‘Seríamos mais gentis uns com os outros se aceitássemos o medo da morte’
Finados é um momento importante para esse blog. Afinal, é um dia em que todos querem falar sobre morte, nosso assunto diário. É também próximo à nossa data de aniversário. Morte sem Tabu nasceu há seis anos. Não por uma coincidência, é a idade do meu filho.
Esse é um espaço para compartilhar a dor e a complexidade dos mais variados lutos, acolher relatos, falar sobre suicídio abertamente e sem pisar em ovos (mas com respeito e responsabilidade), entrevistar profissionais do setor funerário, abordar livros, arte, autonomia no final da vida. Vida.
Hoje é um Finados atípico, bem descrito por Fininho na Folha de S.Paulo (leia aqui). Os cemitérios abrem suas portas para receberem as famílias dos que morreram de COVID-19. Muitas, visitarão seus túmulos pela primeira vez. Sem a pressa e a dureza do enterro sem velório a que foram submetidas.
Um dia propício para falarmos sobre narrativas de conforto para lidar com nosso medo da morte. Esse tema é explorado pelo filme “Into the Night: Portraits of Life and Death” (Noite adentro: retratos da vida e da morte), da premiada documentarista americana Helen Whitney.
Recentemente, a entrevistei por intermédio de Tom Almeida, idealizador do Movimento Infinito.
O filme é uma exploração das narrativas de conforto oferecidas por pessoas como a diretora funerária e comunicadora Caitlin Doughty, o astrofísico Adam Frank, o ator Gabriel Byrne e o ambientalista Max More.
Para o ator, a arte conforta como uma possibilidade de legado e a transmutação de um sentimento complexo. Para o ambientalista, é a ideia de imaginar o corpo retornando à terra e de lá crescer uma árvore, em sua beleza majestosa. Para o astrofísico, é contemplar nossa pequenez na vastidão do universo.
“E o que me traz mais conforto, depois de ter feito esse filme, é entender que todos nós estamos todos juntos nessa. Isso me traz mais conforto do que qualquer outra coisa. As pessoas estão se perguntando as mesmas coisas, têm esperanças e receios que não são tão diferentes dos meus. Isso nos torna menos solitários. Sim, estamos nessa juntos”, diz Helen.
A diretora entende que o medo da morte, apesar de nos unir, também pode nos separar, ao negarmos que temos isso em comum. “Seríamos mais gentis uns com os outros se aceitássemos o medo da morte. É o que está por trás de algumas das nossas maiores crueldades e das maiores conquistas. É que está por trás da construção de catedrais, da escrita de poemas, da atividade de colocar tinta nas paredes, da arte”.
Como reação ao filme, ela se surpreendeu com a adesão de um público mais jovem, enxergando a possibilidade de falar sobre morte para viver a vida de forma mais plena.
Para o filme, Helen também trouxe as narrativas dos que buscam a imortalidade, como os transhumanistas. Mas ela não gostaria de viver para sempre. “Eu sinto que, conforme envelheci, fiquei mais inteligente e mais gentil com os outros e comigo mesma. Mas demorou um pouco para eu chegar aqui, então eu gostaria de aproveitar a recompensa disso tudo só um pouquinho mais…”.
Infinito.etc
O lançamento desse filme foi um dos atrativos da edição desse ano do Festival Infinito, criado por Tom Almeida.
Ao abraçar seu pai nos últimos minutos da sua vida na cama do hospital, Tom acessou um amor tão intenso que sentiu o infinito dentro da finitude, o permanente na impermanência. Dessa percepção surgiu o nome do festival, que teve sua terceira edição neste ano.
Ele começou em 2018 como “Inspiração sobre Vida e morte”, a primeira série de eventos organizados para abordar o tema da morte, trazendo aos brasileiros o conhecimento de iniciativas pioneiras ao redor do mundo. “Não podemos perder o protagonismo da nossa própria doença”, diz Tom. “A melhor forma de oferecer esse protagonismo é informar”.
Tom agregou e potencializou nossa voz em uma série de eventos e estratégias de comunicação que têm alcançado muitas pessoas e ressoando em espaços importantes.
Pensando nas dificuldades impostas pela pandemia aos rituais fúnebres, ele organizou guias para cerimônias fúnebres virtuais (disponíveis nesse link) e a terceira edição, online, do Festival Infinito, com 3 mil inscritos (2 mil foram gratuitos). Nas suas palavras “para passar um final de semana inteiro falando e ouvindo sobre a morte e se sentir completamente vivo”.
Algumas pessoas são presença registradas nas edições desse evento, como a médica paliativista Ana Claudia Arantes, a musicista Yoko Sen, que redesenha o som dos hospitais, os bipes dos aparelhos, para tornar a experiência mais acolhedora, o diretor do Zen Hospice Project Roy Remmer, o fundador da plataforma “Death Over Dinner”, Michael Hebb e a Ana Michelle Soares.
Por ter sido um evento completamente online e contar com figuras internacionais, como Andrew Solomon, o famoso autor de “Demônio do Meio-Dia”, a organização recebeu inscrições dos Estados Unidos, Portugal, Suíça. Existe toda uma estrutura de eventos e iniciativas para discutir a morte ao redor do mundo. Podemos dizer que o Brasil, finalmente, está incluído nessa discussão.