Um ipê branco para meu pai
Em 21 de agosto de 2019, o ator Carmo Dalla Vecchia se tornou pai. É o mesmo dia em que ele nasceu, 49 anos antes. Reconheceu nos olhos daquela criança, sua ancestralidade. E com ela, toda carga de uma história cheia de pontos em nó. Há gratidão biológica? Ele se questiona.
É uma história de amor e ódio, incompreensão e frieza. Mas repleta de raízes que bifurcam como um mapa debaixo da terra. Raízes tão profundas quanto as do ipê branco que hoje floresce com as cinzas do homem que o gerou. Carmo decidiu caminhar por esse mapa emocional, passando por quatro gerações. Seu avô, seu pai e agora ele mesmo, pai também. Utilizou a filosofia budista de Nitiren Daishonin como bússola.
Ele descreve essa investigação no relato que nos enviou, abaixo. Sentiu o ímpeto de escrever porque precisava criar um entendimento da trajetória dessa relação com seu pai Osmar.
“Quando alguém falece, existe um ponto final na existência mundana. Eu senti necessidade de entender como ficou a vida dele em mim, no meu filho, no meu mundo. Precisava pintar esse quadro do meu amor por ele. Por que sei que isso se relaciona comigo e com tudo o que sempre estará à minha volta. É como a frase do José Ortega y Gasset: ‘Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim’.
Três potentes figuras sobrevoam esse depoimento: um abraço inerte cheio de alma, quando Osmar, afetado por uma isquemia, colocava os braços ao redor do filho, inertes, para ser levantado da cadeira de rodas. Uma assinatura em formato de barco, estampada na camiseta com cheiro de pai. E um ipê branco, com as cinzas que agora floresce em seu jardim. São os ciclos da vida, a beleza das relações e a expressão da escrita como força de identidade e emoção.
Um ipê branco para meu pai
Por Carmo Dalla Vecchia
Meu nome é Carmo Dalla Vechia sou filho de Flides Osmar Dalla Vechia e Marlene Maria Dalla Vechia.
Recebi meu Gohonzon* no dia 21 de agosto de 2000. Nasci no dia 21 de agosto de 1970. Fui pai no dia 21 de agosto de 2019.
Quando meu filho nasceu todos choraram e eu não, me perguntavam antes dele nascer: “Será que você vai chorar quando ele nascer”? E eu dizia: “Que coisa chata! Já sou obrigado a me emocionar nas novelas e vocês vão me cobrar isso na vida real também? Não sei se vou chorar, acho que não”. Depois de uns três dias que ele nasceu eu peguei meu filho no colo e ele mexia a boca do mesmo jeito que meu pai. Me vi tendo a chance de ninar e acarinhar meu pai através do meu filho. E aí eu chorei.
Eu vim do Rio Grande do Sul, fui morar no Rio de janeiro no ano de 1993 para tentar ser ator e durante muitos anos eu não gostava do meu pai.
Quando ainda morava com eles em Santa Maria, eu lembro de ter muita mágoa do meu pai, lembro de ter tido ódio, raiva, ira, tive muita vontade em alguns momentos que ele fosse infeliz, que pagasse. Tive nojo dele, tive nojo do cheiro dele e queria que ele não estivesse aqui.
Da nossa relação quando eu era criança, eu lembro de uma vez quando eu tinha uns 4 anos e ele girou meu peão de brinquedo numa mesa, e me recordo de ter achado aquilo muito legal e isso foi o ápice da nossa proximidade. Lembro dele tomando uísque em casa, lembro de quando minha mãe dizia: “Se eu soubesse quem inventou o álcool , eu matava”. Meu pai era alcoólatra e minha família sofria os efeitos de se ter um pai de família alcoólatra e uma mãe que passava por períodos graves e longos de depressão. Eu, sinceramente, não saberia dizer o que era pior, se a depressão dela ou o alcoolismo dele. Acho que como minha mãe era muito mais presente, a depressão dela ardia mais. Minha mãe alguns anos atrás me disse: “Seu pai quando você era criança te olhava e dizia: “Esse menino é estranho”. E eu perguntei: “Mas quantos anos eu tinha”?, e ela me disse: “Uns cinco”.
Me tornei budista em dezembro de 1997. Ou seja, pratico o budismo de Nitiren Daishonin há quase 23 anos.
