Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural?
Eu poderia iniciar este texto dizendo que faz dez dias que as primas Emily Victória da Silva e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos foram assassinadas na porta de casa, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro (RJ).
Ou pouco mais de um ano do massacre de Paraisópolis (SP), onde 9 jovens foram mortos por estarem se divertindo no espaço público.
Ou quase um mês do assassinato em público de João Alberto Freitas, em um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre (RS). Mais de mil dias que não temos respostas de quem matou, quem mandou matar Marielle Franco.
Ou algumas horas da violenta morte de…
A cada 23 minutos uma pessoa negra é morta no Brasil. Antes de você terminar esse texto, pode ser que mais uma mulher ou homem negro seja morto em algum canto do nosso país.
Dói. Chega a doer tanto que, muitas vezes, paralisa. Faz mais de duas semanas que estou tentando escrever esse texto, mas a palavra faltou, a palavra se dissipa toda vez que não dá conta da realidade. Mesmo escrevendo sobre o tema recorrentemente, nada disso é parte do ciclo natural da vida. Que sejam dados nomes aos bois. Parafraseando Chico Science, o Estado é racista e mata gente inocente.
Muitas vezes me pergunto sobre o papel de minha escrita no mundo, enquanto a cada palavra mais um de nós cai. A frustração bate forte. Recordo que para eu falar sobre isso hoje, muita gente veio antes de mim (Luiz Gama, Antonieta Barros, Almerinda Farias Gama) e tantos outros que, em seu tempo, ou também neste agora utilizam suas canetas para denunciar o racismo estrutural. Prossigo.
‘Enquanto a gente morre de bala’
Diante da morte de João Alberto entrei em contato com um texto de Tatiana Nascimento. A palavreira, doutora em estudos da tradução e brasiliense o escreveu em agosto, diante do alvejamento de Jacob Black por policiais nos Estados Unidos. “O direito à morte natural é um privilégio branco” é o verso-título do poema que se segue:
enquanto a gente morre de bala
y c diz que morre de dó
enquanto a gente morre de fome
y vc diz que morre de pena
enquanto a gente morre de raiva
y você diz que morre de culpa
mas não morre, não,
né, vossa mercê?
de soco
de susto
de medo
de sua pele
alva; que o alvo
do ódio letal, até na
boca-tua piedade blazê,
é
todo
mundo
que não
parece gente
feito o sinhô acha
que gente deva de ser.
#paremdenosmatar
O poema materializou o hiato que vejo entre mortes brancas e negras e que, tantas vezes, não dou conta de traduzir. “essa disparidade entre as vidas que são tratadas como importantes (brancas) y as que são dizimáveis (racializadas como negras, indígenas) é o ponto de percepção pra escrita desse poema, mas também pra noção de que o maior privilégio branco desfrutável quase incontestavelmente é a prerrogativa de humanidade ser branca, remeter a um sujeito branco”, explica a palavreira.
Tatiana faz questão de manter seus dizeres em caixa baixa, imprimindo na escrita a individualidade que se perde em um mundo que exige de nós, negros e negras, um único padrão. “a colonialidade é uma máquina constante atuando na produção de valores de vida e valores de morte hierarquicamente distribuídos por raça/cor/etnia”, diz.
No Ensaio “racismo visual / sadismo racial: quando (?) nossas mortes importam” (n-1, 2020), a escritora analisa como a produção imagética audiovisual, a mesma que nutre imaginários, senso comum e pedagogias sobre o viver, pode acabar se utilizando da banalização das mortes para sustentar um moralismo antirracista da própria branquitude.
“nossas mortes são oferecidas em sacrifício pra que as consciências brancas antirracistas sejam ativadas. e se isso não é o sadismo racial colonial com requintes, é o quê?”, questiona.
Segundo o Atlas da Violência 2020, 75,7% das vítimas de homicídios são pretas e pardas. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%. Segundo a ONG Rio da Paz, 12 crianças foram mortas por armas de fogo no estado do Rio de Janeiro em 2020.
Para Tatiana, a violência pode ser encarada como a metodologia de estruturação do racismo, mas que muitas vezes acontece de modo imperceptível e até banal, já que a maioria da população foi acostumada a conviver com a morte negra estampada estereotipadamente e de forma sensacionalista na televisão.
“mesmo que a alta frequência de assassinatos de jovens negros no brasil seja desesperadora pra nós, e pouco discutida criticamente, ela é transparente no que abunda: as pessoas foram acostumadas pelo “jornalismo policial” a almoçar assistindo um desfile de corpos negros mortos na tela de tv. mortes “normalizadas” e tratadas como bem público alimentam a sensação de segurança do ‘cidadão de bem'”, pontua a palavreira.
