Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada
Infelizmente, a política mais atual do Brasil continua sendo a política da morte. O alvo? Corpos pretos, periféricos e favelados.
Há tempos não consigo nem processar os tantos lutos que nos atravessam, pois logo vem mais um, e outro e outro. Não que isso seja novo. Sabemos que andar na rua e correr o risco de morrer não vem de hoje.
Mas eu sinto que há uma crueldade sem disfarce que faz questão de sublinhar a que veio. Não consigo escrever sobre Kathlen de Oliveira Romeu sem me imaginar ou imaginar outras mulheres iguais a mim.
Kathlen tinha apenas 24 anos de idade. Era designer de interiores e modelo. Estava grávida de 14 semanas e suas postagens nas redes sociais mostram uma mulher feliz na construção de uma família preta, à espera de sua primeira criança. Cheia de planos, e vida. Literalmente, carregando uma vida no ventre.
Caminhava ao encontro de sua tia e foi assassinada em uma terça-feira à luz do dia na Comunidade do Lins, no Rio de Janeiro. Não, não dá pra ser feliz e caminhar tranquilamente na favela onde você nasceu.
Sua morte é um retrato cruel e doloroso do que significa ser uma mulher negra no Brasil hoje. Demorei muito para escrever esse texto. Faz um mês que narrei sobre a chacina de Jacarezinho. Me senti num interminável déjà-vu, repetindo as mesmas palavras sobre como o racismo mata pessoas que vêm de onde eu venho, como a necropolítica rege o cotidiano de favelas e periferias.
Já repararam como as balas ditas “perdidas” sempre encontram um alvo? Desde 2017, 15 gestantes foram baleadas e oito morreram no Rio de Janeiro, apontam dados da ONG Fogo Cruzado.
Isso se chama racismo estrutural e integra as estratégias de genocídio em curso da população negra. De novo: necropolítica, política de morte desenhada pelo Estado, onde ele escolhe quem vai viver e quem pode ser descartável. Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada.
Não há “meus sentimentos” capaz de exprimir a dor e a fúria de ver mais um corpo negro tombando. Não há cartilha, empatia capaz de abraçar a dor, a palavra ainda não dá conta da barbárie. A morte chegou antes da vida, matando não só a mãe, mas a possibilidade de futuro de uma família preta que se constituía.
No período da escravidão, as mulheres negras não podiam viver a maternidade. Elas eram separadas de seus filhos. Elas não podiam ter uma família. Para uma mulher negra, a possibilidade de se relacionar afetivamente e viver sua maternidade é uma forma de existência. É o mais alto da resistência.
Por isso, hoje, eu não tenho muito o que dizer. Não aguento mais me repetir.