No início da prática, ouvi uma dirigente falar que fez 10 horas de Daimoku** para amar seu pai e achei bonito isso. No Gosho Diálogo Entre Um Venerável e Um Homem Não Iluminado*** está escrito: “Como desejo proporcionar aos meus pais uma vida melhor na próxima existência e saldar a dívida de gratidão que tenho para com minha nação, estou disposto a dar a vida tão somente porque reconheço o muito que devo a eles”.
Acho que a curva que fiz na história da minha relação com meu pai foi uma das maiores conquistas que poderei ter nessa vida e sou profundamente grato ao meu apresentador, aos meus Responsáveis, a Soka Gakkai e principalmente ao meu mestre Daisaku Ikeda pois sem ele eu jamais teria amado o homem que me deu a vida e eu teria caído num inferno de incessantes sofrimentos.
Comecei com uma prática bem racional nesse sentido, pensava: não posso odiar meu pai. A princípio entendi que se eu sentia ódio, esse sentimento era meu e se era eu quem estava sentindo isso… se era eu quem queria ser feliz, era eu quem tinha que resolver essa situação. Entender isso já era um grande passo vindo do Daimoku.
Eu tinha que resolver isso o quanto antes. Mas nosso pensamento tacanho nos habitua com esses carmas familiares que são realmente difíceis de serem transformados, e ficamos nos alimentando com frases do tipo: “Ele veio antes, foi ele quem causou isso tudo e eu apenas sou a consequência desse desafeto que era dele, causado por maus tratos que ele teve com o pai dele”. Só para vocês entenderem melhor, conta a história da nossa família que meu avô Vittorio era osso duro de roer. Meu pai foi muito mal tratado pelo pai dele. Conta a história que ele, tendo acabado de passar por uma meningite, foi colocado para trabalhar no campo ainda muito doente. Mas a verdade é que se a dor é sua, se é no seu peito que dói e que incomoda a ira, então resolva e não fique dando beijos na boca do carma. Tem um ditado mineiro que eu gosto muito: “Sua alma, sua palma”. É quase uma versão mineira da Lei de causa e Efeito.
Ao mesmo tempo, quando pensava que deveria ter gratidão pelo meu pai, me perguntava: “Mas que espécie de gratidão é essa? Gratidão biológica? Isso existe? Difícil entender que se nascemos sobre determinada circunstância, são essas exatas circunstâncias que vão nos dar a chance de evoluir nos exatos pontos em que precisamos nos desenvolver. E aí começa a chance de revolucionarmos a nossa vida e a do outro.
Mas foi a minha dedicação na organização, foi o meu estudo do budismo e muito Daimoku que aceleraram a transformação do meu carma e que fizeram com que eu tivesse a chance de entender tudo isso com o olhar do Buda.
Um dia numa das minhas visitas ao Rio Grande do Sul, tive a chance de almoçar num restaurante com meu pai, só nós dois e pensei. Chegou a hora! É agora! Ou eu sou um fraco? Preciso tocar esse homem. Eu sabia que se eu curasse o pai, eu curaria o filho também. Era a chance que eu tinha de recomeço. Não existe budista derrotado. Naquele momento tomei coragem e resolvi abrir meu coração com meu pai e perguntar simplesmente: “O que houve? Eu tava vendo o álbum nosso de família e não tem nenhuma foto do senhor sorrindo, por que”? Ai, que difícil abrir o peito. Parece simples mas não tinha intimidade nenhuma com aquele homem. Naquele momento acho que ele estranhou muito e respondeu qualquer coisa, responsabilizando minha mãe ou seja, eu falava A e ele respondia B, mas quer saber? A partir daquele dia tudo mudou. Ele não se tornaria o pai que talvez eu esperasse que ele tivesse sido, mas mesmo assim ele era um homem com seus defeitos com suas dúvidas, com seus medos, que se viu tocado num lugar diferente. Eu me tornei outra pessoa a partir do momento que eu quebrei o ciclo da dor, e consequentemente ele também.
A partir daquele dia comecei a receber abraços quando o encontrava. Isso nunca tinha acontecido. Houve vezes em que ele demonstrava tristeza por eu estar indo embora. Cheguei a ouvir, eu te amo, ou será que eu imaginei isso? Continuamos sem ter papos animados por telefone e falávamos poucas vezes, não tínhamos um histórico de abraços e histórias juntos, mas a relação tinha mudado. Às vezes, nas poucas visitas que fazia, eu resolvia gravar suas conversas com meu celular sem ele saber, pensava que o dia que ele tivesse que ir embora, eu iria gostar de ter uma lembrança dele. Numa dessas gravações, ele me falou sobre a morte do pai dele. Descobri isso há poucos dias escutando a gravação para escrever esse relato.
