Joan Didion: o luto de uma escritora sem crença
Julia Ferry
“O ano do pensamento mágico” e “Blue Nights” são dois livros da escritora Joan Didion dedicados ao seu marido John, e à filha, Quintana. Em um relato pungente, a autora escreve sobre a dor de perdê-los. O que vemos nesses livros, é a escrita do luto que não nos oferece um consolo, nem a promessa de um ensinamento ou reparação, mas o compromisso com uma transmissão honesta sobre a dor de viver a perda. “Este é o primeiro livro sobre o luto escrito por alguém sem crença. Joan Didion, só Deus sabe, acredita na realização humana”, diz David Hare no documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold“, dedicado à escritora.
O corpo fino e frágil que vemos no documentário que acompanha quase 80 anos de vida da autora, é narrado nos dois livros, como depositários do medo e da dúvida. Didion conta que viver as suas perdas é viver um imenso medo. Medo de não ser mais capaz de se levantar de uma cadeira, que se estende para o temor de não conseguir pensar e até mesmo falar. “Quando digo que sinto medo de me levantar de uma cadeira dobrável em uma sala de ensaio na West 52nd Street, do que realmente sinto medo?”, ela interroga.
O medo como um afeto que antecede a experiência da perda é um sentimento comum entre as pessoas. A ideia de perder alguém é, por si só, geradora de profundas angústias. Há vidas inteiras que são vividas atravessadas por esse medo, que parece nos revelar não só a fragilidade que é própria da vida, mas a indeterminação que nos constitui: O que é o “eu” sem o “você”?
Como apresentou a filósofa Judith Butler, a experiência da perda demonstra a nossa dependência em relação aos outros que amamos, não apenas para viver nossas vidas, mas para nos definirmos como pessoas. Somos sujeitos despossuídos, nos diz Butler. Não temos propriedade e posse do nosso predicado. Somos despossuídos pelos outros, desfeitos pela sua presença em nossas vidas. Nos transformamos e nos descobrimos com os nossos encontros. Como somos também, inevitavelmente, despossuídos na ausência daqueles que amamos. Perder alguém é abalar as próprias noções de si. Em “Luto e Melancolia”, Freud afirma que não sabemos exatamente o que perdemos quando perdemos alguém. E aí está a perplexidade de uma pessoa, que não é apenas uma presença e uma ausência, mas uma alteridade inapreensível.
Didion não para de sentir medo, mesmo depois de ter perdido. Há um medo que é tão impreciso quanto a experiência que o originou. A perda é uma experiência imprecisa: o que eu perdi com essa pessoa? O eu é forçado a se encontrar com a sua inconsistência. Não só a morte, mas separações dolorosas também impõe essa experiência. Há quem a ideia de perder seja tão devastadora, que procura com todas as forças barrar inícios, relações e proximidade. Assim, quem sabe não amando tanto, evita-se o sofrimento pela perda. É a tentativa de um controle absoluto e programado do que é da ordem do contingente.
A experiência da perda é tão radicalmente devastadora, não só porque nos leva a transformar aquilo que somos, mas nos mostra, no seu espanto, o quanto nunca fomos donos de nós mesmos. Por isso é possível dizer: “não queria querer o que eu quero”, ou nas palavras de Simone Weil: “a contradição, por si mesma, é a prova de que nós não somos tudo”. Não temos escapatória às coisas que nos atravessam. Algo nos escapa, o outro, a própria vida.
Didion se interroga se não perdeu, junto com o marido e a filha, até mesmo as funções motoras e cognitivas, descrevendo a desconfiança nas suas capacidades mais familiares e primárias. As habilidades do seu corpo e a sua capacidade de comunicar sobre esse estado de desespero lhe parecem instáveis: “E se eu nunca mais conseguir localizar as palavras que contam?”. Não só sua própria fragilidade, mas também o dispositivo de narração que se expressa é colocado em questão.
Como escritora, ela conta que “imaginar o que alguém diria ou faria é tão natural para mim quanto respirar”. Mas imaginar o que John falaria, ou escreveria, era não apenas doloroso como ultrajante. O marido, também escritor, era o primeiro leitor e crítico de tudo que ela escreveu. Ela então se pergunta sobre uma frase que tenta completar: “como ele a teria escrito? O que teria em mente? Como queria que ela ficasse?” e conclui que “a decisão cabia a mim agora. Qualquer escolha que eu fizesse carregaria um potencial abandono, até mesmo uma traição”.
Didion “resolve” seu dilema na seguinte passagem: “Deixei como estava. Por que você sempre tem que estar certa? Por que você sempre tem que ter a última palavra? Pelo menos uma vez na vida, deixe para lá”. Essas últimas três frases foram faladas pelo marido e endereçadas a ela, em uma pequena discussão que tiveram. Ela desloca o contexto das palavras de John para as perguntas que faz para si mesma, na ausência dele. Falar com as palavras já ditas pelo outro, essa ainda é uma possibilidade. E foi a saída encontrada por Didion, que inventa através das suas palavras, e das palavras que lhe foram ditas pelos outros, uma escrita possível sobre o luto. Escrever sobre John, seu marido, e Quintana, sua filha, é um gesto de fazê-los viver em um livro, um gesto que ao mesmo tempo acena para essas vidas, e afirma as suas mortes. Dizer para nós com as palavras deles, dizer para si mesma com as palavras dos outros, o luto de uma escritora sem crença.
*Referência Judith Butler: Vida precária: os poderes do luto e da violência. Autêntica Business, 2019.
Julia Ferry (juliaferry@hotmail.com) – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP.