Faço tudo pelo meu filho

Arquivo Pessoal
Camila Appel

Arthur nasceu em 2009 com problemas de saúde.  Ficou 4 meses na UTI. Até os 20 dias de vida, fez 4 cirurgias para lidar com a enterocolite, uma inflamação no trato digestivo. Perdeu metade do intestino. O pai chegou a comprar um jazigo para o filho.

O início desse texto é assustador, mas a história é bonita. É a história de um pai que, como ele mesmo diz, faz tudo por seu filho. Esse é, inclusive, o nome das redes sociais que alimentam para falar abertamente sobre um tema delicado e presente para todos, especialmente para eles: o luto.

A família levou outro baque em 2013. Adriana, mãe de Arthur, sofreu um acidente de carro. Estava viajando sozinha e saiu da pista. “Ninguém sabe, ninguém viu e ninguém entendeu o porquê, mas ela saiu da pista e bateu em uma árvore”, diz Rodrigo Segantini, pai de Arthur.

O advogado e a empresária se conheceram pouco tempos antes, em uma churrascaria. A amiga dela era noiva do amigo dele. “Quando ela riu, o olhar e o sorriso me chamaram muita atenção” , relembra. 

Se apaixonaram, casaram, engravidaram. 

Um dia de 2013, Rodrigo recebeu o telefonema do gerente de um dos restaurantes de Adriana. Ele a aguardava para uma reunião e ligou para o celular da colega, atrasada. Um policial atendeu. 

Rodrigo chegou no hospital junto com a ambulância. “Na hora em que  vi ela saindo da ambulância, percebi que a coisa não estava boa. Dava para ver que ela não estava muito machucada, mas a coisa não estava boa. Foi um momento de absoluta solidão. Eu estava em uma cidade estranha, onde eu não conhecia ninguém, eu não tinha ninguém do meu lado”.

Adriana teve paralisia cerebral. Rodrigo define a isquemia como um curto-circuito no cérebro, sem cura. Passou um ano acamada. O marido não desistiu de uma comunicação. Atento na leitura de piscadas e do olhar.

“Eu tive a impressão de que ela tentava se comunicar, mas, olha só… imagina que você não consegue se mexer, a única coisa que você consegue fazer é piscar o olho esquerdo. Nem o direito você conseguia, aí você tem uma coceira no nariz. Como você faz para coçar o nariz? Como você faz para avisar alguém que você está com essa coceira no nariz? Você não aguenta mais ficar deitada na mesma posição, está te dando câimbra nas costas, como você avisa? O que eu percebia é que ela tentava se fazer entender e não era todo mundo que estava disposto a tentar. E ela se cansava muito com esse esforço”.

Os médicos disseram para o acompanhante não ser possível ter certeza de que ela estava consciente. Rodrigo achava que sim. E só via tristeza em seu olhar.

Ele se esforçava para ler seus sinais, entre as piscadas com um dos olhos. Conseguiu, em certo episódio, entender o local da dor da esposa. Avisou os médicos. O problema foi identificado e resolvido. A equipe de enfermagem ficou surpresa com a capacidade de Rodrigo em traduzir o que a paciente sentia. Ele a observava atentamente. Com a delicadeza de buscar nas expressões, respostas para as perguntas que fazia.  

Na época, Arthur tinha três anos. Não ia visitar a mãe e sentia a falta do pai.  Rodrigo passou a ficar mais tempo com o filho, mas ligava para o hospital todo dia.  De manhã e à tarde. Um ano depois, o médico começou a sugerir que talvez fosse uma boa ideia desligar os aparelhos.

“Nesse momento, eu já tinha passado por todas as fases do luto. Quando eu me dei conta de que ela poderia vir a óbito, eu percebi que eu já estava grato, eu não fiquei triste. Eu fiquei agradecido por ela ter sido a minha esposa, por ter me dado a chance de ser o pai do Arthur, agradecido por ela ter tentado ficar – ela tentou, não tem nem como falar que ela não tentou ficar”.

Rodrigo não sabe se desligaram os aparelhos, ou não. Ele não concordou, mas logo em seguida recebeu um telefonema com o comunicado do falecimento.

Essa experiência virou tema de palestras que ele dá Brasil afora. A principal mensagem que deseja passar é inspirada na relação entre paciente e o profissional de saúde. Fez um mestrado em psicologia, especificamente na área de bioética, que estuda os dilemas dessa relação.  

“Ninguém enxerga a morte como resultado. A morte é possível e não necessariamente é negativa. Ou você sacrifica tudo que for necessário para garantir a vida do paciente, ou entrega para o paliativo para fazer os últimos desejos. Não há prática terapêutica de cuidado como tratamento”.

Adriana começou a ficar muito mal, caminhando para o fim. Rodrigo chamou o filho de canto. Disse: “Olha, já faz tempo que a mamãe está no hospital, eu acho que ela não vai conseguir mais voltar para casa. Eu acho que é melhor ela ir ficar com o Papai do céu, você não acha? É melhor do que ficar no hospital, não é?”. O menino concordou. 

Foi a forma que encontrou de levar conforto ao filho e a si mesmo.

“Quando a Adriana faleceu, ele estava meio que esperando que ela fosse embora, eu, como lhe disse, fiquei muito triste, muito triste, mas já estava grato. Não fiquei arrependido de nada, não fiquei questionando.”

Hoje, Rodrigo reflete sobre o período em que  Adriana ficou internada e  gostaria que menos pessoas ao seu redor estivessem cobrando “saúde”. Os questionamentos dos amigos e familiares, sobre ela não estar melhorando, soavam como uma cobrança cruel. Ele preferia uma abordagem mais empática. Por exemplo, perguntar se ele está bem ou se precisa de alguma coisa.

Em suas redes sociais, Rodrigo passou a receber mensagens de pessoas em processo de luto. Entre comentários e mensagens privadas, chegam a 100 por dia.

Na escola, um dos amigos  quis apelidar o menino de “Arthur sem mãe”, em tom pejorativo. Avisada do ocorrido, mãe desse colega ficou, obviamente, constrangida. Isso demonstra o total despreparo de crianças, e seus pais, em falar sobre morte e o luto. O colega de Arthur não sabe lidar com o fato do amigo ter perdido a mãe. Bom que haja canais como esse para nos ensinar.