‘Seu filho é incompatível com a vida!’

Camila Appel

A jornalista Iaçanã Woyames escutou essa frase mais de uma vez: ‘seu filho é incompatível com a vida’. O bebê crescia na barriga com uma má formação na bexiga. Com essa expressão, os médicos sinalizavam que ele teria poucas chances de sobreviver. Esse termo é um jargão médico para má formação, anencefalia e síndromes genéticas graves. Para a mãe, soava como uma frase incompreensível e dolorida.

O bebê viveu por 35 minutos, no colo da mãe.

“Quando o desconforto nasce, a insatisfação, o sofrimento, a raiva ou qualquer outro processo sentimos uma necessidade de se mover, mudar, responder, tomar uma decisão…mas, talvez, o convite seja para sentar, acolher, deixar sentir, permitir e viver nossos processos”.

Durante seu processo de luto, Iaçanã percebeu como as pessoas tinham dificuldade de expressar empatia. Ela escutava frases que não trazia conforto, como ‘Deus sabe o que faz’, ‘daqui a pouco você terá outro filho’. Chegou a sentir raiva e  inveja de outras mães, outras grávidas. Ao mesmo tempo, era tomada por uma vergonha em assumir esses sentimentos.

Ela passou a estudar e compartilhar a abordagem conhecida como ‘comunicação não-violenta’, sistematizada por Marshall Rosenberg e encontrou conforto em seus conceitos além de um novo paradigma de expressão e visão de mundo. “Sentimento não é bom ou ruim. Ele apenas é. A Comunicação não violenta nos permite estar melhor conectados com nossas emoções e com nossas relações”, afirma.

Iaçanã transformou essa experiência em um canal de comunicação. @missaogirafa. “Girafa é símbolo da comunicação não violenta. É o mamífero com o maior coração, que nos remete à compaixão e empatia. A girafa  tem um pescoço longo, para poder ver além dos julgamentos, além do certo e errado. Como eu me coloquei a missão de agir como uma girafa, escolhi esse nome”.

Ela nos enviou um lindo depoimento ao blog.

“Viver tudo isso foi desafiador, difícil, extremamente dolorido, mas também foi uma experiência que me ensinou muito. Mudou a minha maneira de enxergar o mundo”.

Ler seu relato também nos muda um tanto. Agradecemos.

A incompatibilidade da vida

Autora: Iaçanã Woyames

Incompatibilidade. Talvez seja uma palavra que usemos pouco. Eu mesma nunca tinha pensando sobre ela até ouvir pela primeira vez em 2015: – Seu filho é incompatível com a vida!

O ano era 2014 e após quase um ano e meio de muitas tentativas eu conseguia finalmente engravidar do meu primeiro filho. Fui fazer uma ultrassom para mapear minha ovulação, saber se tinha alguma coisa errada com ela, e eu descobri naquele dia que estava grávida. Era uma emoção sem tamanho. Fui descobri o por que não engravidava e já estava grávida.

Tudo estava indo muito bem, os primeiros ultrassons, os exames de rotina, até que chegou o grande dia de descobrir o sexo do meu bebê, com 16 semanas. E lá fomos nós, eu, meu marido e minha mãe. Quem disse que eu conseguiria dormir direito? Seria Samuel ou Yasmin?

Um grande silêncio inundou aquela sala. Foram os cinco minutos mais longos da minha vida. Eu olhava para a tela e só conseguia ver uma bola enorme. Meu coração estava acelerado e minha respiração começou a ficar ofegante, tinha alguma coisa errada com aquela imagem. Foi então que a médica, com muita sensibilidade, nos disse que meu bebê estava com uma mega bexiga, provavelmente, de uma malformação, uma obstrução no trato urinário.

Eu fiquei paralisada por alguns minutos. Será que eu estava ouvindo direito? O que era aquilo? Ninguém me preparou para aquela notícia. Eu estava preparada para saber sobre uma nova vida e não para ter que lidar com a incompatibilidade da vida, ou melhor, com a morte. Na verdade, com a vida e com a morte. Eu, antes, só queria saber se era menino ou menina?

Depois do ultrassom, o sexo já não era mais importante, inclusive, a bexiga do meu filho era tão grande que nem dava para saber.

