300 mil mortes e um rastro de fome
Falar de morte constantemente não naturaliza nem diminui a dor e indignação frente a mais de 3 mil perdas em um único dia. Ou 300 mil óbitos em um ano de pandemia. O sentimento de tristeza atravessa nossa existência em cada conversa mediada pelas telas ou reportagens nas redes ou televisão.
Há uma frustração generalizada em toda a população, que após um ano esperava enxergar saídas para esse momento, não um afunilamento da tragédia. Embora a situação seja de calamidade em todo o mundo, aqui, a crise se intensificou em decorrência da uma política de morte (falamos de necropolítica aqui), má gestão e falta de um plano nacional que olhasse para toda a complexidade dos nossos territórios.
Afinal, quem é que pode fazer home office ou até mesmo lavar as mãos? Segundo o Unicef, 3 bilhões de pessoas (40% da população mundial) não têm acesso a água e sabão, fundamentais para se proteger do coronavírus.
No atual país da morte, há um grande número de pessoas pedindo socorro para continuar vivendo. A tragédia na saúde brasileira abriu chagas que já vinham se dilatando há anos, com a falta de direitos mínimos para a sobrevivência, como saúde, moradia e alimentação.
Há algumas semanas, o Governo editou duas MPs (medidas provisórias) que liberam o auxílio emergencial em 2021 para 45 milhões de pessoas. De R$600, o valor baixou drasticamente para R$ 250. O pagamento, porém, varia a partir da composição familiar.
Para as mulheres chefes do lar, a quantia será de R$ 375 e quem vive sozinho vai receber apenas R$ 150 por mês. Governadores de 16 estados apresentaram uma carta ao Congresso pedindo o aumento do auxílio emergencial para R$ 600 por mês.
A primeira etapa do benefício auxiliou 68,2 milhões de brasileiros, mas em setembro de 2020 já reduziu em média 13 milhões de pessoas. Agora, comparando com a primeira etapa de implementação do auxílio, o governo tirou o benefício de 24 milhões de pessoas.
Paola Carvalho, diretora de relações institucionais e internacionais da Rede Brasileira de Renda Básica, explica que isso significa que estados e municípios entraram em colapso, porque além das questões de saúde, terão que dar conta da assistência social da população.
“Isso não é suficiente para a subsistência de nenhuma família brasileira, especialmente em situação de pandemia, porque quando garantimos um auxílio emergencial exatamente para conseguir somas às ações de distanciamento social, de garantia de vida da população, nós não podemos oferecer um benefício muito aquém de uma cesta básica”, explica Paola.
A disputa política em torno do auxílio mostra um total desconhecimento do governo sobre a realidade da população brasileira. Na semana passada fui a um mercado aqui no bairro de Perus, periferia de SP, e uma cesta básica estava custando R$160, 1kg de carne moída R$30, um pacote de 5Kg de arroz não estava menos de R$22 e um botijão de gás nas principais capitais já passou de R$100. A Folha mostrou que no governo Bolsonaro a cesta básica subiu 33%.
“Os valores de R$150 ou R$250 não cobrem nem 1/4 do que seria uma cesta básica, fora as outras necessidades da população. Isso empurra a população para as ruas, nem que seja para pedir alimentação na porta do supermercado como temos visto no Brasil inteiro”, lembra Paola.
No ano passado, o auxílio de R$600 e também de R$1200 para mães chefes do lar garantiram a redução de indicadores de fome e extrema pobreza. Após décadas, o Brasil pode voltar a integrar o mapa mundial da fome.
São mais de 39 milhões de pessoas vivendo na miséria, 14 milhões em situação de extrema pobreza. O índice de desemprego fechou 2020 com taxa média de 13,5%, a maior da série do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), iniciada em 2012. São quase 14 milhões de pessoas desempregadas.
“Nesse novo formato de auxílio proposto pelo governo, que não permite abertura a novos cadastramentos e não garante o mínimo de R$600, nós não conseguiremos garantir condições dignas de distanciamento para a população brasileira”, aponta.
Ela explica que todos os países do mundo que enfrentaram a pandemia e hoje estão no processo de reabertura econômica, passaram por ações que visavam informar de forma precisa a população, sobre temas como vacinação, por exemplo. E ofereceram auxílio emergencial que garantisse aos mais pobres sobrevivência sem precisar ir para a rua.
“Esses países garantiram que os mais pobres tivessem direito ao distanciamento social, a proteger suas famílias e não serem levadas a tomar uma decisão entre sair para as ruas para tentar emprego ou alimentação e correr o risco de contrair o vírus, ou ficar em casa e morrer de fome”.
TEM GENTE COM FOME
A Coalizão Negra por Direitos junto a outras organizações criou a campanha Tem Gente com Fome, que visa angariar fundos para dar de comer a 222.895 famílias em todas as regiões do Brasil que foram mapeadas pelas organizações e redes que coordenam a ação. Para ajudar, entre em temgentecomfome.com.br.
“Tem gente com fome” é parte do poema do poeta pernambucano Solano Trindade, que nos deixou em 1974. “Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino, em algum lugar. Se tem gente com fome, dá de comer”, diz um trecho.
Os sites Nós, mulheres da periferia e o Periferia em Movimento listaram 29 campanhas e organizações das periferias de SP e também outras regiões do Brasil que estão doando alimentos, cestas básicas ou amrmitex. Quem tem fome, tem pressa. Ajude!