Dois anos depois de Brumadinho: luto, lama e luta
Joeliza Feitosa trabalhava em Belo Horizonte (MG) quando ouviu as primeiras notícias sobre o rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em 25 de janeiro de 2019. Sua maior preocupação era a filha, moradora das margens do Rio Paraopeba, em Juatuba.
Saiu correndo, com receio da chegada do rejeito no local. Pediu para a filha desocupar a casa. Ela ficou, a lama não atingiu a residência. Desde aquele dia, no entanto, tudo mudou na vida da família.
“Logo que a lama chegou, a cor do rio Paraopeba mudou. O cheiro do rio mudou. A gente não chegou perto porque ficou com medo. Mas dava pra perceber a devastação da fauna, dos peixes, da flora e, quando os dias foram passando, a morte das plantações”, relembra Joeliza, que hoje é aposentada e milita no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Já havia se passado três dias da tragédia quando a jornalista Lu Sudré chegou a Brumadinho. Era segunda-feira à tarde, as pessoas começavam a mensurar o tamanho da tragédia. Havia uma estrutura no Córrego do Feijão onde as pessoas podiam checar a lista de corpos encontrados, o que marcou sua cobertura.
“Uma das coisas mais perversas desse processo de luto era a espera e a falta de informação, porque você via as pessoas exaustas esperando algum tipo de dado e, às vezes, demorava para chegar a lista. Entrei em contato com a espera e falta de informação, que era o que mais atormentava as pessoas”, conta a jornalista do grupo Brasil de Fato.
Até hoje, foram contabilizadas 272 vítimas fatais, com ainda 11 desaparecidos. Mas não há número ou descrição que dê conta da dor e perda dos entes e também de todo um estilo de vida subsidiada por meio do rio.
Um levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica realizado alguns dias depois do rompimento, mostra que pelo menos 305 dos quase 550 quilômetros do Rio Paraopeba foram contaminados por rejeitos. Foram 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que não apenas poluíram o rio, mas também toda uma comunidade que vivia à base da agricultura e pesca. A Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg) estima que entre 350 e 400 produtores rurais foram impactados.
“Depois do envenenamento do rio, a Vale acabou com a nossa vida, com o nosso futuro, com nossos sonhos, com os nossos investimentos. Nosso sonho foi desmoronado. Nós temos um ao outro. Aos dois anos do crime, o que nos move é a luta, a esperança pela punição e, principalmente, para que a vida comece a valer mais do que o lucro”, diz Joeliza, que, assim como outros moradores e movimentos sociais, entende a mineradora como a verdadeira culpada da tragédia.
O custo de vida é alto e, com a pandemia, os preços dos alimentos subiram ainda mais. Antes da contaminação, ainda era possível se alimentar das plantas ou animais. “Não se pode mais nem chegar próximo ao rio, há placas recomendando que não se tenha nenhum contato”.
Mesmo passados dois anos, ainda não houve justa reparação à comunidade atingida. Havia uma ação no valor de R$54 bilhões, sendo R$26 bi para os danos sofridos pelo Estado e 28 bi aos danos morais e sociais da comunidade.
A mineradora Vale tenta agora negociar o valor com o Estado a portas fechadas, sem a participação dos atingidos. Em nota, a empresa reconhece sua responsabilidade e diz que até o momento foram pagas 8.700 indenizações individuais.
Em dezembro de 2020, em torno de 1 mil atingidos realizaram manifestação no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para reivindicar participação nas negociações com a Vale, prorrogando o auxílio emergencial para a população até janeiro de 2021. Hoje, é a Vale que decide quem recebe ou não a ajuda.
A água para beber precisa ser comprada, pois mesmo quando ela escorre da torneira fornecida pela Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), vem suja e com mal cheiro. “Nós temos diarreia, dores estomacais, alergias, incômodos diversos. E obrigados a ter uma despesa a mais com água mineral”.
ATINGIDOS A LONGO PRAZO
Poucos meses depois, a filha de Joeliza engravidou. Seu bebê tem oito meses, mas ao contrário dos outros dois filhos, a criança sofre com inúmeros problemas de saúde, que a família entende como resquício da contaminação local.
