Essa menina ainda não superou a morte do pai?

Nesses sete anos de blog, nunca imaginei que isso pudesse acontecer: uma onda enorme de livros publicados com o tema ‘luto’. A pandemia acelerou um processo já andamento, de abertura para esse tipo de relato. É bonito ler as diversas homenagens e os depoimentos. Impossível não nos identificarmos com os registros dessas histórias de vida. Afinal, o que é falar sobre a morte senão valorizar essa vida?

Quando abri o “O Encantador de Pessoas”, da jornalista Liv Soban, me deparei com esse parágrafo:

“Você não me ligou. Nem hoje. Nem nos últimos dois aniversários. Parece bobo, né? ‘Santo Universo’, essa menina não superou ainda a morte do pai?’. Não, não superei. Quer dizer, estou aqui trabalhando, buscando ser uma pessoa melhor todos os dias. Tropeçando, errando e acertando algumas vezes. Me esforçando pra sorrir pra valer. Ser feliz. Na verdade, acho que superei, sim. A vida nos obriga a seguir adiante. Ainda bem. Há, porém, aqueles minutos, ou melhor, aqueles segundos em que você vem na minha mente e tudo desaba. Sinto falta do seu abraço de urso, do seu sorriso, do seu tapão nas minhas costas que, muitas vezes, me derrubava no chão. Sinto falta de sua gargalhada. Do quanto as pessoas te amavam. Sinto falta de ver você rodeado de pessoas. Sinto falta das festas, das brigas, dos choros, mas, acima de tudo, sinto falta de você me ligando às 00:20 no meu aniversário, hora em que nasci”.

Essa frase me acertou: essa menina não superou  a morte do pai?

Refleti sobre a cobrança da superação do luto. E o quanto ela é, em última instância, cruel. Uma cobrança que o enlutado aceita e se permite sofrer ainda mais, justamente por estar sofrendo.

Existe uma falsa noção de que, ao final de um processo, encontraremos um desfecho. Liv encontrou ressignificado e conforto na escrita desse livro.

Convidei-a  para escrever um depoimento ao blog, reproduzido abaixo.

Talvez, o formato de uma carta, endereçado a mim, fez com que essas palavras me emocionasse ainda mais. Eu adoro cartas… Essa escrita pensada em um interlocutor específico.

Um viva ao seu Babbo, Liv. E a todos os segundos vividos com essa intensidade que você transmite tão bem.

Vamos falar sim da morte, Camila.

Quando você me chamou para escrever para seu blog, fiquei por alguns segundos atônita. Ao receber meu livro, trocamos mensagens para ver como poderíamos falar sobre o tema. Talvez o mais dolorido de todos eles e o único que temos que conversar sobre.

A partida de algum ente querido dói fisicamente. Não é abstrato. É uma dor latente, de uma ferida aberta que não cicatriza. De uma cólica que não termina. De um enjôo que não passa. De um buraco que não se preenche.

Quando me deparei com esta dor. Quando vi meu pai, meu Babbo, morrer nos meus braços, mesmo que fosse uma morte anunciada, senti um atropelamento que adrenalina nenhuma do meu corpo conseguiu anestesiar. Queria chorar e não tinha mais água para derramar, queria gritar, mas minha voz emudeceu, queria… queria… até o corpo cansar de querer entender aquele sentimento e eu finalmente desabar.

E na queda, percebi que meu chão não existia mais, Camila. Ele, num piscar de olhos, desapareceu. E comecei a cair para um buraco que nunca havia vivenciado. Porque ele te suga. E te consome.

E foi nas palavras que encontrei minha salvação. Ao escrever o meu livro, encarei a morte de frente, mais uma vez. Foi desta prosa que construí minha asa e voei como meu Babbo havia me ensinado. Ao relatar a sua última semana de vida, nossas memórias e tudo que vivemos, consegui ressignificar o seu findar. “Tudo precisa ser leve, figliola”, ele sempre dizia para mim, Camila, mesmo que muitas vezes nem ele conseguia alcançar tão leveza. Nós temos que repetir muito algo até virar conhecimento, não é isto que os sábios dizem?

Entendi, durante o escrever, que a morte é a primeira verdade que aprendemos a tapar com a peneira. O ser humano tem esta tendência de tampar a iluminação, o sol, com uma colher de sobremesa. Será que esta atitude que temos em relação à morte é o começo da nossa jornada pela hipocrisia? Também não sei responder.

Só sei que ao nos recusarmos a olhar para a verdade, que nos ilumina, escolhemos inconscientemente as sombras da ignorância e, assim, perdemos a oportunidade de talvez compreender como lidar com a única certeza de nossas vidas: que nós e todos os nossos um dia não estaremos mais aqui.

Você já reparou que passamos infindáveis aniversários para aguentar uma só morte? Olha a força que esta senhora tem. Nem todas as primaveras juntas juntam forças para combatê-la. Me pergunto também se o motivo de ela ser tão forte, além do fato de não conseguirmos encará-la de frente, é porque focamos no passado, temos medo do futuro e não conseguimos estar presentes realmente. Somos escassos em colecionar memórias.

E meu Babbo foi exceção. O embaixador do Carpe Diem. Ele não só colecionava bons momentos como ensinava a todos a sua volta a fazer o mesmo. A gozar da vida. A vivê-la com gana, amar com verdade, até o fim. É por isto talvez que há uma tentativa de mostrar neste livro que a morte pode ser leve. Ao olharmos para ela, ganhamos motivação para fazer o nosso melhor, aproveitar os nossos, não ter medo de nos jogarmos numa aventura, de viver um amor verdadeiro, independente dos obstáculos, de construir um novo caminho a qualquer momento da vida, de repartir risadas com os amigos, abraçar mais os seus e dizer eu te amo sem razão ou motivo especial.

Foi de toda esta trajetória que meu Babbo me ensinou a construir que, ao encarar a morte, ao lado dele, mesmo que tenha vivido a dor física e sentido a queda livre dentro deum buraco amendrotador, tive ferrramentas para construir as minhas asas e aprender a voar. É a vida que nos faz vencer a morte. E são todas as recordações, Camila, que nos faz transformar a tristeza em eterna saudades.

 

(Liv Soban é autora do livro O Encantador de Pessoas, que relata a morte do seu pai, mas sobretudo, descreve a importância do viver).