Crônica do Fim do Mundo

Excelente crônica do fim do mundo enviada por nossa colaboradora Cynthia Pereira de Araújo. Ela é advogada da União e pesquisou sobre pacientes com câncer avançado em seu Doutorado em Direito. Publicou  a tese Existe direito à esperança?.

Crônica fo Fim do Mundo

Por Cynthia Pereira de Araújo

Tenho me preparado para isso há algum tempo.

Na verdade, já não consigo mais imaginar como seria de outra forma.

Estou acostumado a esse tratamento misericordioso, essa atenção absoluta. Com tudo aquilo que nunca tive antes.

Queria que isso durasse mais tempo. Mas não dá para ter o melhor de todos os mundos.

-Vai querer carne ou frango?

Essa pergunta elementar e alimentar sempre me tira dos meus devaneios. Todas as vezes, penso em ser honesto e responder “tanto faz, não vou comer nenhum dos dois”. Mas me lembro que fui orientado a não divulgar tão abertamente esse segredinho.

Pego o livro que está na minha cabeceira desde domingo. Um suspense. Só leio suspenses. Antigamente, achava que lia para passar o tempo. Hoje, percebo que poucas coisas me fazem tão bem como ler. Sair totalmente de uma realidade para entrar em outra, em que a ansiedade que habita o meu corpo ganha um conteúdo palpável.

Mas hoje não estou conseguindo substituir o incerto pelo certo. Fico voltando ao meu mundo, a essa cama, esse quarto. É como se algo fosse acontecer.

O que, afinal, eu sei, é uma bobagem. É como quando alguém morre em um acidente de carro e um parente afirma que teve um pressentimento. Se algo acontece, então era o pressentimento. Mas na maioria das vezes não acontece nada mesmo.

Estou assim desde ontem. A psicóloga disse que pode ser pela diminuição do número de visitas. Não sei. Gosto desse tratamento atencioso, mas também não gosto do tumulto. Muito menos de me sentir tão vulnerável, feio, despenteado.

Daqui a pouco, Ana vai chegar com meu lanche de hoje. Ela sempre me surpreende com algo de que eu gosto muito. Essa é uma parte boa. Não tenho mais restrição alimentar, ninguém liga se eu engordar, já não tenho mais roupa em que caber. A parte ruim, claro, é que tudo que eu sempre gostei perdeu um pouco da graça. Aquela graça que só existe nas coisas que não podemos fazer a qualquer hora, o tempo todo.

Às vezes ela me traz flores. Acha que isso pode alegrar o meu dia. Eu não entendo muito bem esse pensamento, já que nunca gostei muito de flores. Mas não falo nada, o que até me surpreende, porque, ultimamente, tenho falado tudo que quero. Perdi aquele filtro que temos para conviver em sociedade. Acredito que seja uma obrigação do mundo ouvir o que eu quero dizer. Tem dado certo. Ninguém me repreende.

Ela está um pouco atrasada. Chega sempre às três, no máximo três e cinco. Nunca foi pontual antes, outra vantagem destes tempos. Mas constatar esse lado bom me faz sentir o incômodo da demora de hoje.

Não que eu esteja com fome. Mas isso me desconcentra, não consigo ler duas páginas sem verificar o relógio novamente. Então desisto.

Ligo a televisão. Não gosto de assistir a nada que eu não possa terminar hoje. Filmes, documentários. Séries, apenas as curtas e com todos os episódios disponíveis. Novelas nem pensar. Passo por alguns canais, nenhum me agrada. Três e vinte.

Vista pela última vez às duas e quarenta. Quarenta minutos atrás. Penso em ligar, mas não gosto de demonstrar que estou esperando. Vou aguardar mais um pouco.

A psicóloga está certa. As visitas diminuíram. Mas eu entendo. Nunca gostei de hospital e, sempre que ia a um, tinha um problema em seguida. Alergia, resfriado, até amigdalite. Entendo as pessoas, porque eu era uma delas.

E, de todo modo, elas também não sabem que são suas últimas oportunidades de me encontrar. Bem, saber até sabem, mas fingem que não. Eu também finjo.

É melhor assim. Tive duas experiências ruins com a verdade exclamada. Na primeira, reagiram com raiva, porque “eu era um desistente”. Ora, eu não desisti de nada, nem tenho do que desistir. Na segunda, minha resiliência foi tratada com tanto regozijo, que não houve um mísero olhar de compadecimento.

Não é que eu queira que tenham pena de mim. Mas também não aceito ser tratado sem o heroísmo que me é inerente ao lidar com essa situação.

Três e meia. Escuto passos no corredor, mas na verdade basta que eu preste atenção para escutá-los. As pessoas vão e vêm o tempo todo neste horário. Logo entrará alguém para medir alguma coisa que não vai fazer a menor diferença, mas que medem assim mesmo.

