A última escolha de Bruno Covas
Uma das últimas escolhas de Bruno Covas foi a de não se submeter a tratamentos que levassem ao prolongamento artificial de sua vida. Para isso, ele fez uma manifestação de vontade, formalmente chamada de testamento vital, e muitas vezes registradas como tal, (conheça aqui) e recebeu tratamento paliativo. Teve conforto na espera de uma morte natural, também chamada de ortotanásia.
Orto significa correto e thanatos, morte. Ela se opõe à distanásia, que é o prolongamento da vida com a ajuda de aparelhos respiratórios ou procedimentos invasivos como a entubação. Apesar de serem protocolo em diversas UTIs pelo país, são uma opção, uma escolha que o paciente e seus familiares têm o direito de tomar. Muitas pessoas não sabem disso e são levadas à uma distanásia sem compreenderem que se trata de uma escolha.
Do tormento à paz: a morte do meu sogro
Recebemos o texto abaixo abaixo do médico paliativista André Filipe Junqueira dos Santos, ex-presidente de Academia Nacional de Cuidados Paliativos.
André é um antigo colaborador do blog. Nos conhecemos desde o início dessa jornada. Com quem aprendi muito e pude tirar dúvidas sobre essa área da medicina tão importante e cheia de informações propagadas de forma confusa, justamente por abordar um tema delicado e rodeado de tabus.
Agradecemos o envio do texto.
Autonomia e a abordagem dos cuidados paliativos
Por André Junqueira dos Santos
A morte de um ente querido é um evento que todos iremos vivenciar e é parte integrante da formação da nossa personalidade. Porém, um fenômeno da sociedade é a morte de uma pessoa que não temos um relacionamento próximo, mas por ser pública, a sua finitude também pode causar grande comoção, similar a perda de um ente querido. Os relatos diários dos boletins médicos, depoimentos de amigos e as homenagens póstumas geram grande impacto e também questionamentos sobre as condições que o famoso morreu.
Um perfil de morte que tem impacto especial é a morte por câncer, ainda mais em pessoas jovens, como recentemente do prefeito de São Paulo, Bruno Covas. O tratamento oncológico muitas vezes é descrito com termos militares (arsenal terapêutico, batalha) quando a morte ocorre, mesmo em uma condição que a doença não permitiria uma recuperação, frequentemente se diz que “perdeu a luta contra o câncer”. Essa abordagem militar no tratamento oncológico, já abordado em coluna neste blog, tem um impacto negativo nos pacientes e pode expô-los a tratamentos excessivos, com prejuízo na sua qualidade de vida e a um sofrimento evitável na fase final da vida.
Assim, a morte passa a ser entendida como falha da medicina e não como parte integrante da vida. A visão da morte como um erro da medicina, um insucesso de um tratamento, gera uma expectativa inalcançável, e assim, ansiedade, frustração e cobranças por parte da população e dos próprios médicos. Esses conceitos reduzem a medicina ao objetivo único de curar a doença. Reduz-se ou mesmo ignoram-se outros objetivos não menos nobres e, sem dúvida, mais importantes, como o de cuidar do sofrimento do ser humano doente. Qualquer médico, por menor tempo de exercício da profissão, consegue depreender que na realidade é a menor parte dos doentes que são curados.
