O que você pode fazer pelo setembro amarelo?
O que você pode fazer pelo setembro amarelo?
Primeiro, entender melhor sobre o tema, com uma especialista confiável do assunto. Entrevisto abaixo, Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere. Karen também representa o Brasil nas discussões internacionais sobre como tornar as redes sociais mais seguras, em termos de saúde mental, aos usuários, como veremos abaixo.
É importante termos em mente que falar sobre suicídio é fundamental e exige cuidados. O primeiro deles é pensar que quem lerá sua postagem, ou comentário, pode estar em uma situação de vulnerabilidade. Ou, pode ter passado por uma situação de risco, pessoalmente, ou acompanhado alguém em risco. Nesse caso, esse tema pode trazer memórias e sensações delicadas.
Outro ponto: sempre indicar locais de ajuda especializada, como o CVV (188), o Mapa da saúde mental e o instituto Vita alere.
Você pode se disponibilizar para uma escuta empática, sem julgamentos. Não tem problema perguntar para a pessoa se ela está pensando em suicídio. Perguntar não é colocar o pensamento na cabeça dela. Isso é um dos mitos do suicídio. Podemos também usar a palavra ‘suicídio’, de forma clara. A pessoa se sentirá vista, escutada, se você não tiver constrangimentos durante a conversa e se abrir para uma relação profunda e conectada.
Muitas pessoas em risco sentem que não ‘pertencem a esse mundo’ porque ‘não são suficientes’ para ele. O fardo de precisarmos ser ‘bons o suficiente’ é terrível. Não podemos saber o que o outro está sentindo, mas podemos acolher. E encaminhar para ajuda especializada. Se houver risco iminente, se você perceber que essa pessoa planejou um suicídio e pretende fazê-lo nesse momento ou em um momento próximo, tome cuidado com a crença de quem ‘ameaça não faz. Este é um mito também. Essa pessoa precisa de ajuda imediata e pode ser encaminhada a um pronto socorro psiquiátrico.
Esse é um dos maiores desafios de hoje. Termos espaços seguros para esses encaminhamentos, que seja específico para o comportamento suicida, com profissionais treinados nesse tema, e uma política nacional de prevenção. É sobre isso que deveríamos estar falando, e fazendo, no setembro amarelo. Para isso, não precisamos de um mês de pautas, sim de planejamento e atuação, qualquer dia do ano.
Esses são alguns aprendizados que eu trago da conversa abaixo. Boa leitura. Um abraço com carinho, Camila.
Por que setembro amarelo?
O setembro amarelo foi criado pelo CVV (Centro de Valorização da Vida), pela Associação Brasileira de Psiquiatria e a Associação Médica Brasileira por conta do dia 10 de setembro, que é o Dia Internacional da Prevenção do Suicídio.
Uma das versões para a opção da cor amarela é a de um rapaz que se matou nos Estados Unidos e tinha um camaro amarelo (um tipo de carro). Seus pais distribuíram laços amarelos no dia do velório, com mensagens de oferta de ajuda.
Setembro amarelo é um mês todo dedicado a esse tema tão delicado quanto fundamental: prevenção do suícidio. Precisamos ter responsabilidade e empatia. Um mês todo é muito tempo falando sobre isso?
É muito tempo falando desse tema. As pessoas que estão vulneráveis, que têm comportamento suicida, e as que perderam pessoas, podem ficar incomodadas neste mês. Então, você gera um sofrimento extra para essas pessoas. Elas são lembradas o mês inteiro sobre o que aconteceu ou o comportamento que estão passando e escutam muitas bobeiras, infelizmente. Por exemplo, a informação equivocada de que ‘90% dos casos podem ser prevenidos’. Não há embasamento para esse número e traz uma culpabilização enorme para aqueles que ficam.
Eu vi que você divulgou que alguns podem ser prevenidos, mas não previstos.
Nem todos serão evitados, nem prevenidos. Não temos essa estatística.
Tem outro ponto importante, que eu chamo de marketing amarelo. São as pessoas que colocam a fitinha, postam na rede social, mas não estão realmente abertas para terem essa conversa. (falamos mais sobre orientações para se ter essa conversa, mais para frente, na entrevista )
Como o poder publico tem se posicionado nesse mês?
Hoje, a gente tem visto muitas prefeituras aprovarem o dia da prevenção do suicídio, ou a semana amarela. Mas o quanto que realmente a prefeitura, o governo, estão trabalhando na prevenção do suicídio?
O que eles deveriam estar fazendo?
Nossa, muitas coisas. Primeiro, ter um programa nacional de prevenção do suicídio.
Precisaria dar mais apoio ao CVV, por exemplo. O CVV tem um atendimento maravilhoso, mas o estado poderia ajudar também.
E quando precisamos encaminhar a pessoa para atendimento, encaminhamos para onde?
