‘Num largo quintal de memórias, ressignifico o luto em meio à pandemia’
A ‘ficha’, como dizem, caiu mais latente no meio da pandemia, já que a gente não pode arredar pé, fugir de casa, respirar outra coisa que não seja a lembrança. A pandemia comprimiu tudo, inclusive as dores.
Quando eu nasci, vó Laurentina tinha 67 anos. Fui a penúltima neta de uma família de 16. Moramos juntas desde que cheguei ao mundo, sobrando pra mim os mimos, as broncas e ‘ó lá a louça, Jércinha’. Nosso quintal sempre foi cheio. Cadeado aberto a quem quisesse chegar. A casa abastecia os vizinhos quando faltava água na vila e, mesmo pequena, acolhia toda a família no almoço de domingo.
Ali, paravam também a mulher do bairro Gato Preto –que eu nunca soube o nome– pra quem a vó reservava mensalmente uma cesta de mantimentos, e o Divino Espírito Santo, uma pomba branca num manto vermelho carregada por um homem que recebia moedas.
Eu cresci assim, vendo a bondade da vó quarar a roupa debaixo do rancho. Ouvindo Eli Correia, enquanto cuidava da gente ou da criação – como bem chamava os animais da casa. Em agosto de 2020, o Bidu, nosso derradeiro cachorro, partiu, aos quase 12 anos. E, de repente, me dei conta que ele foi a última ‘criação’ que conheceu a vó Laurentina. Contei muito dela já no Nós, mulheres da periferia.
Era 18 de novembro de 2019. Eu estava voltando de uma viagem ao Chile. O avião saía às 15h. Aqui em Perus, no mesmo horário, a vó sofria o primeiro desmaio. Ambulância. Correria. Eu no avião, sem nem imaginar. São Paulo, Aeroporto de Guarulhos. Às 19h, botei os pés em solo paulista, a vó em algum outro solo que não esse, que não mais entre a gente. Ia embora minha passarinha.
Desde aquele dia, os santos da vó me miram sem parar, me acompanhando com os olhos, mesmo grudados na parede. O chão de cera esfola os pés em falta e as baratas, até as baratas, devem olhar profundo para os meus medos caducos.
Eu acho que até as vigas da casa tombam tristeza, rachadas de todas as chuvas protegidas por santa Bárbara. As fotos pretas, brancas, plantadas, todas, no fundo da lata de leite em pó de 1997, estão todas tristes. O rádio ainda deve gritar, silenciosamente: rezas, padre nosso, ave maria, crendospai. mas agora sem ela pra ouvir. Todos, tudo, num luto tão profundo, tão doído, que seria injusto dizer que o luto afeta só a mim. Ele está em tudo.
Algumas horas antes de partir, o cachorro Bidu entrou em casa, foi até o quarto da vó, cheirou o chinelo que ela usava, e que ainda fica debaixo do guarda-roupa. No outro dia, ele também já não estava aqui. Quintal esvaziado outra vez, despertando os outros lutos. Mais antigos ou mais recentes? Tanto faz, o tempo do luto não é cronológico, não tem linearidade.
Faz 1 ano hoje da passagem da vó, mas essa é a primeira vez que eu falo sobre ela no pretérito. Até aqui, era como se eu ainda devesse chegar na ponta dos pés em casa pra não acordá-la no quarto do lado.
A ‘ficha’, como dizem, caiu mais latente no meio da pandemia, já que a gente não pode arredar pé, fugir de casa, respirar outra coisa que não seja a lembrança. Eu realmente achava que, depois da partida dela, eu e meus primos, tios e tias iríamos ficar mais perto, até mesmo para conseguir aquecer um ao outro e cuidar da perda de nossa matriarca juntos.
Mas a pandemia comprimiu tudo, inclusive as dores. Agora, sou eu aqui, minha mãe e prima, num largo quintal de memórias, tendo que se reinventar sem a vó, dia após dia. Fazia só quatro meses da ausência dela, quando a pandemia se alastrou. Não deu tempo de mudar a casa, pintar a fachada ou trocar o móvel de lugar.
O que fizemos foi ressignificar. No canto da cama, colocamos o meu computador. Aqui, leio, faço poesia e escrevo pra vocês. Olho a janela, a mesma que ela mirava céu todo dia, e tento impregnar de vó Laurentina o meu olhar sobre as telhas do vizinho, o pipa enroscado na janela em dias claros ou de chuva forte.
Você também pode ter o seu relato sobre o processo de luto publicado aqui no Blog Morte Sem Tabu. Basta enviar o seu relato para o e-mail mortesemtabu@gmail.com com nome e sugestão de foto.