também estuda Psicologia.
“Ele era um aluno muito dedicado. Sempre me incentivou muito a estudar, sempre pagou meu curso de Inglês mesmo depois que comecei a trabalhar, porque era uma coisa que ele gostaria de fazer”, conta a filha.
Ela diz, ainda, que dada a criação mais rígida, Manoel não era do tipo que demonstrava amor por meio de abraços ou beijos. O cuidado vinha nas atitudes e no relacionamento sempre muito aberto entre os dois no cotidiano.
“A gente conversava bastante. Sobre relacionamentos, política, história do Brasil, sobre sua infância”, recorda a moça. “Uma das últimas coisas que ele me falou em vida é que gostava muito da relação que a gente tinha, porque existiam muitos pais e mães que nem conversavam com seus filhos”.
Mesmo pautando sua vida na luta por mais direitos, Manoel tinha a sensibilidade de entender que os gostos da filha eram diferentes. Por isso, uma das lembranças mais tenras que ela tem é do dia que ele a levou junto à prima para ver o uma peça da Kéfera.
“Meu pai nunca veria uma apresentação da Kéfera, mas topou fazer por mim e pela minha prima, eu sabia que ele devia ter odiado, mas reservou aquele tempo porque sabia que eu queria muito, fiquei muito contente”, relembra, trazendo uma marca de Manoel, olhar para o outro.
Com cada geração, ele falava a língua que precisava ser dita. Talvez, os anos como líder sindicalista tenha corroborado no tratamento com públicos diferentes. Não era diferente quando se tratava das sobrinhas, Luiza e Lara, filhas de Andressa, de 6 e 2 anos.
“Ele era apaixonado por elas. Foi com ele que Luísa andou de ônibus a primeira vez. Era um tio que fazia cabana com cabo de vassoura. Pegava a cadeira, lençol, botava uma mesa de plástico no fundo de casa, cobria com lençol, faziam várias selfies”, relembra.
‘As certezas da vida’
Foi Andressa quem acompanhou o irmão no hospital nos últimos dias e, agora, está tentando olhar o processo de partida da forma como ela acha que ele aprendeu a ver a morte, nesses 20 anos no cemitério:
“Ele dizia que ‘nossas únicas certezas é que nascemos e morremos, o restante é uma aventura’. Trabalhou muito perto da morte. Isso o tornou com uma visão mais diferenciada da nossa, que não vivenciamos essa rotina diária. Mesmo assim foi um baque”.
No hospital, a equipe de cuidados paliativos o questionou se gostaria de ir para uma casa especializada nesse tipo de cuidado. “Ele disse que não, pois queria morrer perto da família, e que o mantivessem no hospital, não com gente desconhecida. Tentei acalentar, dizendo para termos fé e esperança e ele falou que as palavras eram lindas, mas a realidade era outra, ele só queria descansar. Ele já estava ciente de tudo”.
Ao tio Manoel
Luíza, que tanto brincava com o tio, expressou a dor por sua partida brincando. Era assim que os existiam juntos e que ela deixa eternizado num desenho em grafite feito numa folha de papel. O tio no alto, ela e a irmã brincando, enquanto ele olha por elas, assim como fazia durante os dias de cabaninha.