No topo da montanha: ‘quando eu quis morrer ‘
Recebemos o potente depoimento de Joana. Ela reflete sobre sua tentativa de suicídio após ter sofrido um estupro e ser desacreditada por pessoas em quem confiava… Um trauma profundo. Escrever e falar sobre isso é começo de uma transformação. Leia o texto na íntegra abaixo.
“Entender minha oportunidade de estar aqui, mesmo depois de tanto não querer estar. A morte sempre foi uma ideia plausível. Sempre. Desde pequena. Coisa estranha de se dizer, porque sei que é estranho, mas para mim (e Sylvia Plath), eu sei que não é. Hoje, no entanto, quero pensar na vida. Entender o que significa estar aqui. E perfeita, ainda assim? Sem marcas físicas, psicológicas que me impeçam de realizar. E muito mais forte, principalmente. Imagina se Deus não quisesse mesmo mais nada mais comigo…”
No topo da montanha: ‘quando eu quis morrer ‘
Durante a nossa vida, temos diversos encontros com a morte, e a gente sempre espera que seja com a morte do outro, com o parente do outro, com o amigo do outro, não com o meu, não comigo.
Há pouco mais de três anos, eu tentei suicídio. Foi, naturalmente, meu “topo da montanha” do insuportável de tudo que eu havia suportado até então, sem perceber. Fazia cinco ou seis anos que minha vida se tornara um dedicado culto a um templo religioso (e sua “religião”), onde eu ia para trabalhar como voluntária e funcionária. Era impossível dizer se me restava o que fazer e viver fora de lá. Todas as pessoas, amores, cheiros e sentidos, para mim, estavam lá dentro. Tínhamos uma cabeça, uma chefe, uma guia… e eu poderia pensar em muitos nomes para ela e não encontrar nenhum. É injusto descrever de maneira tão crua uma pessoa tão complexa. Mas não quero torná-la centro de nada agora, ela vai ter o seu momento. Por ora, vou chamá-la de Ama. A Ama gostava de cuidar de nós, ou da nossa vida, ou de controlar a nossa vida. Ou de ter poder. Coisas que descobri com o tempo, da pior maneira e uma de cada vez. Ela regulava de idade com a minha mãe, que há mais de dez anos morava longe de mim. Foi uma grande oportunidade para a Ama abocanhar a vaga “materna”, e ela – que tinha braços de Medusa – foi ligeira no processo da adoção simbólica, e em pouco tempo, já me chamava de filhinha.
No entanto, dois ou três anos depois, a minha vida “estável” no templo começou a demonstrar leves sinais de “isso não é estabilidade, é farsa; você vai desmoronar.” E eu comecei a sentir dores que ninguém conseguia enxergar. Daquelas que “pensamentos positivos” não medicam, pioram, porque você não consegue sequer pensar, e “olha como a vida é bela” tampouco. (As pessoas, em geral, precisam realmente rever se têm condições de ajudar alguém em necessidade de emergência mental antes de aconselharem o “belo e colorido” porque “pensamento positivo” é a última solução viável que eu enxergo, já tendo passado por buracos bem fundos). Mas eu estava em um centro religioso, onde a vibe predominante é essa. Eu não tinha como enxergar, e minha dor estava sendo negligenciada da pior maneira possível. Eu não tinha como enxergar, porque toda a solução do mundo, para mim, estava lá dentro, era lá dentro.
Uma semana antes de eu tentar suicídio, sofri um estupro. Fora do templo. Homens. Violência. Lembranças ainda muito ruins e embaladas em um curativo mal feito e recente, com cheiro de éter que arde nos olhos. Aquilo reforçou, na minha cabeça, que o mundo fora do templo era um perigo, e eu era um espiral, em velocidade da luz. Não sei se já tentaria morrer, mas depois do estupro, foi definitivo.
Quando contei à Ama, ela não acreditou. Um baque. Um baque. Mil vezes um baque. Me desmentiu para minha família, para a única pessoa a quem eu havia contado da família, depois de vencer uma muralha de vergonha. E o mais grave de tudo: ela me desmentiu para mim mesma. Mais tarde, quando escalei o cume da montanha e pedi ajuda, nenhuma chegou. De ninguém. Ninguém. Quem ouviu, de longe, foi o coração da minha mãe, que decidiu ir até a minha casa. Quem, “por sorte”, estava na mesma cidade no dia. Foi ela, minha mãe real, quem me salvou. Inexplicavelmente, como sempre funcionam as mães. Porque aí, eu tentei morrer.
A Ama desapareceu. Decidiu apenas esclarecer semanas depois, quando eu tive alta, que não queria mais se envolver por medo de acreditarem que estávamos vivendo um romance. Queria muito ter dito a ela “Tenha dó!”, mas ainda estava sob efeito de muitos remédios.
Eu não morri, fisicamente. Na verdade, talvez tenha morrido, sim, por alguns breves instantes, porque tive uma parada cardiorrespiratória. Mas vivi. Até voltei ao templo algumas vezes depois da alta, mas me disseram que não havia mais o que ser feito por mim lá. Deus já havia feito tudo e não poderia mais me ajudar. Esgotei o deus deles!, pensei. E demorei para me convencer que deveria seguir. Matar toda essa vida. Matar de maneira saudável, porque dizia respeito ao que residia em mim, a minha história. Ao meu, a mim. Ressignificar. Viver o luto, que durante anos de terapia, nunca mencionei. Hoje, sem terapia, penso que mencionaria, e muito. Não é realidade achar que as fases do luto são protocolares e ordenadas. Tem dias em que passo por todas elas de uma vez só.
Entender minha oportunidade de estar aqui, mesmo depois de tanto não querer estar. A morte sempre foi uma ideia plausível. Sempre. Desde pequena. Coisa estranha de se dizer, porque sei que é estranho, mas para mim (e Sylvia Plath), eu sei que não é. Hoje, no entanto, quero pensar na vida. Entender o que significa estar aqui. E perfeita, ainda assim? Sem marcas físicas, psicológicas que me impeçam de realizar. E muito mais forte, principalmente. Imagina se Deus não quisesse mesmo mais nada mais comigo…
OBS: Joana é um nome fictício. Ela preferiu não se identificar.