A importância de falar sobre morte com as crianças
Quando criança, sempre visitava a lápide de minha avó materna. Migrante do Paraná em São Paulo, Evarista morreu na contramão atrapalhando o tráfego, a 6 de junho de 1980, carregando nos braços a roupa passada de uma de suas clientes.
Onze anos depois, eu nasci. Exatamente na mesma data. Parece mórbido começar um texto assim, mas sinto que, desde muito cedo, eu tento entender como vida e morte podem conviver juntas num mesmo dia.
Já adulta, essa coincidência familiar se tornou tema na terapia. Eu não podia entender, mas vivia, ali com minha mãe Luzia, o luto pela partida da avó que eu só conheci por meio da foto miúda, 3×4, colada na parede sepulcral.
A minha criança cresceu ouvindo essa e outras histórias de morte. A verdade, no entanto, é que mesmo o assunto não sendo um tabu aqui em casa, ele não era tratado (ou até mesmo sentido) com a profundidade que carecia.
A menina Jéssica se apegou à escrita, em uma tentativa de afagar em letras as dores de sua mãe que ela ainda não compreendia. Aos 8 anos, eu tinha uma caderninho de capa rosa (guardado até hoje) onde estão meus primeiros poemas que versam sobre perdão, saudade e morte.
Eu nem sabia, mas com a palavra cursiva num caderninho eu estava expressando a minha dor. Uma tristeza que eu não tinha vivenciado, mas que era lembrada. O aniversário de morte de Evarista está presente em cada aniversário meu de vida.
Quis contar essa história pessoal para falar sobre infância e luto. Diante da pandemia, a morte tem rondado frequentemente os imaginários de nossas crianças. Sei que para nós, adultos, também é difícil, porém, é nossa responsabilidade acolher e cuidar de nossas meninas e meninos, para que assim possam ter espaço para sentir suas dores.
Falando de morte com as crianças
A psicóloga clínica especialista em luto, Ana Lúcia Naletto, explica quão importante é falarmos sobre o tema com as crianças, principalmente para ajudá-las a nomear o que está acontecendo à sua volta.
Sobre a constante dúvida em utilizar o termo morte — considerado pesado por alguns — ou metáforas, a psicóloga aponta o primeiro como a melhor opção. Ela explica que o adulto precisa lembrar de ser didático e compreender a concepção que a criança já tem sobre o assunto.
“Fazer perguntas como ‘você sabe o que é morte?’ ou ‘você sabe o que é morrer?’ são recomendadas, seguidas de explicações: “dizer que morrer é quando o coração para de funcionar ou quando uma pessoa não sente mais frio e que a pessoa não irá voltar “.
A metáfora, diz a psicóloga, não é indicada como resposta principal, mas pode ser utilizada. “Indicamos que se utilize o verbo morrer. A metáfora, no entanto, pode vir para explicações que nem nós, adultos, temos, como o que acontece depois da morte. Muita gente opta em dar um sentido religioso. Então, caso esse seja o caso, é possível dizer “está no céu”, mas a metáfora deve vir depois de dizer que a pessoa morreu”, explica.
Dizeres como “papai do céu veio buscar fulano para morar lá” podem confundir as crianças, fazendo-as entender que o culpado pela morte é “papai do céu”, perdendo a oportunidade de compreender o processo de finitude em si. “Ela pode começar a entender que o “papai do céu” também virá para buscá-la. Por isso, é importante explicar o conceito antes”, aponta, explicando que essas explicações do pós-morte ligadas à religião devem ser respeitadas, mas contextualizadas para a criança.
Em texto publicado aqui no blog pela Camila Appel, em 2018, a especialista em luto Maria Helena Franco, também diz que o uso da metáfora pode existir, como “fulano virou estrelinha”. No entanto, para que “se torne estrelinha” é importante dizer o que houve antes, ou seja, que a pessoa morreu.
O luto da criança é diferente do adulto
Ana Lúcia aponta ainda que o luto das crianças se diferencia daquele vivido pelos adultos, principalmente o das menores.
“Uma criança de 9 ou 10 anos sabe o impacto de nunca mais ver a irreversibilidade. Já uma criança menor ainda não tem esse conceito”, diz. “A manifestação do luto das crianças não é intensa e expressiva como nos adultos. Alguns até acham que ela não está sentindo nada, mas está, só que em uma outra dimensão”
Ela explica que algumas podem sentir muito medo, querer ficar mais tempo com os adultos próximos dela por receio de perdê-los. Outras, no entanto, podem ficar completamente apáticas, irritadas, nervosas e até com raiva, já que esse sentimento também integra o processo de luto.
