Marielle Franco: recordar sua morte é lutar por justiça

No dia 14 de março de 2018, eu voltava para casa de trem, quando abri o Whatsapp e em todos os grupos uma única mensagem: a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados.

Eu trazia o cansaço no corpo de quem atravessa todos os dias a cidade, rodeada de outros, sentados no chão ou correndo entre um vagão e outro para vender bala a um real. Na tela do celular, um rosto semelhante ao nosso –cabelo, olhos, boca, cor– havia entrado para a triste estatística de um país onde há um genocídio em curso há mais de 400 anos.

Que a morte nos ronda, isso não é novidade. O Atlas da Violência 2020 mostra que, em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil. A cada duas horas uma mulher perdeu a vida , 68% eram negras. 

Mas a morte de Marielle trouxe um recado muito certeiro a uma ala da sociedade à qual me vejo parte. Nos últimos anos, atravessamos algumas pontes. Chegamos ao ensino superior, graças à luta incansável do movimento negro e demais movimentos sociais no Brasil, resultando em políticas das quais me beneficiei: cotas raciais, de escola pública e o Prouni (Programa Universidade para Todos).

Também aprendemos a contar nossas próprias histórias e a escrever leis. Ressignificamos os feminismos a partir de vivências pretas e periféricas e entendemos que sonhar novas geografias também era direito nosso, assim como a arte, a cultura e a diversão.

Mas nada continuava fácil. Aliás, nunca foi. No Rio de Janeiro de 2018, o cenário era bélico, com intervenção federal maquiada de auxílio na segurança pública. No cenário nacional, estávamos literalmente dentro de um golpe que havia derrubado a primeira presidenta do país. Dali a alguns meses, aconteceria as famigeradas eleições de 2018. Entre jogos políticos e fake news, um povo sem esperança.

Eu cheguei em casa atordoada. Não consegui dormir naquele dia 14. No outro, a minha tarefa no trabalho era postar nas redes sociais os vídeos, fotos e homenagens para Marielle. Era uma dor, mas também um abraço entender seu tamanho por todo o Brasil e também no mundo. No fim da tarde, fui para a Av. Paulista, em São Paulo, onde uma multidão se reuniu.

O ato daquela noite era muito mais que apenas uma manifestação. Era um funeral coletivo. Um choro e um abraço conjunto pela morte de alguém que representava um pouco do que a gente estava tentando ser.

Ao encontrar outras mulheres, a gente não dizia nada, só se abraçava. Havia um lamento profundo e sem adjetivos. Essa tristeza não foi só minha. Fiz uma pergunta nas minhas redes sociais essa semana, e algumas amigas autorizaram que eu compartilhasse com vocês os sentimentos que também as marcaram:

Estávamos hospedados no Rio Vermelho, Salvador (BA), para participar no Fórum Social Mundial. Um grupo imenso estava exausto esperando a janta. Uma pessoa da mesa do lado de fora começou a chorar muito sentida. Fui olhar no celular e li bem devagar em voz alta: ‘uma vereadora do Rio morreu. Uma tal de Marielle’. As pessoas da mesa que conheciam Marielle ficaram mal. As pessoas estavam chorando na rua, escoradas nas paredes, na mureta de retenção do mar. Eu não sabia quem era Marielle. Acordei no outro dia chorando. Eu não conhecia nada, mas no dia seguinte ela era uma mulher preta e lésbica, igual eu.” (Gisele Brito)

Lembro de estar em casa sozinha, abrir o Facebook e ler a notícia e começar a chorar. Lembro das paredes encolherem e eu sentir que estava sem esperança para o futuro. Na manifestação eu me senti menos só, com mais possibilidades de pensar alternativas. Senti muita vergonha por não conhecer o trabalho da Marielle antes dela ser assassinada, e de firmar o compromisso de conhecer as mulheres que estavam lutando enquanto vivas, enquanto produtoras de política e conhecimento.” (Cecília Garcia)

