O luto como política de resiliência
por Beatriz Prates e Julia Ferry*
O clássico da nouvelle vague francesa, “Hiroshima Meu Amor”, ressignificou através do olhar cinematográfico as noções de memória individual e coletiva. Com uma construção narrativa que transita entre o documentário e a ficção, o filme de Alain Resnais registra o movimento de uma câmera que percorre museus, fotografias e documentos que delatam a devastação da bomba atômica, acompanhada por um encontro entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês.
Em uma das cenas mais paradigmáticas do longa, os corpos dos amantes, entrelaçados na cama, aparecem envoltos por poeira nuclear. Os diálogos dos personagens são infalivelmente interpelados pela persistência da memória. Para ele, memórias da guerra e suas sequelas, para ela, a insistente recordação de tragédias pessoais.
“Você não viu nada em Hiroshima” é o que diz o arquiteto à atriz, ao que ela lhe responde: “Eu vi tudo”. Ela descreve o que pôde ver nesses registros que ficaram, ao que ele reforça que ela não viu nada, pois não se tratava da verdade do vivido, mas de registros restantes do trauma. Esse jogo discursivo entre o ver e o não ver, o vivido e o imaginado, a memória e o esquecimento e a presença e a ausência, são confrontados e desmontados no diálogo entre os dois amantes.
Esse encontro entre anônimos, ambos marcados pelas suas perdas pessoais e históricas, alicerçado na memória coletiva dos acontecimentos de Hiroshima, realiza-se através da constatação da condição de vulnerabilidade que marca suas existências.
Há presente, antes de uma hierarquização do sofrimento e da dor, uma partilha da perda, em que cada um tenta endereçar e dizer ao outro a sua experiência singular, atravessada pela catástrofe de dimensão política, que possibilita o encontro de alteridades.
O filme, nesse sentido, inventa uma linguagem para retratar a perda, um recurso que se faz urgente e pertinente para o contemporâneo, especialmente neste ano disruptivo decorrente da pandemia da Covid-19. A grave crise sanitária e econômica atual nos reposiciona irremediavelmente frente a desassossegos humanos fundamentais.
Luto como elaboração da perda
Como falar de uma perda? Como realizar o luto? Questões ontológicas que tocam não só a vida de cada uma das pessoas, mas se estendem como enigma, referência e preocupação da cultura, do social e do político. Afinal, a experiência da perda se faz presente na realidade de todo o planeta, em diferentes proporções e formas de afecção.
Muito se tem falado e escrito sobre o luto como um processo imprescindível e necessário na fratura do contemporâneo. Há a reivindicação e apelo para que possamos inventar, enquanto coletivo, formas sociais de elaboração e simbolização da perda, sejam das que nos tocam singular e intimamente, sejam as que envolvem aqueles que desconhecemos e nos são distantes.
A reivindicação do luto como um recurso político e universal, desmonta formas de organização das subjetividades e da vida coletiva estruturantes da política do cotidiano. Esta reivindicatória se estende em assumir os laços substancialmente relacionais que nos envolvem, em que somos todos condicionados e atravessados pela perda, tanto de si mesmo, como dos outros. O luto como bem comum e compartilhável assume uma valorização e consideração pelas mortes, ao mesmo tempo em que denuncia as desigualdades de enquadramentos que condicionam o conjunto das vidas.
A desumanização política de corpos
Como argumenta a filósofa contemporânea Judith Butler, as vidas que não são passíveis de serem enlutadas são consequentes das formas de violência que organizam as sociedades capitalistas neoliberais, em que segmentam os sujeitos entre corpos que pesam e corpos que importam.
A desumanização política de corpos e a obstaculização do luto, portanto, não têm início com a pandemia, sendo antes produtos da forma mercadoria que marca a sociabilidade capitalista. No Brasil, agravado pela condição de país periférico e dependente, essa constatação é amplamente verificável. Em 2019, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou indicadores sobre saúde no planeta e declarou que o país ostentava o maior número absoluto de assassinatos no mundo.
E segundo o último Atlas da Violência, que analisa dados divulgados pelo Departamento de Informática do SUS – DATASUS, uma das principais expressões das desigualdades raciais no Brasil é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra.
Enquanto jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento ao longo dos anos, entre brancos os índices de mortalidade são muito menores (e em muitos casos apresentam redução). Ainda de acordo com as informações do Atlas, em 2018, a cada duas horas uma mulher foi assassinada no Brasil, totalizando 4.519 vítimas, com preponderância de vítimas pretas ou pardas.
Parte significativa dessas mortes decorre da própria forma de organização do Estado. As desigualdades nos indicadores de acesso a serviços de saúde e assistência social são abissais e aprofundaram-se com a pandemia, abreviando de maneira perene inúmeras vidas. Além disso, a lógica de hipertrofia da punição e o encarceramento em massa são responsáveis pelas mortes diárias de incontáveis jovens periféricos e policiais.