Precisaria ter espaços de atendimento específicos para o comportamento suicida. Não temos espaço de atendimento para jovens com comportamento suicida.
Os agentes de saúde e os professores de ensino médio deveriam ter um treinamento de prevenção do suicídio. O que temos hoje em dia em termos de promoção de saúde mental para os próprios professores?
Boa pergunta. Deveríamos ter. Há um longo caminho pela frente.
A notificação compulsória ainda não foi regulamentada. Os hospitais e os profissionais de saúde deveriam fazer notificação compulsória das tentativas de suicídio. Não sei o quanto isso acontece. Não temos como medir. Agora estão querendo regulamentar que a escola também faça notificação compulsória.
E eu não sei até que ponto esse é o papel da escola. Porque aí é notificação compulsória de suicídio e autolesão. E são comportamentos diferentes.
Por que é importante termos essa notificação feita pelos profissionais de saúde e pelos hospitais?
Porque só assim a gente consegue ter uma ideia da quantidade de casos e poderemos fazer uma análise por região, por idade.Para pensar nas melhores práticas ou nas práticas necessárias para a prevenção do suicídio.
A notificação compulsória funciona para conseguirmos mais dados e funciona para o conselho tutelar ser acionado e verificar em que condições essa pessoa está vivendo. Sempre com muito cuidado para não culpabilizar essa família. Então, o conselho tutelar também precisa ser sensibilizado para a atuação que ele tem junto à família.
Você mencionou que autolesão e suicídio são comportamentos diferentes. Quais são as diferenças?
A principal diferença é a intencionalidade. A autolesão acontece, muitas vezes, para um alívio de uma dor psíquica. Mas a intenção é o alívio, não a morte. No suicídio, a intenção é morrer. Mesmo que a gente entenda que a maioria das pessoas queira acabar com uma dor insuportável e não morrer, ela sabe que a intenção daquele ato é provocar a morte.
Mas quem se autolesiona tem mais risco de suicídio. Porque a gente também entende que é uma pessoa que não está lidando de forma saudável com suas questões emocionais. Então, ela pode vir a desenvolver um comportamento de suicídio.
Quais são ainda, os maiores mitos do suicídio?
‘Quem fala não faz’. Relação com coragem, com fraqueza, com falta de Deus no coração. Que perguntar para uma pessoa se ela está pensando em se matar é colocar a ideia na cabeça dela.
Outro mito é que o suicídio pode ser prevenido a todo custo. É um mito que a gente consegue prevenir todos os casos.
A prevenção é extremamente importante e possível, mas não sabemos quanto. Por isso, não dá para falar em 90% de prevenção, como se fala por aí.
O que está por trás do mito de ‘quem fala não faz’?
Tem duas vertentes aí. Uma que o suicídio tem a ver com manipulação. Então, se essa pessoa tá falando é porque ela tá querendo me manipular. ‘Cão que ladra não morde’, ‘se falou é porque não quer fazer’, ‘se quer fazer de verdade não fala para ninguém’.
E a gente sabe que muitas das pessoas que falam, podem fazer. Não se trata de manipulação, e sim de comunicação. De que algo muito difícil está acontecendo com aquela pessoa a ponto dela falar sobre suicídio.
Há sinais de que uma pessoa está em risco?
Existem sinais. Nem sempre são fáceis de interpretar. Alguns são mais óbvios, como dar um sinal verbal direto ‘quero morrer’, ‘vou me matar’. Os sinais verbais mais indiretos às vezes só fazem sentido depois da morte, por exemplo: ‘eu vou acabar com tudo’, ‘logo vocês não vão precisar mais se preocupar comigo’, ‘vou resolver essa situação para sempre’.
O importante é tentar perceber falas fora de contexto. Se a pessoa está falando isso e parece não ter muito sentido, é um sinal de alerta. Por exemplo: ‘eu não estarei aqui quando você voltar’. Essa fala faz sentido se tiver algo que explique isso. Se não tiver, não faz sentido.
Depois que acontece, os familiares vão buscar na memória algumas falas e decodificam que poderiam ser sinais verbais que não foram percebidos. Isso aumenta a culpa dos familiares.
Nós temos sinais comportamentais. Os mais fáceis da gente perceber são as mudanças bruscas de comportamento, alterações de sono, aumento da agressividade, aumento de engajamento em comportamentos de risco, uso de álcool e drogas.
E tem os mais indiretos. Como não ter mais prazer nas coisas que tinha antes. Para adolescentes: problemas na escola, problemas físicos que a gente não entende a causa, como começar a ter muita dor de barriga, muita dor de cabeça.
Lógico que são sinais de sofrimento emocional. Algumas pessoas com sofrimento emocional podem ter comportamento suicida.
Como ajudar uma pessoa próxima que apresente sinais?
