Sobre ursos e a espera pelo novo

Um urso enorme me caçava dentro da cidade. Quando fui me esconder, descobri vários ursos perambulando pelas ruas e pessoas desesperadas, como eu, buscando proteção. Era preciso encontrar labirintos apertados para se acolher e ficar ali até algum sinal de que os ursos iriam sumir. Consegui achar um quarto e me tranquei. Sentei no chão, fiquei ali esperando, enrolada nos meus próprios braços.

         Esse último sonho do ano traz um sentimento muito presente no ano todo: o sentimento de espera. Fiquei esperando o perigo passar, tentando me desvencilhar do medo de perder alguém amado, me desvencilhar da depressão. 

É inútil entrar em guerra contra um urso gigante, mas também é possível vê-lo como algo acolhedor. O ursinho de pelúcia que sempre protegia minha cama durante o dia. Até a escuridão chegar, eu me deitar, abraçá-lo e encontrar a segurança necessária para fechar os olhos para cair no abismo dos sonhos.

Na espera, encontro conforto transmutando conceitos. Ou pelo menos, tento. 

         O medo ainda estará muito presente em 2021. O medo do desconhecido, o medo da morte. Eu escrevo um blog chamado “Morte sem Tabu” há 6 anos, participo de palestras e encontros para discutir temas relacionados à morte, e nunca a senti tão presente quanto agora. 

Eu tive medo da morte o ano todo.       

Conversei com sepultadores, agentes funerários, médicos, enfermeiros, motorista de ambulância, entregadores de comida. O sepultador Osmair Cândido me disse: “o medo é tão denso que dá para pegar com a mão”. Essa frase martela. 

Esse blog deu um passo importante, recebeu uma coautora. A jornalista Jéssica Moreira traz questões sociais e raciais sobre a morte. Não vejo uma pauta mais urgente para esse espaço do que essa.

A palavra “luto” nunca recebeu tanto destaque da mídia quanto agora.

         Já ouvi definições lindas sobre luto. Luto é vínculo. Luto é o amor que fica. Luto é a internalização do outro em nós mesmos. Luto é ocupar um terreno desertificado pela ausência. Luto é dor.  O compositor José Miguel Wisnik perdeu a esposa em 1982, de ataque cardíaco durante uma crise asmática e o filho de 7 anos, seis meses depois. Ele compôs uma música sobre esse sentimento:

       “Se meu mundo cair, então / Caia devagar. / Não que eu queira assistir / Sem saber evitar / Cai por cima de mim / Quem vai se machucar / Ou surfar sobre a dor até o fim / Cola em mim até ouvir / Coração no coração / O umbigo tem frio / E arrepio de sentir / O que fica pra trás / Até perder o chão / Ter o mundo na mão / Sem ter mais onde se segurar / Se meu mundo cair / Eu que aprenda a levitar”. 

A ideia de levitar é oposta à figura do urso do meu sonho, pesado, grudado no chão. Mas também representa sabedoria. É a leveza necessária para sobreviver. Desejo levitar com a consciência de quem tem raízes no chão, reverberando como uma árvore anciã.  

Termino com o trecho do último epsódio de uma série documental que participei, lançada em junho 2020. “Em Nome de Deus” está disponível no GloboPlay. Uma boa virada de ano a todos e obrigada por nos acompanhar.

Veja o vídeo aqui

 

https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/12/29/avancos-e-retrocessos-para-uma-morte-sem-tabu/

 

https://globoplay.globo.com/v/7752834/