Vou chamar alguém para pedir uma água. Não esperava precisar pedir uma mísera água, mas as coisas são como são.

– O senhor não almoçou ainda?

Ah Ana. Eu não acredito que você ainda não está aqui e essa gororoba continua empesteando o recinto.

– Estou sem fome. Você pode me trazer uma água?

– O senhor sabe que tem que comer…

Ah, não sei. Mas não sei mesmo. Aliás, até desconfio que melhor seria não comer. Vai saber de que se alimenta essa coisa que cresce dentro de mim.

Quase quatro horas. Não aguento mais.

– Olá, querida. Estou ligando apenas para saber se você vem hoje.

Não.

– Ana, se você estiver muito ocupada, não precisa vir.

Não.

– Oi Ana, tudo bem? Cansou deste velho rabugento?

Batem na porta. Ora, essa é novidade. Ninguém tem privacidade neste lugar. Pessoas que nunca vi entram e saem, não me deixam sequer escolher o horário do banho. Outro dia, fiquei muito satisfeito com uma troca de fralda. Nunca mais vi quem realizou o belíssimo trabalho.

– Estou vestido, pode entrar!

– Olá!

– Ora, Ana. Desde quando você bate?

Ana não tem nada nas mãos.

– Não tinha certeza de que você ainda estivesse aqui.

– Onde mais estaria?

– Você ainda não soube?

– Não sei o quê, mas definitivamente não.

– Você vai para casa!

O engano é tão óbvio, que prefiro perguntar o que realmente me aflige.

– Você chegou mais tarde hoje. E não quis me trazer um agrado hein…

Sorrio para não parecer que me importo.

– Bem, não achei que seria necessário, já que você…

Interrompo, porque a ordem das coisas não está do meu agrado.

– Que horas são?

– Quatro e cinco, eles me disseram que…

– Ah sim, acho que vou descansar um pouco então, se você não se incomodar.

Quero deixar bem claro que não estou disponível a qualquer momento apenas porque estou aqui.

– Acho que você não entendeu… você vai ter alta.

Bem, provavelmente quem não está entendendo é você. Meu acordo com este lugar foi bem claro. A alta era daqui para cima. Ou para baixo, dependendo do resultado da avaliação divina.

– Você certamente está equivocada, querida.

Ênfase no querida.

Ela me olha estupefata. Eu continuo, inabalado.

– Você sabe muito bem que só sairei daqui quando for a hora de…

Percebo que não consigo achar as palavras certas.

– Quando morrer.

Também não precisava ser tão dura.

– Acontece que você não vai mais morrer por enquanto e terá que ir para casa. Sua condição é estável e não sabemos quanto tempo ficará assim. Quem sabe você não ganha uns anos!

Anos… Ela só pode estar maluca. Nunca houve “anos”. Sempre foram “semanas”, no máximo “meses”. E de todo modo, quem disse que quero essa prorrogação? Aí é que as visitas não apareceriam mais mesmo.

– Você não deve ter entendido bem…

– Está certo, vou chamar alguém para conversar com você.

Ela não me dá chance de dizer que não. Que não quero que ninguém venha me dizer que preciso voltar ao ostracismo de quem está perto do fim, mas não o suficiente para ser adulado. Que não foi para isso que me preparei.

Estou pronto para a passagem em um quarto com a música que eu escolhi, cercado de pessoas que gostam de mim – ainda deve haver algumas – e aquela aura de paz que todos dizem fazer parte desse momento. Isso é bem diferente de voltar a me preocupar com a conta de telefone ou do gás, muito menos com quem garantirá minha higiene diária.

Era só o que me faltava. Não bastasse me resignar com o meu destino, ter que pensar em como sobreviver até ele se impor.

Ana volta com um médico. Ela está feliz, eu posso sentir. Não entende a minha confusão.

– Então quer dizer que o senhor não sabia que pode ir para casa! Veja que coisa maravilhosa!

Maravilhosa para quem? é o que eu gostaria de perguntar.

– Seus exames estão controlados e não há motivo para o mantermos aqui. O ambiente hospitalar aumenta o risco de infecção e…

Não consigo continuar ouvindo. Só pode ser um pesadelo. Preciso voltar a viver? Como se nada houvesse acontecido? Depois de tudo isso? Depois de aceitar que o fim estava logo ali, preciso aceitar que talvez ele esteja um pouco mais à frente? Sinto-me desesperado. Acho que não consigo respirar. O lugar parece ter esquentado subitamente. Ana continua alegre. Não vou suportar, acho que estou prestes a desmaiar.

E desmaio. Não sei quanto tempo fico desacordado, nem o que acontece enquanto isso. Mas, ao acordar, recebo a (in)feliz notícia de que não poderei mais ir para casa.

– Até amanhã, Ana… se puder chegar às três.

Volto ao meu livro, triunfante.

 

setembro de 2019