Depoimento: Quando a mãe das minhas filhas morreu

Acolhemos com carinho e admiração o relato do servidor público Marcos Mendonça. Há um ano, sua esposa morreu. Nessas linhas, ele reflete sobre seu processo de luto ao lidar essa ausência e com os questionamentos das suas filhas pequenas.  Um abraço apertado à família e a todos que se identificarem com essas palavras.

RELATO DE UM LUTO COM CRIANÇAS

Por Marcos Mendonça

Olha só… acordei de madrugada com vontade de falar. Vou falar. 05 de outubro. Um ano sem Tania. Quando recebi a notícia da morte dela, vesti uma armadura. No ato, senti minha respiração mudar, minha postura se endireitou, minha mente ficou mais lúcida e minhas certezas mais claras… Milhares de coisas a fazer, o luto e a tristeza estavam ali, mas teriam que entrar na fila. Fato: minhas filhas cresceriam sem mãe. Mas Tania ainda estava comigo. Após 14 anos de convivência, eu sabia o que ela faria, como pensava, os valores que ela defendia. Tinha sido um discípulo atento e entusiasmado de sua visão de mundo, embora atrapalhado.

Uma amiga me aconselhou a não contar nada para as meninas. Agradeci o conselho educadamente. Eu estava só, e as pessoas não sabem lidar com a morte. Tentando achar meu jeito, eu pensava em Tania. Ela sabia o que fazer, eu sigo o mapa trajado com minhas vestes metálicas, interrompi a brincadeira das minhas crianças, que estavam numa festa, mas já sabiam dos riscos que a mãe corria.

Contei a verdade, deixei elas escolherem onde dormir, quiseram ir pra casa de Silvana, amiga da Tania, mais família que alguns familiares. Foi fácil. Silvana mora na quebrada, mas a gente também. Não era longe. Deixei elas decidirem se queriam ir ao velório. Sim, quiseram. De novo, tudo diferente. No velório, uma prima viúva, mãe solo, depois de problemas com a filha, foi aconselhada por um psicólogo: “-Você não pode poupar da vida ou mimá-las. Ninguém vai aliviar nada”. Conselho anotado.

Velório. Discurso. Lágrimas.  Em casa, Letícia avisou que já tinham explicado pra ela que ela era a mulher da casa. As pessoas atrapalham. Dei risada e disse “Não. Só se for de brincadeira, você é criança, e vai continuar sendo” (um pouco menos, é verdade). Segunda-feira, silêncio absurdo na casa. Tania era muito cheia de vida, muito feliz. Primeira vez que viveria uma vida nova que eu não escolhi. Viúvos têm que cuidar de burocracias, eu tinha que cuidar dos vivos. As crianças já estavam testando os combinados da casa desde a primeira hora; são rápidas, preciso ficar atento, os combinados são os mesmos, mesma comida, mesmos horários. Rotinas dão estabilidade pras crianças. O mundo despencou, mas eu poderia (deveria?) escolher alguns pedaços pra segurar. Tania cuidava dos vivos: tinha 2 filhas, 5 cachorros, 20 passarinhos (maior parte resgatados de maus cuidadores), um jardim enorme, um pomar, um orquidário, uma lista enorme de pacientes (a avisar que tinham perdido a terapeuta)…

Eu não tinha mais controle de nada. Nunca tive, mas podia contar uma história – estabelecer uma narrativa. Era um porquê e eu comecei assim: “-Filhas, a vida as vezes é muito dura: alguns não tem pai, outros não tem mãe, alguns não tem saúde, ou casa, ou comida ou emprego. Vocês, a partir de hoje, não tem mãe. A vida segue e é muito boa, tem muita coisa pra ser vivida, muitos passeios bons, muitos amigos, muita comida boa e muita coisa pra aprender. Então, vamos seguir em frente e viver, está bem?”

Na terapia, uma advertência de ouro: emocionalmente, você nunca vai substituir a mãe delas. Você só pode ser o pai. Duro, triste, mas libertador também – eu só posso fazer a minha parte. Eu já era muito, aprendendo que não podia ser tudo pra elas. Não preciso lutar pra tampar um buraco que nunca vai se fechar, preciso me concentrar nas coisas que posso fazer, no que está ao meu alcance.

Os primeiros quinze dias foram terríveis – o planeta Terra não para de girar pra você ter uma folguinha. A Leticia, dias antes, estava com dor de cabeça e precisava ir ao médico, um dos cachorros adoeceu, a escola não acolheu as crianças de forma adequada no começo (tive que conversar, tentaram esconder das outras crianças, geraram problemas), Leticia e Lorena tiveram pequenos acidentes e machucaram o rosto, ganharam pequenas cicatrizes para marcar a nova vida, um amigo especial da sala da Lo começou a bater nela (mais uma reunião), uma pequena crise alérgica delas me deixou surtado (protocolos de remédios faziam parte  carga mental da mãe). Eu não dormia direito, qualquer barulho da casa me acordava. Era o soldado-armado-pai-e-mãe defendendo a prole dia e noite. A terapeuta da Tania se aproximou via zap nos primeiros dias também e, com cuidado, foi me ensinando a me abrir para a ajuda de outras pessoas. Éramos uma dupla autossuficiente, e não existia mais dupla. Tive que aprender a pedir e aceitar ajuda das pessoas. Ninguém podia atravessar aquele deserto no meu lugar, mas eu podia aceitar um copo de água e uma sombra de vez em quando.