Diante desse impacto, é fundamental a abordagem dos cuidados paliativos. Porém, precisamos entender como ele deve ser oferecido e a autonomia do paciente nessa decisão. Os cuidados paliativos modernos surgiram na Inglaterra na década de 1960, na figura da médica Cicely Saunder, que trouxe a visão de um cuidado de saúde integral para pacientes em situação de fim de vida. No Brasil, os primeiros profissionais de saúde que trouxeram essa visão começaram seu trabalho na década de 1980. No final do século 20, existia uma discussão sobre quando oferecer Cuidados Paliativos, diante de grandes avanços da medicina. Em 1989, a OMS (Organização Mundial da Saúde) definiu pela primeira vez para 90 países e em 15 idiomas o conceito e os princípios de cuidados paliativos, reconhecendo-os e recomendando-os. Tal definição foi inicialmente voltada para os portadores de câncer, preconizando os cuidados paliativos após esgotados todos os recursos para tratamento curativo da doença. O problema é que diante de novos tratamentos e melhoria das condições de saúde, esse momento de suspensão do tratamento não pode ser considerado um ponto claro, podendo ser mantido até o momento da morte em si, o que associou erroneamente a visão de Cuidados Paliativos como “quando há mais nada o que se fazer”. Diante de críticas pela visão limitante, em 2002, o conceito foi revisto e ampliado, incluindo a assistência a outras doenças como AIDS, doenças cardíacas, pulmonares, renais, doenças degenerativas e doenças neurológicas. O conceito atual da OMS amplia o horizonte de ação dos cuidados paliativos, podendo ser adaptado às realidades locais, aos recursos disponíveis e ao perfil epidemiológico dos grupos a serem atendidos:
“Cuidado paliativo é uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual”. (OMS 2002, atualizado em 2017)
Dessa forma, os cuidados paliativos devem ser oferecidos em conjunto com o tratamento modificado da doença. Cuidados paliativos não competem com tratamentos de doença. Tampouco estão reservados para o final da vida. Podem e devem ser oferecidos de forma integrada aos tratamentos, conferindo uma camada a mais de suporte e proteção à jornada de pacientes e familiares por meio do curso de doenças graves. No caso do câncer, a Sociedade de Oncologia Clínica dos Estados Unidos recomenda desde de 2017 que pacientes hospitalizados e ambulatoriais com câncer avançado devem receber cuidados paliativos especializados, precocemente no curso da doença, paralelo ao tratamento ativo. Cabe à equipe médica que atende o paciente oferecer essa proposta e alinhar então com a autonomia do paciente, expressada através de seus valores e desejos, buscando-se uma decisão compartilhada. A tomada de decisão conjunta é um componente-chave dos cuidados de saúde centrados no paciente. É um processo no qual médicos e pacientes trabalham juntos para tomar decisões e selecionar testes, tratamentos e planos de cuidados com base em evidências clínicas que equilibram os riscos e os resultados esperados com as preferências e valores do paciente.
Em muitas situações, não existe uma única decisão “certa” sobre cuidados de saúde, porque as opções sobre tratamento, exames médicos e problemas de saúde têm prós e contras. A tomada de decisão compartilhada é especialmente importante nesses tipos de situações:
- quando houver mais de uma opção razoável, como para triagem ou uma decisão de tratamento
- quando nenhuma opção tem uma vantagem clara
- quando os possíveis benefícios e malefícios de cada opção afeta os pacientes de maneira diferente
Nessa visão, cabe à equipe médica oferecer as melhores opções terapêuticas e apoiar o paciente na sua tomada de decisão, não devendo fazer questionamentos de âmbito pessoal. O paciente tem direito de priorizar medidas para tentar prolongar ao máximo sua condição de vida, como também limitar o tratamento, buscando priorizar a qualidade do tempo que tem pela frente.
No caso de Bruno Covas, houve uma grande comoção sobre sua condição de saúde nos últimos dias e a descrição dos tratamentos realizados. O mesmo demonstrou até poucos dias antes de sua morte plena consciência e teve a oportunidade de manifestar para sua equipe que, diante de situação irreversível, não gostaria de receber tratamentos para prolongar o seu tempo de vida com o uso do suporte artificial.. Essa mesma visão foi manifestada pelo seu avô, Mario Covas. Em 1999, o então governador em exercício sancionou no Estado de São Paulo a Lei estadual 10.241 , conhecida como Lei Mário Covas, que garante ao paciente o direito de “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”. O avó de Bruno Covas, em 2001, diante do quadro do câncer de bexiga em fase avançada recusou tratamentos de suporte artificial de vida para prolongar o seu tempo de vida.
A discussão desses valores não cabe somente a profissionais de saúde, mesmo especialistas em cuidados paliativos. Promover a autonomia do paciente, oferecer os melhores tratamentos baseados no conhecimento científico alinhado com conceitos éticos deve ser base fundamental de uma sociedade justa e mais humana.
André Filipe Junqueira dos Santos, médico geriatria e paliativista
Ex-presidente de Academia Nacional de Cuidados Paliativos (2019-2020)