Na gravação ele fala: “De repente ficou doente e veio para Carazinho. Quando ele me cumprimentou, que eu vim do banco e ele quis me cumprimentar e não levantou da cadeira, eu senti que ele estava morrendo. Foi uma coisa assim muito, muito triste, viu… O Vittorio. Ele foi pro hospital e não saiu mais. Na hora que ele morreu, ele fez assim para mim. Ah! E se foi. Eu vi que ele estava morrendo, os médicos tinham me dito. Não tinha solução. E a Dona Alma estava debruçada na janela do hospital olhando para fora. Daí eu disse pra mãe: “Mãe, o pai morreu agora, a Sra. não deve chorar porque a Sra. sabia que isso iria acontecer. A mãe nunca chorou. Porque quem ama não chora. Ama! Vai chorar para que? A morte é uma coisa muito natural, né.”
Com o passar dos anos, seu histórico com o álcool não mudou e num determinado momento em casa, foram obrigados a serem mais rigorosos com ele. Bastavam poucos goles e ele caia no chão, se machucava, se urinava, caia da cama. Ficaram com medo dele se machucar sério. O clima era sempre muito tenso com pai alcoólatra e mãe nervosa como já falei. Ele acabou sendo proibido de beber e nesse momento veio o Alzheimer.
Meu pai estava e não estava consciente dessa perda imensa e trágica em si mesmo, perda de si mesmo. Seu rosto mostrava uma expressão de infinita tristeza e resignação. Ele olhava para minha mãe e dizia: Marlene, vamos embora pra casa, e ele estava em casa. Meu pai, infelizmente, foi um homem sem grandes buscas nos amigos, nos filmes, nos livros, na conversa. Acho que o carma da depressão era familiar. Acho que foi a tristeza que o adoeceu. Acho que só depois que ele foi embora eu entendi que, muito possivelmente, a tristeza do meu pai possa ter vindo da história dele com o pai dele. Isso nunca havia me passado pela cabeça antes.
Umas três semanas antes de meu pai falecer, eu fui à Santa Maria. Que bom que eu pude cuidar dele. Ele teve uma isquemia que paralisou metade do seu corpo além do Alzheimer. Ele me olhou no hospital e minha mãe nervosa e trágica perguntou: “Quem é esse?”. Ele me olhou e disse o nome de um dos irmãos dele.
Nesses dias em Santa Maria, para eu dar uma folga às minhas irmãs nas trocas de enfermeiros em casa, coube a mim colocar meu pai na cadeira de rodas para ele poder ir ao banheiro, trocar as fraldas dele, sendo que eu nunca sequer havia visto meu pai nu na minha vida toda. Toda vez que eu o colocava na cadeira, precisava colocar o braço inerte ao redor do meu pescoço e pedir que ele me desse um abraço com o outro. Foram os abraços mais bonitos e mais importantes que dei nele, os mais próximos, os que mais ele poderia confiar em mim e eu dei todos os que eu podia ter dado. Comprei uma televisão para seu quarto, um colchão para ele não se machucar e uma cadeira nova. Na troca de fraldas houveram momentos constrangedores e engraçados, pela falta de intimidade. Eu discutindo com minha mãe o jeito certo de arrumar o peru dele na fralda e ele reclamando: “agora já virou bagunça, né?”. Quando sai de lá, dei um beijo rápido em sua testa. Não queria fazer parecer que era uma despedida de novela e parti.
Há mais de dez anos eu pensava, quando meu pai falecer eu vou estar fora do Brasil, como farei para voltar? Sai numa viagem internacional no início desse ano e estava com medo de acontecer algo na minha saída, minha família me tranquilizou e mandou eu ir. Dia 11 de janeiro, ele partiu. Recebi a notícia na cama. Na cama fiquei. Quando entraram no quarto onde eu estava deitado, me perguntaram qualquer coisa eu respondi com calma o que me perguntaram como se nada tivesse acontecido. Depois de um tempo após minha resposta eu disse: “Papai faleceu”.
