Acusada de negligência à luta por autonomia e cuidados paliativos
“Passei a ser a “mãezinha” da neuropata e pessoa non grata por muitos médicos, por ousar questionar demais o que eu não entendia ou por pesar a necessidade real de certas coisas. Recusava propostas terapêuticas que não concordava. Sofri preconceito, desrespeito, indiferença, ameaça e negligência”.
Ivy Carvalho Oliveira
Ivy, seu caminho é muito bonito. Sua força nos inspira e representa a importância de conhecermos os cuidados paliativos a fundo… Muito obrigada por me enviar essa carta e aceitar compartilhá-la. Um abraço, com admiração.
Depoimento: acusada de negligência à luta por autonomia e cuidados paliativos
Me chamo Ivy, sou mulher, mãe, enfermeira, paliativista, dentre tantas outras coisas…Minha trajetória de vida foi completamente modificada com o nascimento da minha segunda filha, Gabriela, em 1999.
Gabi nasceu com alterações neurológicas que foram se acentuando. Com um ano de idade, já tínhamos passado por incontáveis exames e especialistas, consultas e hospitais.
Os sintomas eram claros: ela apresentava um grave atraso no seu desenvolvimento neuropsicomotor, que foi progredindo e comprometendo ainda mais sua qualidade de vida e necessidade de cuidados. Mas nunca recebeu um diagnóstico.
Depois de um tempo vendo nossa rotina diária ser preenchida por consultas médicas, inúmeras terapias e internações hospitalares, passei a me questionar o propósito de tudo isso.
Percebi que todo tratamento e terapias propostas pareciam estar voltados para doença sem nome e não o bem estar da minha filha.
Passei a ser a “mãezinha” da neuropata e pessoa non grata por muitos médicos, por ousar questionar demais o que eu não entendia ou por pesar a necessidade real de certas coisas. Recusava propostas terapêuticas que não concordava. Sofri preconceito, desrespeito, indiferença, ameaça e negligência.
Em 2014, Gabi tinha 14 anos e experienciado um período de mais de 7 anos estáveis em casa, seguindo a decisão conjunta da família em priorizar sua qualidade de vida e abandonar grande parte dos tratamentos fúteis que não surtiram resultado e nem tinham benefícios para ela, de acordo com nossos valores.
Nesse ano, ela sofreu complicações e passou por uma longa internação em UTI. Eu pedi, implorei para que ela recebesse cuidados paliativos, que eram disponibilizados no hospital em que estava, mas a incapacidade e despreparo dos profissionais era tamanha, que só inflamou ainda mais o desconforto e os conflitos.
Me senti uma pessoa extremamente privilegiada quando o hospital em que eu trabalho abriu um programa piloto de assistência a casos complexos para dependentes dos colaboradores.
Lá fui eu com Gabi para mais uma triagem e avaliação médica. Nesta altura, já não haveria razão alguma para deixar de dizer de cara, e de forma clara, que era muito grata pela oportunidade, mas só poderia aceitar se houvesse a chance dela ser acompanhada pela equipe de Cuidados Paliativos. Felizmente, isso ocorreu.
Nos seus quase três últimos anos de vida, fui uma pessoa de sorte. Fizemos parte da estatística de 0,3% dos brasileiros que recebem Cuidados Paliativos neste país.
Pela primeira vez depois de toda essa jornada, nós (Gabi e nossa família) fomos acolhidos, cuidados, integrados ao processo de decisão, respeitados dentro dos nossos valores.
Gabriela não era apenas a portadora de neuropatia crônica sem etiologia definida, com grave atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, com uma epilepsia de difícil controle, pneumopata e com escoliose severa associada ao baixo peso como era descrita antes.
Ela passou a ser assistida por uma equipe de saúde que a enxergava como uma pessoa, que gostava de chupar o dedo e isso era um sinal de que estava tudo bem, que sorria quando percebia que alguém falava sinceramente com ela, uma menina de um olhar brilhante e feliz, que gostava de fazer bagunça com a Rafa, sua irmã mais velha. E, sim, tinha uma condição grave de saúde, mas que faríamos TUDO, em conjunto, para lhe dar tudo que lhe pudesse garantir conforto e alívio de sofrimento, até onde fosse o seu tempo, o seu limite.
E assim aconteceu. Na sua última semana de vida precisou ficar internada pois não conseguiríamos em casa dar todos os cuidados necessários. Tivemos todo o suporte e tratamento, não só pela competência técnica, mas também de carinho e respeito, o que foi fundamental naquele momento e vejo o quanto isso foi ainda mais importante no processo de luto.
Sua partida foi repleta de paz, de muita tristeza pela sua morte, mas também de beleza por ver que toda sua vida e todo seu legado foi respeitado. Conseguimos cuidar da sua despedida. Seu pai, Cláudio, fez tudo que podia para organizar as questões burocráticas e nos poupar disso enquanto eu e a Rafa pudemos dar o banho em seu corpo.
Acompanhada pela minha irmã e duas amigas, a vestimos e arrumamos o seu cabelo. Pudemos nos despedir. Sua avó pode fazer as orações que lhe eram tão importantes, e tivemos a companhia da nossa família e de tantas pessoas que genuinamente se importavam com ela e conosco.
Muita gente me pergunta como eu consegui passar por esta perda, este luto. Bom… isso não se encerra, mas aprendi a conviver com a sua ausência física e direcionar ainda mais minha energia, propósito e sentido para o cuidado, acolhimento e disseminação dos Cuidados Paliativos.
Meu maior sofrimento foi ter vivido toda esta trajetória, antes dos Cuidados Paliativos em nossas vidas, em um luto não reconhecido, não validado e acolhido por nenhuma equipe de saúde nas quais passamos.
Como enfermeira, hoje atuo em uma unidade exclusiva a pacientes com Covid-19. Vejo o quanto esta pandemia, esta doença gera desdobramentos e consequências na nossa sociedade, exacerbando e escancarando as desigualdades e o abismo social que estamos inseridos.
O pensamento assustador de olhar para minha história e pensar como seria se ela estivesse aqui num momento como este que estamos vivendo, como seria não ter despedidas, ou não ter cuidados adequados e proporcionais como tantos…
O fato de me ver neste lugar de privilégio não me exime do pensamento e da responsabilidade para com tantos outros que passam por situações e carências até maiores que as que passei a não dispõem de recursos dos mais básicos para terem suas necessidades minimamente atendidas.
A impossibilidade de realização de rituais de despedida, a negligência do poder público com as minorias. Quantas pessoas como a Gabriela estão negligenciadas há décadas, imagine agora em meio a uma pandemia.
Não é de hoje que pessoas com deficiência, negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, população de rua, vulneráveis, moradores de bairros com vulnerabilidade social, idosos, sofrem em seus anonimatos por falta de cuidado. Não posso me sentir culpada por tê-lo recebido, mas sinto que devo me colocar de alguma forma como alguém que deseja e quer fazer com que esta realidade mude.
Dar voz a isso, trazer informação e reflexão a sociedade é algo que você, Camila, faz e me enche os olhos de satisfação, emoção e esperança. Obrigada.
Contato: ivy.carvaoli@gmail.com