Por trás da falta de ar em Manaus, uma trajetória de políticas de morte
Falta oxigênio, sobra irresponsabilidade política. Médicos tentam salvar seus pacientes com ventilação manual. Parentes se revezam para socorrer os familiares comprando cilindros.
Faz tempo que respirar se tornou palavra ausente. Os joelhos no pescoço nunca dão trégua. Também estão nas mãos que carimbam as sentenças de morte.
Os exemplos são vários. Desde o começo da pandemia, Bolsonaro decidiu pelo genocídio. Genocida: que ou quem perpetra ou ordena um genocídio. Responsável pelo extermínio de muitas pessoas em pouco tempo.
Toda e qualquer decisão tomada por esse governo, inclusive o Ministério da Saúde pressionar a prefeitura de Manaus no uso de hidroxicloroquina e ivermectina, são assinaturas de morte.
Durante sua visita a Manaus, Pazuello lançou um aplicativo de uso exclusivo de médicos que incentiva o uso dessas medicações O MPF (Ministério Público Federal) segue investigando.
O governo do Amazonas já havia informado no dia 10 de janeiro sobre a falta de oxigênio. A fornecedora multinacional White Martins também alertou sobre a falta do item. A Folha informou neste domingo (17) que até mesmo uma parente de Pazuello apontou a ele a falta do material.
“Nós estamos em uma situação deplorável. Simplesmente acabou o oxigênio de toda uma unidade de saúde”, diz uma mulher vestindo máscara em um vídeo que correu as redes e também foi publicado na coluna da Monica Bergamo de sexta.
IMPOTÊNCIA E DESPROTEÇÃO
Impotência e desproteção. É assim que Jacqueline Pinheiro, farmacêutica clínica manauara, se sente. Ela trabalha em um hospital público da cidade, onde ainda não houve ausência de oxigênio, mas o alerta vermelho se estende para além das paredes dos serviços de saúde, preocupando a população.
“O dia a dia não está fácil. Agora mesmo não consigo dormir. A preocupação não deixa. Impotência e desproteção, emocional e social, me resumem. Eu acredito que lugar nenhum estava preparado para a grande demanda que receberia. A situação é caótica”, conta a farmacêutica.
Depois de uma queda de braço entre comércio local e governo, o toque de recolher agora é uma realidade. Começa às 19h e acaba às 6h da manhã. A entrada no supermercado e farmácias está é reduzida. As frotas do transporte público também. É uma das ações possíveis para conter o vírus.
Segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), o número de internações em Manaus chegou a um pico diário de 250 nesta semana, sendo que 2.221 pessoas foram internadas com covid-19 nos 12 primeiros dias de 2021. A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Amazonas é, atualmente, de 143,1, sendo a mais alta do Brasil, atrás apenas de Rio de Janeiro e do Distrito Federal.
O professor universitário Eliseu da Silva mora em Parintins, a 23h de distância de Manaus de barco. Mesmo longe, sente por meio de amigos e familiares o impacto da tragédia que se aproxima.
“Aqui em Parintins, os hospitais estão superlotados. Tivemos problemas de oxigênio no Hospital Jofre Cohen e pacientes foram transferidos para o Hospital Padre Colombo. Chegou oxigênio na madrugada de quinta para sexta-feira”.
“Há um esgotamento físico. Hoje convivemos com a falta de leitos. Isso já é muito complicado. Como está superlotado, muitas famílias reclamam que não há mais resposta da condição de saúde dos familiares internados. Depois, se perde todo o contato. Há pessoas que só sabem da morte do familiar três dias depois do ocorrido”, conta.
“Já não conseguimos enxugar lágrimas de parentes, amigos, conhecidos, porque logo vem outra notícia trágica. Estamos preocupados com quem não tem trabalho mas, ao mesmo tempo, preocupados com a vida que precisamos preservar. Sentimento dúbio de viver e manter a vida”, diz o professor.
UMA CRISE SANITÁRIA DE LONGA DATA
O sistema de saúde de Manaus foi um dos primeiros do Brasil a entrar em colapso no primeiro pico do coronavírus no país. A crise de saúde local, no entanto, já vinha sendo denunciada muito antes da pandemia.
“Infelizmente, o que está acontecendo em Manaus é o reflexo do nosso Governo. Mesmo antes da pandemia, nós já tínhamos hospitais lotados e falta de suprimentos e medicamentos. A pandemia veio para mostrar para o Brasil e para o mundo o que já vinha acontecendo”, aponta Jacqueline.
Segundo o presidente do sindicato dos médicos do Amazonas, Mario Vianna, a situação atual do governo de Manaus se iniciou em julho de 2019. “Denunciamos o caos bem antes da pandemia, mostramos vídeos e fotografias do caos da saúde do Amazonas inclusive com salários com até oito meses de atraso.”
Diante da impotência em exercer o exercício da profissão, muitos médicos estão diante de um verdadeiro cenário de guerra, conta Vianna. Embora muitos já tenham atuado em situações limítrofes, agora estão esgotados fisicamente e emocionalmente.
“Falta medicamentos, pacientes estão no chão. Se sentem até ameaçados, situação totalmente anormal, única palavra que consigo pra desenhar é cenário de guerra”, diz. “O estado tem uma das maiores taxas de infecção dos profissionais de saúde. Não há proteção individual, as estruturas hospitalares não são muito bem planejadas”, critica o sindicalista.
Um outro médico que prefere não se identificar por receio de perseguições, assinala que a situação da área da saúde é calamitosa há décadas. “Estamos há quase duas décadas sem reajuste de salário. Aqui tem terceirização de trabalho na ponta. Muitos ficaram quase um ano inteiro, entre 2019 e 2020, trabalhando sem receber. Chegaram ao ponto de não terem condição de se locomover para o trabalho. O sistema de saúde está numa areia movediça. ela se movimenta. Entra e sai governo, a impressão é que só tem gente da mais elevada incompetência”, desabafa o médico.
NATURALIZAÇÃO DA MORTE
Olhar as imagens de Manaus e conversar com quem está lá é estarrecedor. Daqui do Sudeste, não sabemos do problema um terço. Afinal, desse lado do Brasil, impera o ego pela corrida da vacina, que duela contra o extremismo de um presidente que pula no mar para demonstrar saúde em um país onde 1 mil morrem por dia pela Covid-19.
Bater panelas é ínfimo. É preciso maior mobilização social contra o genocídio em curso. Mas o medo de contaminação também nos paralisa e adoece trancados dentro de casa. Faz tempo que a população brasileira se sente de mãos atadas.
Atrás de cada máscara, esgotamento, cansaço, medo. É difícil viver morrendo. Neste domingo (17) a Anvisa aprovou o uso da vacina no Brasil. A torcida é grande, queremos viver. Mas falta oxigênio em Manaus, médicos se recusam a fazer testes do coronavírus nas periferias. “Eu não posso respirar” não apenas atravessou 2020, como também chega nos primeiros dias de 2021 lembrando que ainda vai demorar para recuperarmos o ar.
Mas como bem poetizou Pablo Neruda, “por estes mortos, nossos mortos, peço castigo. Para os que salpicaram a pátria de sangue, peço castigo. Para o verdugo que ordenou esta morte, peço castigo. Para o que deu a ordem de agonia, peço castigo. Para os que defenderam este crime, peço castigo”.
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