As crianças queriam saber se a mudança de escola programada ia continuar valendo. “-Perdemos a nossa mãe, vamos perder nossos amigos também?”. Sabem jogar pesado já. Sempre fui um pai presente: home office, fraldas, banhos, reuniões escolares, pediatras, dentistas e P.S., levar e buscar na escola, passear (muitas vezes apenas eu e as meninas). Mas tinha um espaço da delicadeza, do diálogo e do afeto que eu não ocupava adequadamente. Era da Tania! Numa intuição ou palpite, fui atrás e comecei a estudar escuta compassiva, disciplina positiva, comunicação não violenta…  E olha só – lembrei  que a Tania não era apenas um ser iluminado e generoso, ela era também uma técnica, pedagoga, psicóloga e professora de educação infantil experiente, comprometida  e esclarecida. Muito do que ela fazia com as meninas tinha fundamentos teóricos sólidos.

Leticia tinha 9 anos,  está com 10. É muito nerdizinha. Coisa de primogênita também. Então, tentou entender as coisas de forma racional, quis discutir tudo em termos de justiça. Não dá! Também perguntou sobre religiões e disse que as respostas das religiões são ruins e não explicam nada, não fazem sentido. Palavras dela. Sempre teve alma de cientista. Acho que faz parte dela, apenas dei espaço para ela elaborar da melhor forma. Sempre que desenha a mãe, a faz como um anjo no céu ligada a gente por corações. Certa vez me perguntou se estava errado ter ganhos com a morte da mãe (carinho das pessoas, ir a lugares que a mãe não gostava de ir, ficar até mais tarde em lugares que a mãe já teria estragado a brincadeira…). Disse que, com uma perda tão grande, um ganho aqui e outro lá, não muda nada, pra ela aproveitar sem culpa.

Desenvolvi uma estratégia: na frente delas, sou  forte e firme, quase 90% do tempo; no discurso, sempre digo a verdade: que sinto falta da mãe delas, que sofro e até mesmo choro. Não são elas que tem que me carregar. Podem falar o que quiser, porque estamos abertos ao diálogo. Sempre falo que eu aguento o tranco. Não quero que se inibam pra me proteger.

Meu maior medo era não dar conta ou que eu faltasse. Pai e mãe solos sabem que nem paz pra morrer se tem.

Era o medo delas também! Me perguntaram se eu morresse, se elas iriam para um abrigo. Peguei papel e caneta e fiz uma lista enorme com todos os amados: todos os familiares e amigos que poderiam cuidar delas se eu faltasse e o coração delas sossegou. Garanti que para um abrigo não iriam.

O vínculo entre Lorena e Tania era mais forte do que comigo. Então com 07 anos, falava menos, elaborava menos, mas quando falava, era muito visceral.

“- Pai, quando a mãe vai voltar? Eu só estou calma porque acho que ela vai voltar”. Respondi que a mãe não ia voltar mais, mas se isto a acalmasse, que ela poderia continuar achando isto.

“- Pai, eu preciso saber: você me ama mesmo? ”

Passou um mês perguntando uma vez por semana: “-Pai, eu nunca mais vou ver minha mãe? ”

Uma vez perguntou no restaurante: “- Pai, vou naquele jardim brincar. Você me chama na hora de ir embora, não se esqueça de mim!

“- Pai, eu não sei o que está acontecendo! Eu estou confundindo você com minha mãe!

“- Pai, eu quero saber porque minha mãe morreu? “ Tentei responder algo e ela me interrompeu: “- Eu só quero saber por quê? Por quê?” Calei me.

Uma vez a Letícia viu o desespero da irmã e falou pra ela conversar com papai do céu, porque  se ele existe vai te ajudar e, se não existe, não vai te fazer mal. Você já tem mania de falar sozinha mesmo!

Hoje está mais calmo. Elas ainda se queixam da falta da mãe, tem saudades, etc. Eu só acolho e pronto. Aprendi que elas vão revisitar e ressignificar a perda da mãe várias vezes na vida. Faz parte. Não tem jeito. Esta falta faz e fará parte da vida delas.

Por fim, o melhor conselho que me deram foi pra eu me cuidar. Concordei, acatei e foi (tem sido) muito bom. Ter uma vida além da paternidade me tornou um pai mais flexível, mais leve e mais disponível para o amor e para o afeto, mais tranquilo frente às minhas imperfeições, mais afeito e disposto a abraçar e beijar minhas filhas e declarar diariamente meu amor por elas. Não sou mãe, mas sou um pai melhor. Apesar da perda, a vida continua sendo muito boa. E segue!

Texto revisado por Danilo P. Pinseta

Contato do autor: marcosrrmendonca@gmail.com