A primeira coisa é não ficar passivo.
Podemos chamar essa pessoa para uma conversa. Uma conversa empática, que significa se colocar no lugar do outro, não julgar, não ter essa conversa com pressa. Fazer uma escuta ativa é muito mais ouvir do que falar. Demonstrar sua preocupação é dar espaço para a pessoa contar sua história.
Se num dado momento, você achar importante, achar que deve, faça a pergunta: ‘Você está pensando, ou já pensou, em fazer alguma coisa com você?’… Ou variantes dessa pergunta.
Para a gente fazer essa pergunta, temos que superar o mito de ‘se eu perguntar, vou colocar a ideia na cabeça da pessoa’.
Se ela falar que sim, a gente pode fazer perguntas mais específicas. ‘você já pensou em suicídio? Já pensou em se machucar?’.
Não tem problema usar a palavra suicídio. Não tem problema perguntar isso para alguém. Pode ser justamente a fresta que ela estava esperando para ser ajudada.
Se você perceber que ela pode estar em risco agora, que é falar que ela está pensando em fazer o ato, que sabe como e quando. Nesses casos, ela precisa ser levada a um pronto socorro psiquiátrico. Nos outros casos, será encaminhada para uma avaliação psicológica ou psiquiátrica.
No caso de adolescentes, entender que não se deve jurar segredo.
Como é isso?
Adolescentes contam muito para os outros que estão pensando em se matar e pedem segredo ‘não conta para ninguém’. Tem uma campanha nos Estados Unidos que fala ‘é melhor um amigo bravo do que um amigo morto’, tamanha a quantidade de vezes que isso acontece.
Você tem duas edições do”Histórias de Sobreviventes do Suicídio”, que são relatos de um concurso de sobreviventes. Depoimentos de tentantes, familiares e profissionais de saúde. Qual é o retorno que você tem tido disso?
As pessoas ficam muito tocadas com as histórias. Tem pessoas que agradecem poder contar as histórias. Pessoas que leem e agradecem por conseguirem ver o tema de outra forma. Ou conseguirem se ver nas histórias. Profissionais usam para estudo de caso, discussão em grupo. E pessoas que passaram por isso e se identificam. São histórias de superação.
O suicídio aumentou na pandemia?
Não aumentou. Eu faço parte de um grupo internacional de 47 países, a International Covid-19 Prevention of Suicide Research (Pesquisa Internacional de prevenção ao suicídio). É um grupo formado por representantes internacionais do IASP – International Association for Suicide Prevention. A gente tá monitorando, desde março do ano passado, a relação entre covid e pandemia. Temos reuniões mensais para discutir esses temas. Eu sou a representante do Brasil junto com o doutor José Manoel Bertolote, que fez parte da OMS (Organização Mundial da Saúde). É feito um agrupamento de artigos relacionados ao suicídio e à covid para a gente ver o que ta sendo publicado.
O que tem aparecido? Uma estabilização do número de casos de suicídios completos. Até diluição em alguns locais, inclusive no Brasil. Para medirmos no Brasil pegamos alguns dados oferecidos pelo Ministério da Saúde e alguns dados cedidos pela prefeitura.
Junto a uma outra pesquisa que fizemos junto ao corpo de bombeiros de São Paulo em relação ao número de chamadas que eles recebem.
O único local que teve aumento foi no Japão, em mulheres, a partir de outubro do ano passado.
Se a gente pegar histórico de outras pandemias, também não vemos aumento durante a pandemia. O número de casos aumenta quando a pandemia acabou.
Neste mês em que falaremos sobre esse tema, quais são os cuidados ao compartilhar conteúdo?
O que não falar? Não colocar fotos, vídeos, fotos de métodos, explicações de métodos, não mencionar o local, não colocar suicídio ligado a falta de deus no coração, não falar números sem comprovação científica. Fazer uma revisão de todo o conteúdo antes da postagem, pensando que pessoas vulneráveis podem ter acesso a esse conteúdo. Quando necessário, precisa ter aviso de gatilho. Pensar na mensagem que a pessoa que quer passar. A mensagem não funciona para todos os públicos.
Pensar o que você quer comunicar e para quem. Mostrar que o suicídio pode ser prevenível, que existe ajuda disponível.
Sempre, sempre colocar locais de ajuda, como o CVV (188) e o mapa de saúde mental.
Pensar se você estará disponível se alguém vier te procurar. Pensar na pós campanha, na pós postagem. Pensar no que você vai fazer com as pessoas que você sensibilizar e virem te procurar. Pensar em transmitir uma mensagem positiva que é possível fazer algo. No instituto tem uma cartilha com muitos materiais de apoio.
Podemos e devemos falar sobre o suicídio, seja em setembro ou o ano todo. E você, o que tem feito para a prevenção do suicídio?