“Podem ficar com medo, inseguras. Crianças que eram mais soltas, podem manifestar mais insegurança. Ficar sem vitalidade. É preciso observar esses sinais, não só pai e mãe ou quem vive com ela, mas os outros adultos. Boa parte do luto da criança é vivido dentro da escola. Agora estamos na pandemia, mas, na escola, o professor precisa identificar essas manifestações”.
Legitimar o que a criança está sentindo é um modo de colaborar. Caso fique agressiva, é importante conversar, ter empatia e dizer que entende as razões pelas quais ela está brava e que ela pode contar com você, ajudando-a a nomear e a entender a morte.
“O apoio ao luto não deve ter como objetivo tirar a dor do outro, mas sim ajudá-lo a viver o luto da forma mais saudável possível, criando canais de comunicação, de compreensão e acolhimento, para que a criança expressar a raiva, a dúvida ou a dor”.
A arte é uma forma de mediar a realidade
É o que diz também a jornalista e escritora especializada em literatura infantojuvenil Renata Penzani, autora do romance infantojuvenil ‘A Coisa Brutamontes’ (Editora CEPE, 2018), que acredita que as histórias não devem substituir a dor, mas acolhê-la, para que, um dia, possa se transformar em outra coisa.
Escrito em 2016, A Coisa Brutamontes foi o livro vencedor do III Prêmio Cepe Nacional de Literatura 2018 e finalista dos prêmios Barco a Todo Vapor de Literatura Infantil e Juvenil (2016) e Jabuti em 2019.
Em uma relação de intimidade com as palavras, Renata costura o olhar do menino Cícero, de 11 anos, sobre um horizonte de sentimentos, inclusive a morte, após a perda de Dona Maria, sua par, uma senhora de mais de 80 anos. A morte é, então, representada por um rinoceronte enorme que sempre está presente, embora seja ignorado pelos outros adultos.
Na primeira edição, a representação era de um búfalo, um animal que sinaliza e dá orientação. Depois, se recordou de texto de Marcela Carrança, “O Rinoceronte na Sala de Aula”, que o utiliza para representar coisas incômodas. Foi quando Renata optou pelo rinoceronte, que carrega o significado de presságio.
“Esse elemento insólito e fora de lugar dá um tempo alternativo à história, que não é o tempo da narrativa nem dos acontecimentos, mas o tempo da criança de elaborar o que está acontecendo”, conta a autora.
“A maioria dos relatos que eu recebo são de profundo agradecimento por ter oferecido uma história que fez companhia em um momento de perda. Outras contam da experiência de seus filhos. O filho de uma amiga riu. Achei fantástico ele ter encontrado humor em algo que nós, adultos, temos medo”.
“A primeira vez que me disseram “Maria Morreu”, meu coração reclamou, quis pular fora do peito. Precisaram repetir: morta. Mas morta como se para mim ela continuava?”
Na infância, Renata colecionava as mais diversas dúvidas sobre assuntos que os mais velhos fingiam explicar a ela. A morte era um deles, assim como a velhice, a solidão e a finitude da vida, tornando-se insumo para sua escrita mais tarde. A Dona Maria é livremente inspirada em uma senhora que vivia na rua de seus pais e que foi próxima de Renata na infância. Ao voltar para a casa da família, encontrou a senhora na rua, mas agora com Alzheimer e quando ela faleceu escreveu um conto em forma de homenagem.
“Sinto que essas perguntas formaram um buraco que depois viraram traumas. O que soa até meio paradoxal: porque as minhas perguntas nunca ficavam sem resposta. Não faltava adulto para vir responder qualquer coisa só pra eu parar de perguntar. É ainda pior que o silêncio essa coisa da resposta descuidada, porque a gente cresce e entende que não era nada daquilo”.
No livro, sua militância é pela honestidade artística, entendendo que todo tema pode ser trazido em uma narrativa, contanto que seja mediado com sensibilidade, já que, para ela, a arte é uma oportunidade de mediar a realidade. “Se a gente tenta (não digo consegue, porque sei como é difícil) mudar nossa relação com a morte no começo da vida, a chance de ela ser vista como algo presente aumenta. E aí tende a ficar menos difícil.”
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