Necropolítica: a política da morte
Mas por que essas mortes são normalizadas? Ao longo de 2020, me deparei muitas vezes com a palavra necropolítica ou política da morte. Eu tinha uma vaga ideia do que poderia significar, mas não compreendia muito bem como aplicá-la. Cansa ter que aprender tantos conceitos para descrever aquilo que se vive na prática, ao atravessar a rua ou entrar no supermercado, mas é preciso aprofundar o assunto para debatê-lo de frente. Não apenas entre nós, alvo certeiro e cansado dessa estrutura racista, mas também a branquitude.
O termo foi criado por Achille Mbembe, filósofo africano de Camarões, negro, historiador e teórico político que se debruça sobre isso no ensaio Necropolítica. “Mbembe diz que necropolítica é uma política da morte adaptada pelo Estado. É um fenômeno, onde o Estado vai escolher aqueles corpos que são descartáveis ou não são descartáveis. Aquelas pessoas que o Estado mata ou deixa morrer”, contextualiza a advogada, mestre e doutora em Direito pela USP, Allyne Andrade.
Exemplo disso é quando o Estado deixa de construir uma política de prevenção às populações negras e pobres diante da pandemia de Covid-19. A ONG Instituto Polis divulgou um levantamento com dados de 1 de março a 31 de julho que apontam que homens negros foram os que mais morreram por Covid-19.
A necropolítica opera também quando o Estado não regulamenta normas ambientais, não impedindo que garimpeiros, grandes empresas e grileiros avancem sobre o território indígena, levando doenças e a contaminação da água, está permitindo que a morte seja levada para povos indígenas.
Segundo a especialista, o corpo negro é visto, muitas vezes, como um corpo criminoso, em especial os homens negros. “A polícia assassina pessoas comuns porque acha que elas são perigosas e a gente já viu pessoas mortas segurando guarda-chuva, andando na sua própria moto ou carro. Nós temos uma polícia militarizada que está em constante guerra. Quem são os inimigos? Supostamente, o inimigo [para eles] seria o tráfico de drogas. Mas a gente vê que os inimigos são os corpos negros, periféricos e subalternaizados”.
‘A cor da violência policial: a bala não erra o alvo’, novo relatório da Rede de Observatório da Segurança, mostra o retrato da dinâmica racista da letalidade brasileira em diferentes estados brasileiros: 97% dos mortos pela polícia na Bahia são negros; Ceará não notifica a cor dos mortos em 77% dos casos; Nove em cada dez mortos pela polícia são negros em Pernambuco; 51% da população do RJ é negra, mas entre os mortos pela polícia negros são 86% e São Paulo vê aumento da letalidade policial e entre os mortos 64% são negros.
A necropolítica pode operar também na educação, quando a política educacional se nega a disseminar de determinados saberes –como história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo– ou, então, quando há falta de investimento da escola pública. “Isso também ceifa vidas. Embora não seja uma morte matada, uma morte física, é uma morte das potencialidades, uma morte do espírito, é uma morte do desenvolvimento”, complementa Allyne.
É importante lembrar, no entanto, que embora o termo esteja sendo utilizado agora, as práticas de morte vêm de muito antes, com o próprio processo de escravização e colonização do território e dos corpos. “Esse não é um processo que começa hoje, é um processo que começa com a colonização, com a escravidão, a escravidão que marca esse corpo negro como um corpo descartável, como um corpo matável”, relembra a advogada.
A força do movimento negro contra a necropolítica
O cenário é desanimador, mas é imprescindível trazer o importante trabalho que vem sendo desenvolvido pelos movimentos negros e indígenas na denúncia do racismo contra nossos corpos. Se hoje os dizeres “Vidas Negras Importam” e “Parem de nos matar” ganham as ruas de todo o país, é porque há muita gente trabalhando nisso há muitos anos. Destaco abaixo o trabalho de algumas organizações que vêm ampliado a discussão antirracista no Brasil, entendendo, porém, que os movimentos são muitos e vale revisitar essa lista muitas vezes ainda:
- Coalizão Negra por Direitos
- Reaja ou será morto, Reaja ou será morta
- Movimento Negro Unificado (MNU)
- Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio
- Instituto AMMA Psiqué e Negritude
- AMPARAR – Associação de Familiares e amigos de presos(as)
- CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas
- Apib – Articulação dos povos indígenas do Brasil
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