“Entrei num surto de depressão muito fundo, a ponto de ser segurada enquanto batia minha cabeça na parede gritando que queria morrer. Comecei a me tratar com antidepressivo. Era a junção de tudo que essa morte significa: uma mulher negra, uma mulher que ama outra mulher, uma mulher de esquerda, uma mulher periférica, uma mulher num cargo público.”  (preferiu não se identificar).

ato marielle franco
Ato na Avenida Paulista em homenagem a Marielle Franco/Renato Schincariol/AFP

MEMÓRIA COLETIVA

Me encontrar com as memórias dessas mulheres é um jeito de compreender e ressignificar a morte de Marielle, assim como somar forças contra aquilo que nos afeta, como o genocídio da população negra, a violência estatal contra nossos corpos e a desigualdade social. 

“Nesse cenário que vivemos, onde temos discursos de ódio e intolerância, o trabalho de memória é de extrema relevância, porque permite que esses grupos possam denunciar as violências que sofrem. A memória coletiva funciona como uma denúncia”, é o que explica Soraia Ansara, docente da USP e doutora em Psicologia Social.

Sendo as memórias coletivas as vivências que recordamos junto às outras pessoas, no momento que recordamos alguém como Marielle, reconhecemos o crime político e garantimos que sua trajetória não seja esquecida.

“Recordar isso potencializa a luta contra o genocídio. E a favor dos Direitos Humanos. Tomar as bandeiras que ela defendia — da população negra, periférica, das mulheres, da população LGBTQI+ — tudo isso é potencializado quando é recordado”, explica Soraia.

“Chegando em casa, dei uma olhada no celular, e a primeira imagem foi a de Marielle sorrindo e a notícia. Não consegui abrir a porta, fiquei parada, imobilizada, as luzes se apagaram. Lembrei de todas as mulheres que estão ou estavam em luta. Queria estar com elas. Chorei. Era um choro de medo e revolta. Naquele dia, não liguei a TV, me desconectei da internet e fiquei com o sorriso de Marielle por muito tempo no meu olhar, na cabeça.” (Carina Zacarias)

“Lembro que estava nos meus primeiros meses em Dublin, Irlanda, no 7º mês pra ser exata. Fiquei muito chocada e triste com a notícia. Lembro que fui tomar café com uma amiga e falamos sobre a importância de fortalecermos umas às outras, mesmo na distância, e do poder curativo da escuta” (Thaís Santana)

“Estava acompanhando a mesa mediada por Marielle, morava sozinha em Buenos Aires e fui tomar banho. Quando me conectei de novo, soube da notícia e me esvaziei.” (Ariane Aboboreira)

“Um sentimento de desesperança e a pergunta de como seria dali pra frente, quando calam a voz de alguém como Marielle. A semana e o mês seguinte foram muito angustiantes.” (Jaqueline Barreto)

Como disse Thaís Santana no relato acima, a escuta tem poder curativo. A memória também. Por isso, é tão importante falar dos nossos mortos e manter o legado daquilo que realizaram em vida presentes. Marielle não vive mais. Não fisicamente. Mas suas ideias e ideais estão agora impressos em leis, escolas, movimentos, nomes de ruas,  praças e o Instituto Marielle Franco reivindica também uma estátua para preservar seu legado.

O Instituto Marielle Franco lançou a campanha #MarçoporMarielleeAnderson para continuar cobrando justiça por suas mortes. Em 12 de março de 2019, aconteceu a prisão de Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, o primeiro como executor e o segundo como motorista do carro. A organização produziu um dossiê sobre os três anos de investigações em torno do assassinato, em uma linha do tempo contando os fatos e uma lista com 14 perguntas sobre o caso.

Rememorar a morte de Marielle é relembrar que esse crime não está congelado no passado. Ainda não temos uma resposta à pergunta ‘Quem mandou matar Marielle?’ e, por isso, ele está acontecendo aqui e agora.

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