“Ele tem manchas na pele, problemas constantes nos rins, infecção de urina. Temos medo que seja em função da contaminação por metais pesados dada a proximidade que eles moram do rio Paraopeba. Até hoje os médicos não conseguem identificar, temos fé em Deus que não seja algo muito grave, mas o medo existe”.
Problemas de pele, coceira, alergia e outras doenças respiratórias são os problemas mais comuns, mas a depressão também assola a vida das comunidades atingidas. “Muita gente com depressão e houve muitas tentativas de suicídio, pois muitas pessoas estão sem nenhuma expectativa. Não conseguem mais planejar, sonhar ou resolver seus problemas diários. Aqui é uma cidade onde o emprego já era escasso. A situação foi se agravando com o crime da Vale e só piorou com a pandemia. As pessoas sentem na pele, na mente e no corpo a falta d’água, de comida e de trabalho”, relata Joeliza.
LUTO COLETIVO
A psicóloga Camilla Veras, mestre e doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP, lançou na última semana o livro “Lama, luto e luta” ( disponível para venda pela Editora Dialética), onde narra sua experiência de campo diante do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), no ano de 2015. O livro reflete sobre os lutos coletivos e a ressignificação por meio da luta comunitária.
“O sofrimento não é apenas individual, e poderia ter sido mitigado e minimizado com prevenção, segurança e monitoramento”, afirma. “Há muitas perdas em um processo como esse. Perda do modo de vida antes do rompimento; perda do rio, perda da terra, do trabalho, da casa onde fazia o jantar com a família ou de uma fase da vida. Existe um antes e um depois na vida das pessoas. São vários lutos, é difícil falar de um só. Este luto do campo mais simbólico afeta a vida das pessoas, pois fica como registro e marca do acontecimento, resultando em sofrimento psíquico”, explica.
O livro traz o conceito de trauma psicossocial, do salvadorenho Ignácio Martín Baró. Ele explica que, diferente do trauma individual, o trauma psicossocial é projetado como mecanismo de Estado, que além de produzir as políticas de morte, também se baseia nas políticas de destruição simbólica.
“A própria pandemia mostrou como o Estado brasileiro tem banalizado a morte. Não existe somente uma irresponsabilidade, mas um projeto que aposta na ausência de qualquer proteção social. O sofrimento não é de ordem natural.
O livro denuncia o modelo colonial e predatório da mineração brasileira, que, segundo Camilla “arranca da nossa terra riquezas, destrói territórios, contamina o solo e as águas, explora trabalhadores e despeja rejeitos e dejetos sob populações campesinas, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. Mesmo depois de 5 anos, há pessoas lutando para serem reconhecidas como atingidas, lutando por indenizações, reassentamento. São situações que não foram resolvidas e que agravam o luto”.
ESCUTA ATIVA
Camilla alerta que em situações como essas os voluntários devem agir em consonância com a política pública local, até mesmo para evitar mais especulação da dor da população. “Há, muitas vezes, uma fetichização do sofrimento. Existem órgãos coordenados pela política pública. Caso se proponha a ajudar, é importante estar respaldado e integrado às diretrizes e orientações da política de saúde local. É importante tratar com respeito as populações e histórias, para não ser mais um agente de violação. Estabelecer uma escuta sensível que não abra questões que sejam difíceis de acompanhar e ajudar a dar o contorno necessário”.
Parece óbvio, mas é preciso pedir autorização antes de gravar ou fotografar uma pessoa. “Perceber o território, muitas vezes, é tão valioso quanto um relato. O relato é pré-moldado para o que se espera, já que há tanta gente fazendo as mesmas perguntas. Às vezes, numa caminhada ou uma procissão você consegue perceber ainda mais coisas”, diz a psicóloga.
Com o passar dos dias, a jornalista Lu Sudré entendeu que tinha que tomar cuidado com algo muito simples, mas que ainda não tinha se dado conta: o tempo verbal de suas perguntas. “Percebi que elas estavam no meio fio entre entender que a morte havia chegado para o filho e ter uma esperança de que ainda havia vida. Dizer ‘quantos anos tem seu filho’ e não ‘tinha’, por exemplo. Na primeira vez que eu falei no passado, a pessoa respondeu no presente. Comecei a tomar cuidado com o tempo verbal das coisas que estava falando para não fazer aquela pessoa sofrer ainda mais, não antecipar o processo de luto que ela estava vivendo”, relembra.