Foi um momento de muita dor e medo, mas, inicialmente, também foi de uma busca incessante por informações. Fui ler tudo que tinha sobre o assunto, procurei dois ou três médicos, até chegar na equipe da medicina fetal do Hospital das Clínicas e realizar um exame de urina no meu bebê. Com este exame era possível saber se algo poderia ser feito, inclusive, uma cirurgia intrauterina. Fiz o exame e aguardei alguns dias. Foi a espera mais dolorosa da minha vida. Eu tinha muita esperança e acreditava que era só um pesadelo, que quando o resultado ficasse pronto tudo se resolveria.

Mas não foi isso que aconteceu. Meu filho era incompatível com a vida, este é o termo que eu escutei depois deste exame, em cada consulta, em cada ultrassom… Ou seja, ele não tinha chances de sobreviver, os rins dele não funcionavam.

Primeiramente foi um grande susto. Um filho amado e muito desejado que não iria viver. Tive que aprender a lidar com a vida e com a morte ao mesmo tempo. Um dia de cada vez, era meu mantra. Meu filho era “incompatível” com a vida. Porém ele estava vivo dentro de mim: eu ouvia seu coração batendo e algumas vezes o sentia mexer. Mas ao mesmo tempo eu tinha que lidar com a morte. Pois ele poderia morrer a qualquer momento na minha barriga ou logo depois do parto. Eu chorei muito, me perguntava o porquê de viver tudo aquilo e também sentia muita raiva. Mas todas as vezes em que eu chorava ou ficava triste eu sentia que tinha um bebê vivo dentro de mim e isso me dava muita força. Então: eu tomei uma decisão. Eu prometi para mim mesma, junto com o meu marido, que ele viveria o tempo que fosse necessário. E que ele estava vivo.  Eu cantava para ele, contava histórias e dizia: “Filho você vai viver o tempo que quiser”. Recebemos muito apoio da nossa família e amigos. Inclusive, eles foram fundamentais. Sem eles eu não teria conseguido sozinha.

No dia 09 de junho de 2015, no dia do aniversário do meu irmão, com 33 semanas de gestação, entrei em trabalho de parto. Samuel nasceu de parto normal e viveu 35 minutos em meu colo. Foram os minutos mais intensos da minha vida. Eu o beijei, abracei, cheirei e disse tudo que minha emoção permitiu. Entre os dizeres, além de falar do meu amor, eu disse que a cura que eu queria tanto para ele, talvez, fosse para mim. Alguns minutos antes dele morrer eu pedi para a médica levar ele para a incubadora, para que minha mãe e minha avó conhecesse o neto.

Foi uma das frases mais difíceis que eu disse na vida: Pode levar meu filho! E meu marido o levou junto com a pediatra. Eu sabia que era uma despedida.

Eu tenho a certidão de nascimento do meu filho e também tenho da morte no mesmo dia!

Viver tudo isso foi desafiador, difícil, extremamente dolorido, mas também foi uma experiência que me ensinou muito. Mudou a minha maneira de enxergar o mundo. Existe uma Iaçanä, antes do Samuel, e outra depois. Primeiramente eu não queria aceitar, eu neguei o que estava acontecendo. Fui em vários médicos para tentar ouvir opiniões diferentes. O que não aconteceu. Depois eu passei a aceitar o que estava vivendo e a lidar melhor com os meus sentimentos. E por fim eu agradeci por tudo que eu vivi, esta fase demorou quase um ano. Aconteceu depois que ele já tinha morrido. Mas para mim foi libertador quando eu consegui agradecer.

Confesso que nem eu sei de onde tiramos forças. Na verdade no meio da guerra o soldado não tem a dimensão do que está vivendo, ele só sabe que tem que lutar. Mas é incrível como ficamos mais fortes em situações como essa.

O luto é um processo que se inicia com o momento da ausência, e é re-significado quando este ente é reencontrado internamente. E ele precisa ser vivido. É que quando a gente para de querer fugir da dor ela vai embora mais rápido. A gente esquece que não temos nenhum controle sobre a vida, os acontecimentos e, principalmente, sobre as pessoas. A única certeza da vida é a incerteza.

Eu não amamentei o Samuel, não saí da maternidade com ele, nunca coloquei nenhuma roupinha nele. Não dei banho. Não vi seu sorriso. Não fiz um monte de coisas…Mas sabe o que eu fiz e o que ficou? O amor. O amor é tudo que eu tenho desta história!!!

Quando meu filho morreu eu perguntava todos os dias para o Universo: Por quê?⠀Por que comigo? Por que a morte? Porque ele era incompatível com a vida? Por que eu tinha que passar por isso? Por que tão pouco tempo?⠀

Eu digitava no google. Eu perguntava a minha terapeuta. Eu brigava com Deus.No meu processo: as perguntas foram se modificando: Por que não comigo? Para que? O que eu posso aprender?⠀

Mas como não encontrei respostas definitivas, criei as minhas próprias respostas e também outras perguntas.Inclusive, respostas que já mudaram também de acordo com os meus sentimentos e necessidades…Com as Iaçanãs que vão surgindo a cada morte e renascimento da minha vida.⠀

Por favor, não é uma romantização da perda, do luto, do sofrimento.⠀Estou dizendo mais sobre: deixar algumas questões em aberto, fazer sua própria resposta, ou melhor, chamar sua pergunta para sentar e conversar com ela!⠀

Quando o desconforto nasce, a insatisfação, o sofrimento, a raiva ou qualquer outro processo sentimos uma necessidade de se mover, mudar, responder, tomar uma decisão…mas, talvez, o convite seja para sentar, acolher, deixar sentir, permitir e viver nossos processos.

Hoje cinco anos depois do nascimento e morte do meu filho, sou mãe de duas meninas, Sophia (4 anos) e Yasmin (1 ano). Mas se me perguntar na rua quantos filhos eu tenho? Três, claro! Um mora longe dos seus olhos, mas perto dos meus, pois sua morada é dentro de mim.

E não tem um dia que eu não me lembre dele, que eu não imagino como seria se ele tivesse aqui. É uma cicatriz na alma que as vezes sangra.

Também sou uma estudiosa do luto, aluna da Fundação Elizabeth Kubler Ross Brasil e da comunicação não violenta. Com a Dra. Elisabeth sua obra e legado eu aprendi que “Não tenha medo de viver sua dor completamente e lembre-se que suas perdas são importantes”. São, são muito.

Na verdade, durante 14 anos trabalhei com Comunicação Empresarial. Mas minha jornada pessoal, a perda do Samuel, me fez pesquisar o poder da empatia e da compaixão e, assim, conheci a Comunicação Não-Violenta, de Marshall Rosenberg. E suas perguntas: O que está vivo em mim? Como eu possa tornar a vida mais maravilhosa? A Comunicação Não- Violenta mudou minha vida, minhas relações, meus paradigmas e, claro, meu trabalho. E deu sentido a minha necessidade humana compartilhada de significado. Há quatro anos me dedico a estudar e viver a cnv.  Para mim (Iaçanã) hoje não tem nada mais humano que refletir sobre a morte, a finitude da vida, luto…Eu amo tanto este tema, pois ele me conecta com minha humanidade e com a do outro, me conecta a minha natureza compassiva, ao entregar de coração. Além disso, com a cnv aprendi que basicamente estamos o tempo todo celebrando ou enlutando, pois estamos sempre cuidando de uma necessidade, em outras palavras, de algo que é importante para gente. E como diz o Dominic “O luto é uma celebração do avesso”. Complementado brilhantemente pelo Pedro Consorte “Enlutar é criar um tipo de celebração, pois é um momento de reconhecimento e conexão com algo que está vivo em nós”.

Samuel é o nome do meu filho. Ele viveu oito meses e trinta e cinco minutos! E eu honro todos os dias a vida dele e nossa história: vivendo intensamente e o amando! E só tem luto porque tem amor. É que o amor não morre com o corpo físico. O amor permanece…

Há alguns meses estou escrevendo um livro contando minha história e também realizando uma pesquisa com outras mulheres que já perderam seus filhos sobre a linguagem do luto. O título provisório é “Pare de dizer: – Meus sentimentos”. Além do projeto do livro, tenho um instagram em que falo sobre Comunicação Não Violenta o @missaogirafa.

Instagram: @missaogirafa e@o.espaco