O penúltimo Anuário de Segurança Pública, divulgado em 2019, destaca que, naquele período, enquanto o número de assassinatos no Brasil caiu pela primeira vez em três anos, o número de pessoas mortas pela polícia bateu recorde, chegando a 6.220 casos, o que significa dizer que 1 em cada 10 mortes violentas no país foi causada por um policial. A título de comparação, a polícia dos Estados Unidos da América, que foi alvo de protestos recentes em cidades de todo o mundo dado o caráter letal e racializado que também marca sua atuação, matou 17 vezes menos do que a polícia brasileira em 2019.
Interpretar essa seletividade e a aparente contradição que reside no fato dessas mortes serem operadas pelo Estado (e se justificarem juridicamente) demanda uma compreensão a respeito de outra categoria, a assim denominada forma jurídica.
Isso porque o direito é uma das formas engendradas pela sociedade capitalista para organizar e garantir a produção e reprodução da sua vida material em relações de produção (capital e trabalho). E dado que a propriedade escrava e o tráfico negreiro foram o eixo da economia que se montou no Brasil, a arquitetura de formação do nosso arcabouço jurídico relacionou-se diretamente com essa forma de organização do trabalho e suas nefastas consequências.
Aliás, chama a atenção que no contexto de construção e legitimação do Estado-Nação, a codificação do poder punitivo estatal tenha sido priorizada, resultando na elaboração de um Código Criminal em 1830, antes mesmo do Código Comercial e da Lei de Terras.
Ou seja, o desenvolvimento desse instrumento foi indispensável para assegurar estabilidade interna e o controle da ordem pública, operando, até os dias atuais, como garantidor da distribuição desigual (e, repise-se, legal) da riqueza e da execução de negócios e relações contratuais.
É preciso insistir no luto
Por isso, a construção de uma política baseada no luto como recurso primordial da vida social precisa partir também de uma constatação a respeito das limitações do direito e dos operadores jurídicos. Nesse sentido, pertinente questionar e problematizar a crença de que as medidas institucionais e jurídicas existentes são capazes de antecipar e resolver na totalidade a garantia da vida e a reparação pela perda.
Em novembro desse ano, pouco após o dia dos finados, esse país que mata cidadãs e cidadãos em proporções maiores que as de países em guerra impôs seu destino trágico às histórias de João Alberto, Emily e Rebecca. Três vidas e trajetórias diferentes, violentamente entrelaçadas pelos crimes de raça e classe que as acometeram.
João Alberto foi assassinado pelos seguranças da rede de supermercados francesa Carrefour, e Emily e Rebecca vitimadas pelo estado enquanto brincavam na porta de casa no Rio de Janeiro. Nesse ano em que o cotidiano teve sua programação interrompida pela pandemia, o genocídio da população negra segue aflitivamente desestruturando vidas no Brasil.
Escrever e contar sobre essas mortes é, de algum modo, assumir como verdade o fracasso em dizê-las. Isso porque diante do absurdo, do traumático e do inconsolável, a linguagem sempre fracassa.
Como lidar com essas perdas sem evocar uma enunciação melodramática, condenatória ou meramente denuncista? Como tornar a dor, a história e a emoção, como apontou Didi-Huberman, nossos bens comuns? Como contaremos coletivamente essas histórias, essas vidas, essas mortes?
Como mostra a própria Psicanálise, o luto, muito ao contrário de um processo natural e inevitável que sucederia uma perda, mais envolve um movimento de simbolização complexo que implica o sujeito e o coletivo em uma invenção e reinvenção da linguagem.
É uma necessidade e urgência do presente insistirmos em contar sobre essas vidas, na insistência de que o afeto aflitivo e inconsolável que suas mortes evocam mobilizem as subjetividades, a política e a realidade.
Torna-se urgente transformar o luto em recurso político, como colocou Judith Butler, pois isto implicaria em criarmos laços sociais a partir do senso da perda, transformando as relações de alteridade e nossas sensibilidades. Pois, ainda com Butler, se há uma verdade sobre o luto, é que jamais sairemos os mesmos neste processo inevitavelmente transformador. Como demonstrou Freud, o luto, ao contrário da paralisia melancólica, exige um movimento, uma atividade dos sujeitos, uma aposta na linguagem, embora sempre precária, mas resiliente.
Se o historiador Didi-Huberman expressou que diante do inimaginável, imaginar é um compromisso ético e político, fica como desafio e necessidade, diante destas perdas, nos implicarmos coletivamente com suas memórias, reivindicar justiça, dizer sobre o indizível, insistir no luto, apesar de tudo.
*Beatriz de Santana Prates – Graduada em Direito, especialista em Criminologia e Direito Penal pelo ICPC e mestranda no Programa de Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Julia Ferry – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP.