Apologia à necrofilia: sobre o abuso de corpos femininos depois da morte
Na sexta-feira (25) publiquei na Folha um artigo sobre grupos de Facebook e Whatsapp incentivando e glamurizando a necrofilia.
“Grupos em redes sociais incentivam necrofilia – Tanatopraxistas relatam distribuição de imagens obscenas de corpos; vilipêndio de cadáver é crime com pena de até 3 anos”.
O casal de tanatopraxistas Nina Maluf e Vinicius Cunha me procuraram para compartilhar dois anos de pesquisa sobre o assunto. Eles fizeram parte desses grupos para colher o material que está, agora, nas mãos da Polícia Federal e do Ministério Público.
Do meu lado, senti pouca repercussão. Algumas pessoas relataram não terem conseguido ler a matéria até o fim, por ser um tema tão difícil de ser abordado, “pesado demais”.
Mas, para o setor, significou um avanço.
No mesmo dia, uma investigação já em andamento levou à prisão de um funcionário do IML de Manaus. Um dos grupos retratados, o Festa no IML, foi fechado, mas logo abriram outro. Eles divulgaram a reportagem com deboche. O organizador mencionou que a página não comete crime algum, é apenas um espaço para “humor negro” (uma expressão infeliz e racista) .
Recebi prints de outros grupos, com fotos de notícias sobre a morte trágica de moças, suas imagens esbeltas de biquini acompanhadas de frases como “fará fila para funcionário fazer hora extra no IML”. Não é apenas “humor negro”. É crime fazer apologia ao crime.
O novo grupo, “Festa no IML V” (tiveram 4 novos grupos antes do V), fez uma postagem sobre necrofobia. Dizendo ser um tabu social abordar o amor por cadáveres. A página marca o portal Quebrando o Tabu, chamando-o para analisar esse “tabu”, já que se coloca como defensor do amor livre. “Consideramos justa toda forma de amor, #foranecrofobia”, ao lado de fotos de animais que copulam com animais mortos, como os cangurus, corvos, lagartos e sapos.
Para o psiquiatria Gabriel Becher, especializado em parafilias, escutado para a reportagem inicial, não se pode fazer tal comparação. “O animal se aproxima do corpo morto porque não entende que se trata de um corpo morto, é puro instinto biológico”, diz.
No dia seguinte da publicação, Nina me escreveu: “Hoje meu whats amanheceu cheio de ligações e mensagens. Uns agradecendo, outros dizendo que eu deveria ter ficado quieta.Não sei o resultado disso a médio prazo mas vai rolar uma perseguição,porque falar sobre sexualidade e sobre algo tão grave que os homens sabem que acontec é mexer em vespeiro .. Eu ouvi numa ligação hj.. ‘melhor ter paz do que ter razão’, ‘você não devia ter feito isso’. Mas encontro forças no meu avô, que dizia: o bem não vence muitas vezes porque o bem não luta. Viva em verdade, seja portadora da verdade, e certamente vão te reconhecer por isso”.
Nina foi procurada por emissoras de televisão e por um jornalista do Egito, que leu a reportagem e a contactou dizendo que lá isso ocorre também.
Nina encaminhou o áudio de um profissional que não gostaria de ser identificado, relatando ter ficado chocado com a reportagem. Ele conta o caso de um funcionário do IML que foi afastado por problemas de “sem vergonhice”. Ele abusava de mulheres e tirava fotos. Descobriram um álbum de fotos em seu armário do IML. Esse homem foi afastado, mas não criminalizado.
Nina faz questão de dizer que esse tipo de atitude não ocorre em todas as funerárias, como acabou saindo em uma das frases do seu marido diretor funerário, Vinicius Cunha. Essa generalização foi errada. Concordo. Eu também faço questão de ressaltar o trabalho fundamental de pessoas nesse setor. Não canso de elogiar Gisela Adissi, presidente do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil.
A iniciativa de denunciar surge, também, dessa admiração pelas pessoas que têm feito um excelente trabalho em humanizar e profissionalizar esse setor tão cheio de estigmas. Muitos, injustos. A única forma de acabar com esses estigmas é trazer à tona as irregularidades e enaltecer as iniciativas proativas.
Seguimos. Denunciando irregularidades e atitudes desrespeitosas com as pessoas, vivas ou mortas.
Violentar uma mulher morta não é considerado estupro de acordo com a lei, mas é um crime de vilipêndio de cadáver. E um total despreparo civilizatório.
Não é amor livre, não é humor , não é brincadeira. Não se estupra mulheres vivas ou mortas. É necessário regulamentar, fiscalizar e profissionalizar o setor funerário brasileiro.