Eu acho que eu não queria ter que lidar com aquilo. Doía muito. Levei muito tempo para voltar à psicanálise porque não queria contar essa história toda ao psicanalista, doía muito. Deixei para escrever esse relato nos últimos minutos do segundo tempo porque dói muito. Na fase final da sua doença, nos meses que antecederam sua morte, comecei a sentir dores no peito. Dores no lugar onde meu coração ficava. Teve um dia que meu braço ficou com formigamento e pensei: “Caraca, não posso morrer agora que meu filho nasceu”. Não se preocupem, fui a um cardiologista na minha volta ao Brasil e meu coração está perfeito. Minha dor era tristeza. Não queria me despedir daquele homem que odiei e depois amei.
Eu não tive como voltar para o funeral. Tudo certo. Ele já havia partido. Mandei um texto para ser lido no velório que dizia: “Essa manhã na revoada de pássaros que percorriam o céu de onde eu estava, se encontrava o meu pai. Nessa existência poderia ter existido milhares de pessoas que poderiam ter sido a pessoa que viria a ser meu pai”. Foi o jeito que consegui estar presente.
Há uns dois meses, eu desejei muito antes de dormir, sonhar com ele e sonhei. Ele estava lindo, mais alto do que eu, mais jovem do que era quando partiu. No sonho, eu reclamava do nosso afastamento em vida e ele me dizia que estava mais perto do que imaginávamos.
No Gosho O Inverno Nuca Falha em se Tornar Primavera****, fala a respeito da perda de um ente querido e diz: “Porém jamais duvide que ele está protegendo vocês. E mais, ele pode inclusive estar bem perto de vocês”.
Essa semana eu tentei usar uma camiseta que era dele e que minha mãe me deu depois do falecimento. Meu pai tinha a mania de mandar fazer camisetas com a assinatura dele impressa no peito. Realmente, a assinatura dele era a assinatura mais linda que eu conheci. Parecia um barco. Eu não havia ainda conseguido usar essa camiseta porque havia engordado demais depois que eu me tornei pai. Mas depois de perder uns 15 quilos, eu coloquei a camiseta e até que serviu. Mas eu preferi tirar depois de uns 5 minutos porque deu saudade e eu fiquei com um pouco de medo de perder o cheiro dele da camiseta que sabe-se lá qual era. Nunca tive uma proximidade tão grande com meu pai para saber que cheiro ele tinha, acho que todos nós temos um cheiro né. Deve ser cheiro de pai. Meus olhos começaram a suar e não quis enfrentar a falta do muito pouco que tive, mas que ao mesmo tempo, com o Daimoku esse muito pouco acabou no final sendo muito.
Daimoku aumenta salário, aumenta saúde, aumenta felicidade, aumenta sorte, mas eu nunca havia pensado nisso, no caso meu e do meu pai aumentou o amor. Pelo menos da minha parte eu posso assegurar.
Minhas irmãs vieram para o aniversário meu e do meu filho há pouco e trouxeram as cinzas dele que eu pedi. Plantei um Ipê Branco, para colocar papai. Dizem que demora uns 15 anos para florir, mas um dia ele flore. Um dia você acorda e está amando seu pai. Um dia você acorda e seu filho começa a chorar se você sai de perto dele e isso é chocante, porque por um lado você ama e por outro você pensa: “E agora”? Não preciso nem dizer que a partir desse momento comecei a conversar com árvores.
Acho que entendi o que meu pai quis dizer com quem ama não chora. Quem ama, não resmunga, não desperdiça a vida reclamando, quem ama foca na luz, não foca na sombra, quem ama transforma o que não é bom numa oportunidade de ser melhor, e quem tem o Daimoku tem uma oportunidade única de entender em meio ao caos, o que é o amor e de amar e olhar nos olhos do outro como se fosse você mesmo. Então é como o meu pai disse: “Quem ama não chora. Ama!”
Obrigado pai. Obrigado filho.
Obs.: O Ipê Branco em que coloquei as cinzas de papai floriu um mês depois da cerimônia. Entendi isso como uma piscadela de olho. Acho que ele gostou do lugar que eu escolhi.
*Gohonzon: objeto de devoção, em formato de pergaminho, que traz escrituras budistas
**Daimoku: mantra do budismo de Nitiren
*** e ****Escrituras budistas escritas por Nitiren Daishonin (1222 – 1282). São a base filosófica desta prática do budismo.